Olá, segue a Central de Ajuda ao Leitor Lendário, também conhecida como C.A.L.L! Aqui, deixarei registradas dicas para melhor entendimento da leitura:
Travessão ( — ), é a indicação de diálogos entre os personagens ou eles mesmos;
Aspas com itálico ( “” ), indicam pensamentos do personagem central em seu POV;
Aspas finas ( ‘’ ), servem para o entendimento de falas internas dentro da mente do personagem central do POV, mas não significa que é um pensamento dele mesmo;
Itálico no texto, indica onomatopeias, palavras-chave para subverter um conceito, dentre outras possíveis utilidades;
Colchetes ( [] ), serão utilizados para as mais diversas finalidades, seja no telefone, televisão, etc;
Por fim, não esqueça, se divirta, seja feliz e que os mistérios lhe acompanhem!
Capítulo 96 — Um Caso em Vermelho
Atenção: dos capítulos 96 a 100, estamos passando por histórias paralelas e futuras do mundo de ASDI, por conta disso até mesmo a forma narrada, pode acabar sendo alterada para primeira pessoa, não estranhem.
Itália, região da Úmbria, Assis.
Eugenia Capistrano. Mulher como todas as outras, mas também como nenhuma. Lutadora, em busca de sua salvação, ainda que não soubesse ao certo de que precisava ser salva. Seus cabelos cacheados e loiros, quase dourados sob a luz do entardecer, eram sua marca registrada. Os olhos, de um amarelo suave como o mel, contrastavam com a seriedade de seu olhar.
— Oremos pelo pai da benevolência, protetor dos fracos e a faceta da misericórdia. — A voz do diácono deslizou suavemente pelas abóbadas da catedral, envolvendo os presentes como um manto de serena reverência.
Eugenia fechou os olhos por um instante, deixando que as palavras ecoassem em seu íntimo. Não era devoção o que a movia, mas sim uma inquietude sutil, como a brisa que antecedia o amanhecer.
Ao seu redor, os fiéis ergueram-se em silêncio dos bancos de madeira, seus rostos iluminados pela luz âmbar que filtrada pelos vitrais. O ar estava impregnado com o aroma do incenso — uma mistura de mirra e olíbano — que se elevava em espirais suaves, carregando consigo as preces e os anseios da assembleia. As velas tremeluziam suavemente, suas chamas dançavam em sincronia com o murmúrio das orações.
No altar, sob o dossel de mármore branco que parecia brilhar com luz própria, a episcopisa mantinha-se em quieta dignidade. Seus paramentos litúrgicos — a alva imaculada como a primeira neve, o amito adornado com folhas de oliveira no tom profundo de vermelho-alizarina — falavam de uma tradição sagrada que transcendia os séculos. A estola branca e vermelha, drapeada sobre seus ombros como as asas de um pássaro celestial, lembrava o sacrifício e a renovação que o outono trazia consigo.
Era um dia consagrado. Um dia especialmente bendito para Zadkiel, o arcanjo cuja misericórdia envolvia como um abraço paternal. Os fiéis presentes, cada um carregando suas próprias dores e esperanças, encontravam naquele momento um refúgio – um instante em que o divino e o humano se tocavam com ternura.
Eugenia abriu os olhos e deixou seu olhar percorrer o ambiente. Nas expressões ao seu redor, via-se a paz que ela ainda não conseguia alcançar. Talvez, pensou, a verdadeira oração estivesse justamente nessa entrega silenciosa, nessa capacidade de confiar mesmo quando o coração estava inquieto.
O som dos sinos, suave e distante, anunciou o momento da elevação. Uma única lágrima desceu pelo rosto de uma mulher idosa à sua frente, enquanto um homem ao seu lado apertava contra o peito um pequeno crucifixo de madeira. A episcopisa, com gestos fluidos e precisos, ergueu o cálice — um reflexo dourado iluminando seu semblante sereno.
O silêncio sagrado envolveu a assembleia quando a episcopisa iniciou a liturgia eucarística. Suas mãos moviam-se com a precisão de quem havia dedicado uma vida inteira aos ritos sagrados.
Eugenia observou como a luz do entardecer transformava o interior da catedral. Os raios de sol, agora mais suaves, tingiam de âmbar as colunas de mármore e faziam brilhar as partículas de pó que dançavam no ar.
“Por que não consigo me entregar como os outros?”, pensou, enquanto acompanhava os movimentos ritualísticos. Seus dedos traçaram inconscientemente o fio da página do missal, sentindo a textura do papel envelhecido.
Aos poucos, percebeu que sua inquietude inicial dava lugar a uma estranha paz. O canto italiano que agora ecoava no coro parecia tecer uma ponte entre o terreno e o divino. As vozes dos fiéis se uniam em uma só melodia, elevando-se até as altas abóbadas como fumaça de sacrifício agradável.
Naquele momento, um raio de sol atingiu em cheio o mosaico de Zadkiel atrás do altar. Os olhos da representação de deus pareciam ganhar vida, refletindo uma compaixão infinita. Eugenia sentiu algo dentro de si se desfazer, como se uma corrente que não sabia existir tivesse se rompido.
A episcopisa, ao elevar a hóstia consagrada, virou-se ligeiramente em sua direção. Seus lábios moveram-se em silêncio, mas Eugenia compreendeu a mensagem: A misericórdia não exige perfeição, apenas entrega.
Do lado de fora, o sino da catedral badalou três vezes. As pombas que repousavam nas cornijas levantaram voo em um ruído de asas que se misturou ao órgão. Era como se toda a criação participasse desse momento sagrado.
Quando a assembleia se ajoelhou para a bênção final, Eugenia fechou os olhos e, pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se verdadeiramente em casa. A paz que buscara não estava na ausência de conflitos, mas na aceitação de que mesmo suas dúvidas podiam ser um caminho para o sagrado.
O órgão entoou as últimas notas da recessional enquanto os fiéis começavam a se dispersar lentamente. O som dos passos no mármore ecoava suave, acompanhado pelo farfalhar das vestes litúrgicas dos clérigos que se retiravam em procissão.
Eugenia permaneceu em seu lugar, observando como a luz do crepúsculo agora pintava os vitrais de tons rubros e púrpuras. As velas no altar, já consumidas em boa parte, lançavam sombras dançantes sobre as paredes seculares. O incenso havia se dissipado, deixando apenas um traço sutil no ar — memória de uma oração que ainda parecia pairar sob as abóbadas.
Uma senhora idosa ao seu lado, de mãos calejadas e véu modesto, ofereceu-lhe um sorriso antes de sair. Era um gesto simples, mas que carregava toda a calorosa acolhida da comunidade. Eugenia retribuiu com um aceno de cabeça, sentindo um calor inesperado brotar em seu peito.
Na nave1 agora quase vazia, um sacristão começava a apagar metodicamente as velas remanescentes. Cada chama que se extinguia parecia marcar o fim de um dia sagrado, mas também o início de algo novo. A última a ser apagada foi a grande vela do círio pascal, cuja fumaça subiu em espiral até se perder nas alturas da catedral.
Eugenia levantou-se finalmente, sentindo o calor do sol da manhã que entrava pelos vitrais e aquecia a madeira envelhecida do banco.
“Quantas histórias estas bancas já testemunharam?”, pensou, observando as marcas do tempo na superfície polida.
— Que o dia te abençoe, filha — disse um ancião de barba grisalha ao passar, apoiado no banco de madeira.
— E a você também — respondeu Eugenia, surpresa por como as palavras saíram com naturalidade desta vez.
Seus passos ecoaram suaves no mármore enquanto caminhava em direção à saída. Na pia de água benta, parou por um instante.
“Será que esta água pode refrescar mais que a alma?”
Mergulhou os dedos e sentiu o frescor matinal do líquido, surpreendendo-se ao perceber que estava levemente aquecido pelo sol que entrava pela rosácea.
Ao cruzar a saída da catedral, uma onda de ar puro e quente envolveu seu rosto, carregando o perfume das lavandas que floresciam nos jardins da praça.
— Que dia abençoado! — exclamou uma jovem mãe passando com seu bebê nos braços, enquanto a criança tentava pegar um raio de sol com as mãozinhas gordinhas.
Eugenia sorriu sem perceber.
“Quantas manhãs como esta eu deixei passar sem notar?”
Desceu os degraus de pedra que agora estavam quentes sob seus pés. O sol da manhã transformava cada pedra em um pequeno radiador de calor.
— Cuidado com o degraul, signorina! — alertou uma vendedora de flores, arrumando seus girassóis. — O sol deixou ele mais escorregadio que casca de banana!
— Obrigada pelo aviso, donna Clara — respondeu Eugenia, desviando para o lado onde a sombra ainda mantinha as pedras mais ásperas.
Enquanto caminhava, sentia algo diferente em seu peito. Não era uma epifania barulhenta, mas como o desabrochar silencioso de uma flor ao sol.
“Talvez a fé seja como esta manhã, não precisa ser perfeita, basta estar presente”, refletiu, sentindo os raios de sol acariciando seus ombros como uma bênção tangível.
O caminho para casa estendia-se diante dela, banhado pela luz dourada que filtrada pelas folhas das oliveiras.
— Bom dia, signorina Eugenia! — chamou o vendedor enquanto arrumava suas garrafas. — Trouxe o queijo de ovelha que a senhora gosta!
— Obrigada, Giovanni! — respondeu com genuíno prazer, notando como sua voz soava mais leve.
Enquanto seguia pela rua principal, seus pensamentos fluíam como a brisa morna da manhã.
“Zadkiel, deus da misericórdia… será que a verdadeira graça está em aceitar que cada dia é um recomeço?”
O sino do meio-dia começou a badalar, seu som claro ecoando entre as casas de pedra. Eugenia parou por um momento, fechou os olhos e deixou que o sol iluminasse seu rosto.
— Que seja um bom dia — murmurou, não sabendo ao certo se era uma prece, um desejo ou simplesmente um reconhecimento da beleza que a cercava.
E com esse sentimento leve como as folhas que dançavam na brisa matinal, continuou seu caminho, notando como sua sombra agora parecia mais alongada e definida do que de costume, como se finalmente estivesse encontrando seu lugar no mundo.
“Talvez a verdadeira misericórdia esteja em permitir-se errar, em não exigir perfeição de si mesma a cada passo.”
O vento trouxe consigo o cheiro de terra molhada e flores silvestres, misturando-se ao aroma de pão fresco que vinha da padaria ao lado. Eugenia respirou fundo, como se quisesse guardar aquele instante dentro de si.
— Não há pressa — disse baixinho, mais para lembrar a si mesma do que para qualquer outra pessoa.
E enquanto seguia, seus passos pareciam mais leves, como se cada um carregasse não o peso das dúvidas, mas a leveza de quem começa a entender que a vida não é uma linha reta, mas um caminho cheio de curvas, surpresas e recomeços.
“E se cada curva no caminho fosse uma chance de enxergar algo novo, algo que a pressa nunca permitiria ver?”
Os pássaros cantavam em coro, escondidos entre as folhas das árvores que margeavam a rua. Eugenia sorriu, imaginando que até eles celebravam a quietude daquele momento.
— A beleza está nos detalhes — pensou em voz alta, observando como a luz filtrada pelas folhas desenhava padrões efêmeros no chão de pedra.
Seus dedos roçaram levemente a parede áspera de uma casa antiga, sentindo a textura do tempo sob sua pele. Era como se, naquele instante, tudo ao seu redor sussurrasse segredos que só podiam ser ouvidos por quem soubesse parar e escutar.
“Quem sabe os segredos do mundo não estão escritos nas paredes, mas no modo como a luz as toca ao longo do dia?”
Um grupo de crianças passou correndo, suas risadas ecoando como sinos desencontrados. Eugenia ficou parada, vendo-as desaparecer na esquina, levando consigo aquele barulho alegre que parecia limpar o ar de qualquer peso.
— A vida se renova nos pequenos — murmurou.
O vento brincou com as pontas do seu vestido, e ela deixou, como se também ela merecesse um pouco dessa leveza. Seguiu adiante, mas agora com os olhos mais atentos, como quem aprendeu, enfim, a ver.
Enfim, chegou frente a própria casa, por fora, pedras cinzentas, como de todas as outras. As janelas? Trancafiadas, aguardando a vida tomar forma e agraciar com a sua bela presença.
Destrancando a porta, seguiu, com um sorriso no rosto, adentro.
— Alguma coisa mudou hoje — murmurou para si mesmo, enquanto cruzava a soleira.
O ar dentro da casa parecia mais denso, como se o tempo tivesse parado ali há muito. “Será que deixei uma janela aberta?”, questionou-se, passando os dedos pelo parapeito empoeirado.
— Não, impossível… — balbuciou, olhando ao redor.
Os móveis estavam exatamente como os deixara, mas algo sutil, quase imperceptível, perturbava o silêncio. “Ou será só minha imaginação?”, refletiu, apertando o braço do sofá com certa hesitação.
De repente, um ruído vindo do andar de cima.
— Quem está aí? — chamou, a voz um pouco mais firme do que esperava.
Nenhuma resposta. Apenas o eco de sua própria pergunta, dissipando-se nos cômodos vazios.
O coração batia mais rápido agora.
Passou pelo quadro na parede — uma foto desbotada, ela e seu falecido marido sorrindo em algum verão distante. Os dedos tremeram levemente ao roçar a moldura empoeirada.
“Como era fácil ser feliz e não saber”, pensou, engolindo o nó na garganta.
Subiu as escadas em procissão lenta, cada degrau um peso a mais nos joelhos. O coração apertava-se como se mãos invisíveis o comprimissem. “É só saudade”, insistia consigo mesma, “só a casa velha rangendo como sempre”.
No patamar, uma corrente de ar frio. A porta do quarto dela — entreaberta.
— Eu a fechei… — sussurrou, cerrando os punhos. Tinha certeza. A última vez que entrara ali, três luas atrás, deixara tudo trancado, cortinas puxadas, como um túmulo de coisas boas.
O corredor escurecia à sua frente. Algo respirava atrás daquela porta. Não o vento, não a madeira envelhecida. Algo que esperava.
— Alguém? — chamou, voz quebrada, sabendo que era impossível.
O silêncio engrossou. Então, um arrastar de pés no assoalho, claro como dia.
O arrastar de pés aproximou-se, lento e deliberado, como se cada passo fosse um fio de gelo deslizando por sua espinha. A maçaneta rangiu, girando quase imperceptivelmente.
— Não devias ter voltado — sussurrou uma voz que não era voz, mas sim o eco de algo antigo, grudado nas paredes, nas vigas, no sangue seco que ela jurara ter limpado daquele assoalho.
O cheiro chegou primeiro: mofo e ferro oxidado, aquele perfume de ferida mal cicatrizada. A porta abriu-se sozinha, revelando o vazio do quarto — a cama intocada, o crucifixo caído no chão, a mancha no teto em forma de mão aberta que nunca conseguira pintar por completo.
“Ele está aqui”, pensou, e os lábios formaram o nome sem som: Thomas.
O espelho do armário refletia apenas a névoa do quarto, mas ela viu movimento nele — não seu próprio rosto, mas algo por trás, algo que se dobrou num ângulo que ossos não deveriam alcançar. Os dedos daquilo pressionaram o vidro por dentro, deixando marcas úmidas enquanto se arrastavam para cima, devagar, como quem sobe de um poço.
— Você prometeu seguir junto. — A coisa no espelho repetiu, com a voz dele agora, perfeita demais, como gravada da última vez que gritara seu nome.
O raio de sol morreu na janela. As sombras no canto do quarto engrossaram, escorrendo pelo chão em direção a seus pés. Ela não correu. Sabia, afinal, como isso terminara da primeira vez: com a faca de cozinha, com o silêncio, com a culpa enterrada sob as pedras cinzentas da casa.
A porta bateu atrás dela. Alguém — ou algo — suspirou contra seu pescoço.
E então, as luzes se apagaram.
O frio envolveu seu corpo como um sudário, e ela sentiu a mão — aquela mão que conhecera tão bem em vida, agora gélida e retorcida — fechando-se em seu pulso com força de cova fresca.
— Eu nunca saí. — A voz de Thomas escorreu em seu ouvido, úmida e podre, como terra molhada caindo em um caixão.
O quarto dissolveu-se numa névoa de memórias agonizantes: o brilho da faca sob a luz do frigorífico, o som abafado de um corpo sendo arrastado escada abaixo, a pá batendo contra a terra úmida do jardim na madrugada.
— Mas eu juro que te amei. — Quis gritar, mas a língua pesava em sua boca como chumbo.
O espelho embaçou. Lentamente, letras começaram a se formar no vidro, escritas por dedos invisíveis:
ELA MENTE
O último arranjo de luz revelou a figura atrás dela — não o José que lembrava, mas o que criara em suas noites de culpa: olhos inchados de terra, mandíbula desencaixada, o corte profundo no pescoço pulsando negro como um segundo sorriso.
— Você sempre soube que eu voltaria — rosnou, enquanto as sombras do quarto se agitavam como vermes em carne podre.
Quando os vizinhos encontraram a casa vazia dias depois, notaram três coisas: o quadro do casal na parede agora mostrava apenas uma figura solitária, a moldura escurecida como queimada. Todas as janelas estavam hermeticamente trancadas por dentro. No espelho do quarto, duas mãos pressionavam o vidro opaco — uma grande e machucada, outra pequena e ensanguentada — como se algo estivesse tentando sair de dentro do reflexo.
E na soleira da porta de entrada, uma única palavra riscada na madeira envelhecida, como se arranhada por unhas humanas:
JUNTOS
…
Eu deveria ter me aposentado no ano passado. Mas casos como esse… eles grudam na sua pele como o cheiro de mofo de um cadáver esquecido.
A primeira coisa que notei ao entrar naquela casa não foi o silêncio — era o ar. Pesado, como se as paredes tivessem engolido todos os gritos que já ecoaram ali e os estivessem digerindo devagar.
O quadro na entrada me encarou primeiro. Uma foto de casamento, a mulher sorrindo ao lado do marido. Só que algo estava errado. Na imagem que os vizinhos descreveram, os dois estavam abraçados. Agora, o espaço onde ele deveria estar era apenas um vazio leitoso, como se a foto tivesse dissolvido parte de si mesma. A moldura estava fria ao toque.
Subi as escadas. Cada degrau rangia de um jeito diferente, como se a casa estivesse me testando. O quarto do casal… Deus, aquele quarto. O espelho do armário estava embaçado, mas não de vapor — de algo mais espesso. Quando me aproximei, vi as marcas. Mãos. Pressões claras no vidro, por dentro. Meu reflexo tremulou, e por um segundo, juro que vi uma figura atrás de mim, inclinada, como se estivesse sussurrando algo no meu ouvido.
Virei. Nada. Só a cama desfeita e o cheiro.
Ah, o cheiro. Ferro velho e terra molhada. O mesmo odor que senti quando exumei o corpo daquele menino no caso de 2019. O jardim… ali estava a resposta. A terra estava mais fofa em um canto, como se tivesse sido revolvida recentemente. A pá enferrujada que encontrei lá tinha manchas escuras na lâmina. Sangue. O mesmo tipo do marido, Thomas Capistrano, que supostamente morrera em um acidente doméstico três anos antes.
Os vizinhos me disseram coisas que não anotei no relatório oficial. A velha Marta jurou ter visto a residente, Dona Eugenia, conversando sozinha no quintal na noite anterior ao desaparecimento.
— Não era um monólogo, inspetor. — Ela insistiu, os olhos marejados. — Ela respondia a alguém. E riu. Ri daquele jeito… triste, sabe? Como quem aceita uma promessa que não quer cumprir.
No meu último dia lá, deixei um gravador no quarto. Quando ouvi a fita no dia seguinte, havia três coisas que notei sendo meus próprios passos saindo. Dez minutos de silêncio. Então, um sussurro rouco, quase inaudível: está na hora.
Era a voz de um homem.
A casa está lacrada agora, mas às vezes passo devagar pela Rua das Acácias depois do expediente. As janelas continuam trancadas por dentro.
Mas duas noites atrás, juro por Deus, uma luz se acendeu no andar de cima.
E o espelho do quarto embaçou.
Eu não deveria ter voltado. Mas depois daquela luz acesa, algo dentro de mim — talvez a mesma parte que ainda acredita em justiça — me arrastou de volta àquela maldita casa na rua das Acácias.
Desta vez, não entrei sozinho. Chamei o Santos, meu parceiro aposentado que sempre teve um pé no mundo daquilo que chamam de sobrenatural. Ele trouxe um maço de cigarros, uma garrafa de whisky barato e um crucifixo que pertencia à avó dele.
— Tá com cara de quem viu fantasma — resmungou, acendendo um cigarro na escada do carro.
Não respondi. Porque era exatamente isso.
A porta da casa estava trancada, como deixamos. Mas o cheiro… Meu Deus, o cheiro agora era de carne queimada e flores murchas. O Santos franziu o nariz.
— Alguém morreu aqui de novo — disse, não como pergunta, mas como fato.
Forçamos a fechadura. O ar dentro estava gelado, embora fosse verão. O quadro na parede agora estava completamente negro, como se tivesse sido carbonizado por dentro da moldura.
Subimos as escadas. Meu coração batia tão forte que eu temia quebrar as costelas. O quarto…
O quarto não era mais o mesmo.
O espelho estava rachado no centro, como se algo tivesse tentado sair dele. As rachaduras formavam uma figura — uma silhueta de um homem alto, com os braços estendidos. Nas tábuas do chão, ao redor da cama, marcas de arrastão, como se algo pesado tivesse sido puxado.
Foi então que ouvimos.
Arranhões.
Vinham de dentro da parede. Não eram ratos. Era algo metódico, lento… como unhas percorrendo madeira de dentro para fora.
— Tá na hora de vazar — sussurrou Santos, puxando meu braço.
Mas eu já estava ajoelhado no chão, as mãos tremendo sobre as tábuas soltas. Sabia o que ia encontrar antes mesmo de levantá-las.
O diário de Isabel estava lá. A última página, antes rasgada, agora estava intacta. A letra dela, frenética, como se tivesse sido escrita às pressas:
Ele voltou. Não era loucura. Thomas está nas paredes. Nas vigas. No espelho. Eu o matei, sim, mas ele não foi embora. Ele só esperou. E agora… agora ele quer que eu complete o que começamos.
Abaixo, uma única palavra, escrita em vermelho que não era tinta:
AMÉM
O Santos me puxou para trás quando a primeira tábua do assoalho começou a se mover sozinha.
Não esperamos para ver o que emergiria. Corremos.
Na porta, antes de sair, olhei para trás uma última vez.
No topo das escadas, uma figura alta e indistinta observava nossa fuga.
E sorria.
O relatório oficial dirá que a casa está condenada por infiltração. Que o caso está arquivado.
Mas eu sei a verdade.
Algumas coisas não descansam.
E algumas casas… algumas casas estão com fome.
- é a parte central de uma igreja , estendendo-se da entrada principal (normalmente ocidental) ou da parede posterior, até os transeptos , ou em uma igreja sem transeptos, até o presbitério[↩]
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