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    Quando Calli abriu os olhos, a luz branca e difusa do ambiente invadiu sua visão, fazendo-o piscar várias vezes enquanto seus sentidos aos poucos se reorganizavam. O teto era branco, imaculado, com pequenas rachaduras quase imperceptíveis que formavam padrões aleatórios, como veias finas atravessando a superfície lisa. 

    O cheiro de álcool e antisséptico impregnava o ar, forte o suficiente para arder levemente em suas narinas, misturado com um leve aroma de limpeza hospitalar, daquele tipo que nunca conseguia disfarçar completamente o odor subjacente de doença e cansaço.  

    Os murmúrios que ele ouvira ao despertar vinham de algum lugar além de seu campo de visão imediato — vozes baixas, sussurradas, como se tentassem não perturbar o silêncio predominante do local. Uma delas era mais grave, rouca, quase cansada, enquanto a outra soava mais jovem, impaciente. Ele não conseguia distinguir as palavras, apenas a cadência da conversa, intercalada por pausas e ocasionais risos abafados.  

    Seu pescoço doía quando ele lentamente virou a cabeça para o lado, os músculos tensos e rígidos como se tivessem sido torcidos e depois deixados para enrijecer. Kyan estava lá, sentado em uma cadeira de plástico desgastada, com as pernas esticadas e os pés cruzados no chão, completamente absorto em seu celular. 

    A tela brilhante refletia em seus olhos, iluminando seu rosto com tons azulados enquanto vídeos passavam em sequência, o som alto o suficiente para que Calli pudesse ouvir os ecos distorcidos de música e vozes animadas.  

    O garoto tentou se mover, tentou erguer o torso da cama, mas assim que seus músculos se contraíram, uma dor aguda e profunda explodiu em seu corpo, como se cada fibra de seu ser tivesse sido esmagada, esticada e depois costurada de volta de maneira precária. Um gemido escapou de seus lábios antes que ele pudesse controlar, e ele caiu de volta no colchão, ofegante, sentindo o suor frio se formar em sua testa.  

    — Uff… — Ele cerrou os dentes, tentando não deixar que a frustração tomasse conta, mas era difícil ignorar a sensação de impotência. Cada pequeno movimento, cada respiração mais profunda, parecia acionar uma nova onda de desconforto. 

    Seus dedos se contraíram contra os lençóis, as articulações rígidas e doloridas, como se tivessem sido torcidas e depois deixadas para cicatrizar no lugar errado.  

    Kyan, percebendo o movimento, desviou os olhos da tela e olhou para Calli com uma expressão que não era exatamente preocupação — era mais como curiosidade distante, como se estivesse observando um experimento interessante, mas não o suficiente para realmente se importar. 

    Seus olhos estreitaram por um segundo, avaliando, antes que ele simplesmente virasse o rosto para o outro lado da sala, onde Calli, em sua condição debilitada, não conseguia ver.  

    — Ei, Víctor — Kyan chamou, sua voz carregada de um tom opressivo, quase como se estivesse incomodado por ter que interromper o que quer que estivesse fazendo. — Ele acabou de acordar.

    Calli tentou acompanhar com o olhar, tentou virar a cabeça o suficiente para ver quem mais estava ali, mas seus músculos traíram-no mais uma vez. A dor latejante em seu pescoço e ombros o forçou a desistir, deixando-o ali, imóvel, apenas ouvindo os passos que se aproximavam.  

    Seus pensamentos eram nebulosos, mas uma coisa era clara: “Dói muito… Parece que um trator passou por cima de mim… Merda…” Cada palavra em sua mente era arrastada, como se até mesmo pensar exigisse um esforço sobre-humano.

    Calli mal conseguia processar a cena à sua frente. A pequena Aurora, com seus olhos curiosos e mãos minúsculas, de repente apareceu e começou a cutucar seu rosto com uma persistência infantil, cada toque despertando pequenas ondas de dor que ecoavam por seu corpo já exaurido. Seus dedinhos eram quentes, quase como se ela estivesse febril, deixando para trás uma sensação estranhamente reconfortante, como se estivessem queimando através da névoa de agonia que o envolvia.  

    Ele tentou focar na criança, mas seu campo de visão estava turvo, embaralhado pela dor latejante que martelava seu crânio como se algo estivesse tentando escapar de dentro dele. Quando Aurora sorriu, seus dentes pequenos e brancos pareciam brilhar em contraste com o ambiente opressivo do cômodo.  

    — Titio, tá doendo aí? — ela perguntou, inclinando a cabeça para o lado como um passarinho curioso.  

    Calli tentou responder, mas sua língua pesava como chumbo em sua boca, e as palavras se desfaziam antes mesmo de saírem. 

    —Es-t-… — Foi tudo que conseguiu articular antes que uma nova onda de dor o atingisse, fazendo com que seus músculos se contraíssem involuntariamente. Seu corpo inteiro parecia estar em revolta, cada nervo em chamas, cada articulação rígida como se tivesse sido congelada e depois descongelada de maneira errada.  

    Ele tentou se levantar, os músculos do abdômen se contraiam em protesto, mas mal conseguiu erguer os ombros do sofá antes que um grito rouco escapasse de seus lábios.  

    — Ahhh! — O som saiu mais como um rosnado animal do que como uma expressão humana, e ele cuspiu no chão, como se pudesse expelir a dor junto com a saliva.  

    Quando seus olhos lacrimejantes se focaram novamente, viu Kyan sentado ao seu lado e Víctor parado a alguns passos de distância, observando-o com expressões que ele não conseguia decifrar completamente. Havia algo quase cômico na situação — ele, agonizando, enquanto os dois pareciam estar avaliando se deveriam ajudá-lo ou simplesmente deixá-lo se debater até se cansar. 

    A ironia foi tão absurda que, por um breve instante, Calli sentiu um riso borbulhando em seu peito, mesmo que nunca chegasse a sair.  

    Foi então que o toque de Aurora mudou. Suas mãozinhas, antes apenas curiosas, agora emitiam um brilho esverdeado suave, como se pequenas faíscas de luz estivessem dançando sob sua pele. O calor aumentou, mas não queimava — era como ser envolvido por um cobertor fresco em um dia de verão, aliviando a dor em ondas suaves.  

    Calli olhou para ela com os olhos arregalados. Até seus cabelos prateados pareciam responder àquela energia, os fios brilhando levemente no mesmo tom esmeralda.  

    — Você já vai melhorar, titio! — disse, antes de se esconder rapidamente atrás da perna de Víctor, como se tivesse usado toda sua coragem para fazer o que acabara de fazer.  

    Mas o alívio foi breve. Um tremor percorreu o corpo de Calli, e ele olhou para seu próprio peito com horror. Linhas negras, semelhantes a veias, mas muito mais escuras, muito mais erradas, serpenteavam sob sua pele, concentrando-se em seu pescoço antes de desaparecerem momentaneamente, como se recuassem da luz que Aurora havia emitido.  

    — Que merda é essa? — perguntou, mas, no fundo, já sabia. Já sentia.  

    Víctor finalmente se moveu, aproximando-se com passos lentos, o copo de uísque ainda na mão. Ele sorriu, mas não era um sorriso tranquilo — era o sorriso de um homem que já vira demais para se surpreender, mas que ainda assim encontrava um humor perverso na situação.  

    — Puta merda, hein, garotão — disse, tomando um gole da bebida antes de continuar. — Eu não sei como você ainda está vivo. — Seus olhos escuros percorreram o corpo de Calli, parando nas linhas negras que ainda tremeluziam sob sua pele. — Mas parece que seu corpo conseguiu se adaptar. Ao sangue… ou melhor, ao pecado líquido que vazou da Vesúvia. — Ele balançou a cabeça, como se estivesse genuinamente impressionado. — Cada vez você me impressiona mais.  

    Calli engoliu seco. 

    “Líquido do pecado… Vesúvia…” 

    Os nomes ecoaram em sua mente, trazendo consigo flashes de memória — o prédio abandonado, a escuridão pulsante, a lâmina cortando algo que não deveria existir, o jorro negro que respingou em seu pescoço aberto.  

    — Mas como… como entrou? — sussurrou, mais para si mesmo do que para os outros.  

    Víctor olhou para ele por um longo momento antes de responder, e quando o fez, sua voz estava mais baixa, quase solene.  

    — Você já sabe a resposta, Calli. Você acabou deixando.

    A sala ficou em silêncio por um longo momento, apenas o som da respiração ofegante de Calli quebrando o ar pesado. Ele olhou para suas próprias mãos, observando como os tendões se moviam sob a pele pálida, como se esperasse ver aquelas veias negras emergirem novamente. 

    A memória do prédio voltava em flashes desconexos — o cheiro de mofo e carne podre, o som de ossos rangendo em ângulos impossíveis, o gosto metálico do próprio sangue em sua boca quando uma daquelas criaturas o atingira.

    Aurora espiou por trás da perna de Víctor, seus grandes olhos refletindo uma sabedoria que não combinava com sua idade. 

    — Titio virou diferente agora — murmurou, como se estivesse apenas comentando sobre o tempo. — Tem um pedacinho deles dentro de você.

    Kyan, que até então permanecera em silêncio, deu um passo à frente. 

    — Isso explica porque você não morreu quando devia — disse, sua voz desprovida do habitual tom de brincadeira. — Nenhum humano normal sobrevive a uma exposição direta ao Líquido do Pecado. Muito menos a uma injeção direta na jugular.

    Calli levantou uma mão trêmula ao pescoço, sentindo a cicatriz áspera e irregular sob seus dedos. A ferida que ele pensara ter sido causada por uma garra ou lâmina agora se revelava algo muito pior. 

    — Então… isso me transformou no quê? — perguntou, sua voz mais firme agora, embora ainda rouca.

    Víctor esvaziou o copo de uísque de um só gole antes de responder. 

    — Ninguém sabe ao certo. Você é o primeiro a sobreviver tempo suficiente para contar a história. — Ele se aproximou do sofá, seus olhos escuros estudando Calli como um cientista observaria uma experiência interessante. — Mas pelo que posso ver, você ainda é você. Só que… melhorado.

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