Capítulo 98 — O Palco dos Perdidos
Atenção: dos capítulos 96 a 100, estamos passando por histórias paralelas e futuras do mundo de ASDI, por conta disso até mesmo a forma narrada, pode acabar sendo alterada para primeira pessoa, não estranhem.
Alemanha, München, Teatro Ernst Deutsch.
O teatro estava lotado, todas as cadeiras, já ocupadas, aguardavam o espetáculo começar.
— O silêncio é quase palpável — sussurrou uma voz ao lado.
“Será que hoje tudo sairá como planejado?” pensou ele, os dedos tamborilando levemente no braço da poltrona.
— Luzes se apagam em três, dois, um… — anunciou alguém nos bastidores.
A escuridão tomou conta da sala, e um único holofote iluminou o centro do palco.
— Comecem! — ordenou o diretor, invisível na penumbra.
“Eis o momento da verdade,” refletiu o ator, respirando fundo antes de dar seu primeiro passo sob a luz.
— Nunca estive tão nervoso — confessou o ator principal, baixando a voz para não ser ouvido pelo público.
— A plateia nem percebe — respondeu sua colega de cena, ajustando discretamente o figurino. — Eles estão tão ansiosos quanto nós.
“Ou será que estão apenas esperando um erro?”, questionou-se, sentindo o peso dos olhos atentos.
— A sua fala é agora — lembrou-lhe ela, empurrando-o suavemente para o centro do palco.
Ele engoliu seco e começou:
— Todos os mundos são um palco, e todos os homens meros atores…
Um suspiro coletivo percorreu a plateia.
“Brecht1 nunca falha,” pensou, ganhando confiança.
— E agora, a grande revelação — sussurrou a atriz, preparando-se para entrar.
O cenário girou, a música cresceu, e o teatro pareceu ganhar vida própria.
— Todos os mundos são um palco, e todos os homens meros atores…
A plateia ficou em silêncio por um instante, até que alguém na primeira fila sussurrou:
— Isso não é Brecht…
O ator percebeu o tom de provocação e, sem quebrar o personagem, respondeu com um sorriso quase imperceptível:
— Mas será que Brecht não roubava de outros também?
Risos contidos ecoaram pela sala.
“Ótimo, agora eles estão acordos,” pensou, sentindo o jogo do teatro se virar a seu favor.
Nos bastidores, o diretor cruzou os braços.
— Ele está improvisando de novo…
— Deixe-o — murmurou a atriz principal. — O público adora quando quebramos a quarta parede.
O cenário, propositalmente áspero e mecânico, girou com um rangido audível, lembrando a todos que aquilo era uma representação — puro teatro épico.
— E agora? — perguntou o personagem, olhando diretamente para a plateia. — Vocês ainda acreditam nessa história?
Um murmúrio percorreu o teatro.
“Bertolt ficaria orgulhoso.” pensou o ator, pronto para a próxima cena.
— Ou será que Brecht diria que estamos sendo burgueses demais? — provocou a atriz, entrando em cena com passos calculados, seu macacão de trabalho manchado de tinta propositalmente.
O público riu novamente, mas alguns espectadores mais tradicionais trocaram olhos de reprovação.
“Perfeito. Se incomodaram — então está funcionando” pensou o ator, seguindo o jogo.
— Histórias não são feitas para acreditar, mas para questionar! — declarou ele, apontando para um homem de terno na terceira fileira, que ajustou os óculos, desconfortável.
Nos bastidores, o assistente de direção mordeu o lábio.
— Isso não está no roteiro…
— Claro que não — respondeu o diretor, os olhos brilhando. — Mas é exatamente o que Brecht gostaria.
De repente, as luzes do teatro se acenderam por completo, revelando as cordas, os refletores e a equipe técnica. A plateia piscou, surpresa.
— Bem-vindos ao verdadeiro espetáculo! — anunciou a atriz, abrindo os braços. — “Agora vocês também são parte dele.”
Silêncio.
Então, alguém começou a aplaudir.
Lentamente, outros se juntaram, até que o teatro inteiro ecoava com palmas.
“Eis a revolução no teatro,” pensou o ator, curvando-se com um sorriso irônico.
— Cortem! — gritou alguém nos fundos, mas já era tarde demais.
A quarta parede não existia mais.
E no meio dos aplausos, um velho sentado no meio da plateia se levantou bruscamente, sua cadeira rangendo no assoalho de madeira.
— Isso não é teatro, é palhaçada! — berrou, o rosto rubro de indignação.
O silêncio caiu novamente sobre a plateia. O ator mascou um sorriso, os olhos faiscando.
— Meu caro senhor, exatamente por isso que Brecht adoraria.
Risos nervosos. O velho bufou, pegando seu chapéu.
— No meu tempo, teatro tinha respeito, tinha forma!
A atriz deu um passo à frente, descascando a personagem por completo.
— E no seu tempo, mulheres não podiam votar. Progresso é assim — desconfortável.
O velho revirou os olhos e saiu batendo a porta do teatro. Um último eco de protesto.
Nos bastidores, o diretor cobriu o rosto com as mãos, mas seus ombros tremiam — de riso ou desespero, nem ele sabia.
— “Estamos perdendo o público conservador…” — murmurou o produtor, suando.
— E ganhando um novo — retrucou a atriz, olhando para os jovens na plateia, que agora riam abertamente, os olhos brilhando.
O ator se aproximou da beira do palco, sério de repente.
— Teatro não é museu. Ou vive, ou vira poeira.
E quando as luzes se apagaram para o intervalo, o murmúrio na plateia era elétrico. Alguns discutiam, outros riam, poucos permaneciam indiferentes.
“Exatamente como deve ser.” pensou o ator, engolindo um gole d’água nos bastidores. O espetáculo, afinal, só começara.
— Nos corredores, durante o intervalo, grupos se aglomeravam em debates acalorados. Um jovem de cabelo desgrenhado gesticulava para seus amigos:
— Finalmente um teatro que não nos trata como idiotas!
Perto do bar, um casal elegante conversava em voz baixa:
— Pagamos caro para sermos insultados? — resmungava a mulher, ajustando seu colar de pérolas.
O marido suspirou, olhando para o copo de vinho:
— Pelo menos o vinho é bom…
Na sala técnica, o iluminador apertava os parafusos de um refletor:
— Querem mesmo que a gente deixe todas as luzes acesas no terceiro ato?
O diretor, esfregando as têmporas, assentiu:
— Se querem teatro cru, terão teatro cru. Até os parafusos serão visíveis.
Nos camarins, a atriz principal removia metodicamente sua maquiagem:
— Quanto mais nos mostramos humanos, mais eles se vêem em nós.
O ator, agora de calças jeans e camiseta, observava a plateia por uma fresta:
— Olhe só. Estão todos ainda aqui. Até os que fingem que odeiam.
E de fato, quando o sinal sonoro anunciou o fim do intervalo, todos voltaram apressadamente aos seus lugares. O velho protestão não retornara, mas sua cadeira vazia falava mais que mil discursos.
“Eis a magia do teatro vivo.” pensou o ator, retornando ao palco, onde as luzes cruas revelavam agora até as marcas de sapato no chão. O espetáculo continuaria – sem máscaras, sem mentiras, sem retorno.
O terceiro ato começou com um silêncio mais denso que o normal. O ator percebeu primeiro – algo estava diferente no ar, como se a respiração da plateia tivesse sincronizado sem querer.
— Nenhum de nós sairá ileso desta noite… — ele declamou, mas a frase soou mais como uma profecia do que como texto ensaiado.
Nos bastidores, o técnico de iluminação franziu a testa.
— Eu não mexei nesses refletores… — murmurou, observando como as luzes começavam a escurecer e clarear por conta própria.
A atriz sentiu um frio na nuca.
— Você sentiu isso? — sussurrou para o colega.
“É só o vento.” quis dizer ele, mas a expressão dela o fez hesitar.
Na plateia, um espectador na fileira J ergueu o programa com mãos trêmulas.
— Isso… isso não estava escrito aqui…
No palco, o ator olhou para as próprias mãos e viu – só por um instante – que estavam translúcidas.
— Mantenham a calma! — ordenou o diretor, mas sua voz soou abafada, distante.
As cortinas começaram a se mover sozinhas, ondulando como se algo — ou alguém — as estivesse atravessando.
“Será que nós somos os verdadeiros espectadores esta noite?” pensou o ator, enquanto o teatro inteiro parecia respirar junto com eles.
E então, o primeiro assento vazio da plateia — aquele do velho ‘protestão’ — rangiu alto, como se alguém tivesse acabado de se sentar.
A plateia inteira virou-se para olhar a cadeira vazia, que agora balançava levemente, como se pressionada por um peso invisível. O ar ficou pesado, carregado de um perfume antigo — tabaco e loção de barbear da velha escola.
— Isso não está no roteiro… — cochichou a atriz, mas suas palavras saíram em um sopro congelado, visível no ar repentinamente frio.
O ator olhou para os pés da cadeira vazia. Lá, no chão de madeira, apareceram lentamente marcas de sapato — dois pequenos círculos de poeira se deslocando, como se alguém estivesse batendo o pé impaciente.
Na cabine de som, o operador agarrou os controles com força.
— Os microfones estão pegando… algo.
Era verdade. No sistema de áudio, um sussurro áspero e antigo ecoava, embora ninguém na plateia estivesse falando:
No meu tempo, o teatro tinha alma… mas vocês… vocês só querem cortar tudo em pedacinhos…
O produtor, pálido, agarrou o braço do diretor.
— Estamos transmitindo algo que não deveríamos…
No palco, o ator sentiu uma presença atrás dele. O reflexo nas paredes metálicas do cenário mostrou por um segundo a silhueta de um homem alto, de chapéu, antes de desaparecer.
— Quem está aí? — ele perguntou, sua voz ecoando de forma estranha, como se o teatro todo tivesse se tornado uma caixa de ressonância para algo além deles.
Então, uma risada seca rolou pelo auditório — vinda de todos os lugares e de lugar nenhum.
Vocês queriam teatro verdadeiro? Então aqui está.
As luzes piscaram uma última vez antes de o palco mergulhar na escuridão total. E naquele breu, todos ouviram claramente o som de passos subindo lentamente os degraus do palco…
O teatro ficou em absoluto silêncio. Até a respiração da plateia parecia ter cessado.
Então, um único holofote acendeu no centro do palco, revelando uma figura alta e desbotada, como uma fotografia antiga projetada no ar. O homem — se é que ainda podia ser chamado disso — usava um fraque surrado e segurava uma bengala que não tocava o chão. Seus olhos eram apenas manchas escuras sob a aba do chapéu.
— Vocês brincam de quebrar as regras, — sussuou a aparição, sua voz feita de estático e sussurros passados, — mas nem sabem o que libertaram.
Nos bastidores, o maquinista cruzou-se.
— Meu avô contava histórias… sobre um ator que morreu neste palco em 1923. Ele jurou que voltaria se algum dia o teatro perdesse sua alma.
A atriz sentiu algo escorrer por seu rosto. Ao tocar, percebeu que era tinta preta, como a de um palco antigo.
O espectro ergueu a mão, e os scripts de todos os atores voaram para o ar, páginas rasgando-se sozinhas.
— Chega de textos. Agora, a verdadeira peça começa.
O teatro inteiro gemeu, como se as próprias paredes estivessem se ajustando para outra realidade. Os espectros de plateias passadas começaram a aparecer nas cadeiras vazias, vestidas com trajes de outras décadas, seus rostos borrados como fotografias desbotadas.
O ator principal, tremendo, percebeu que suas mãos estavam ficando translúcidas.
— O que está acontecendo?
O fantasma sorriu, revelando dentes escurecidos pelo tempo.
— Você queria teatro imersivo, não foi? Agora, todos vocês farão parte… da minha eterna apresentação.
E quando as luzes se apagaram pela última vez, o Teatro Ernst Deutsch ficou vazio. Nenhum ator, nenhum espectador. Apenas um leve cheiro de tabaco antigo, e o eco distante de aplausos que já não vinham de nenhum tempo presente.
Na manhã seguinte, um novo cartaz apareceu na bilheteria, em estilo antigo:
HOJE E TODAS AS NOITES – A GRANDE OBRA FINAL
E embora o teatro permanecesse trancado, à noite, as luzes acendiam-se sozinhas, e risadas fantasmagóricas ecoavam pelos corredores vazios.
O espetáculo, afinal, nunca termina. Apenas muda de elenco.
- Eugen Bertholt Friedrich Brecht foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX.[↩]
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