Índice de Capítulo

    Atenção: dos capítulos 96 a 100, estamos passando por histórias paralelas e futuras do mundo de ASDI, por conta disso até mesmo a forma narrada, pode acabar sendo alterada para primeira pessoa, não estranhem.

    Canadá, Mont Tremblant.  

    Após roubar o livro, ele continuou andando como se nada tivesse acontecido. Suas roupas — maltrapilhas — intensificavam sua aparência cada vez mais desgrenhada.  

    “Todas as pessoas sorriem…”

    Miserável. Sentia-se assim.  

    Roubar dos outros para sobreviver, vender posses alheias. Esse era o seu trabalho. E assim, seguiu por horas naquele dia.  

    “Qual é o sentido de todos sorrirem?”, questionava-se incessantemente. Mas ele sabia a resposta. Afinal, eles tinham para onde voltar. Para quem recorrer. Por quem viver. E ele?  

    Um miserável.  

    Alguém que nem sequer lembrava do próprio nome. Perdido nos becos amargos da vida.  

    Ele olhou para as mãos — machucadas, manchadas de sangue ressecado. Repúdio.  

    — Até quando? — murmurou, a voz rouca, quase engasgada pela própria existência.  

    Ninguém respondeu. O vento gelado de Mont Tremblant levou suas palavras para longe, como sempre fazia.  

    “Talvez eu já esteja morto.”

    Mas o frio ainda doía. E isso era prova suficiente de que ele ainda respirava.

    — Prova suficiente de que ainda respirava… e de que ainda tinha algo a perder.  

    Os pés descalços arrastavam-se sobre a neve suja, queimando como lâminas. Cada passo era um lembrete: a vida cobrava um preço, mesmo daqueles que nada tinham.  

    “Por que carregar isso?”

    O livro roubado pesava em seu casaco esfarrapado. Não por seu tamanho, mas pelo que representava — palavras que não eram suas, conhecimento que nunca seria dele.  

    Um riso escapou de seus lábios rachados.  

    — Patético.  

    A viela estreita engolia a luz do entardecer, deixando apenas sombras e o eco de passos distantes. Alguém gritou, lá longe. Um som normal, como tantos outros que se perdiam na indiferença da cidade.  

    Ele apertou o livro contra o peito.  

    “Sobreviver não é o mesmo que viver.”

    Mas era tudo o que lhe restava.  

    O cheiro de pão fresco invadiu suas narinas, vindo de uma padaria ali perto. O estômago roncou, mas ele não tinha moedas. Só tinha o livro.  

    — Troca? — ofereceu ao homem atrás do balcão, a voz tão fraca que mal se ouviu.  

    O padeiro olhou para ele, depois para o volume surrado. Fez que não com a cabeça, os olhos cheios de um desdém que já não doía.  

    Ele saiu, o vazio no estômago agora igual ao do peito.  

    “Talvez amanhã.”

    Mas amanhã seria igual. E depois dele, outro. E outro.  

    Até que a neve o cobrisse de vez.

    — Até que a neve o cobrisse de vez…  

    O pensamento pairou no ar, tão concreto quanto o vapor de sua respiração. Ele parou diante de um espelho embaçado na vitrine de uma loja fechada. O reflexo que o encarava era de um estranho — olhos fundos, cabelos emaranhados, pele marcada por sujeira e frio.  

    “Quem foi você antes disso?”

    Nenhuma resposta. A memória era como neblina, dissipando-se quando tentava segurá-la.  

    Um carro passou, jogando água suja em sua direção. Ele não se moveu. A lama respingou em suas calças já encharcadas. Pouco importava.  

    — Você tá bem, cara? — Uma voz mais velha ressou em seus ouvidos, hesitante.  

    Ele ergueu os olhos lentamente. Um homem, não mais que quarenta anos, segurava um guarda-chuva e uma sacola de pão. Seus olhos eram claros, preocupados.  

    Ele abriu a boca, mas nenhum som saiu. O homem hesitou, então estendeu um pão envolto em papel.  

    — Pega. Tá frio.  

    Por um instante, ele apenas olhou. A mão estendida parecia pertencer a outro mundo. Um mundo onde gestos como esse ainda existiam.  

    Finalmente, agarrou o pão. A mão dele tremia.  

    — Obrig… — A voz falhou.  

    O homem já estava se afastando, o guarda-chuva balançando levemente.  

    Ele ficou ali, o pão quente queimando em seus dedos dormentes.  

    “Por que ele fez isso?”

    Ninguém dava nada de graça. Não aqui. Não para alguém como ele.  

    Mas o pão cheirava a fermento fresco, a um lugar que talvez existisse em algum outro canto do mundo.  

    Ele mordeu, devagar.  

    E, pela primeira vez em anos, sentiu algo além da fome.  

    Algo que doía mais que o frio.  

    “Esperança.”

    O sabor do pão desfez-se em sua boca, quente e macio, como um pedaço de normalidade que ele já não lembrava como sabia. Mastigou devagar, cada mordida um ritual, como se temesse que, ao acabar, aquele momento frágil se desfizesse como neve ao sol.  

    O homem já havia sumido na esquina, mas o peso do gesto ficara.  

    “Talvez nem todos tenham esquecido.”

    Ele olhou para o livro que ainda apertava contra o peito. As páginas estavam úmidas, a capa enrugada pelo tempo e negligência. Pela primeira vez, questionou-se se valia a pena trocar palavras por migalhas.  

    O vento cortante sacudiu seus ombros, mas o frio parecia menos intenso agora.  

    — Obrigado… — sussurrou para o vazio, como se o homem pudesse ouvi-lo.  

    E então, com um suspiro rouco, ele seguiu em frente — não mais arrastando os pés, mas com passos que, ainda que trêmulos, tinham um propósito renovado.  

    “Amanhã.”

    Desta vez, a palavra não soou como uma condenação.  

    Era apenas uma promessa.  

    “Talvez haja mais pão. Talvez haja mais vozes.”

    A noite caía sobre Mont Tremblant, pintando o céu de tons de violeta e laranja. As luzes das lojas começavam a cintilar, reflexos dourados espelhados nas poças da rua. Ele parou em frente a uma pequena livraria, ainda aberta. Dentro, um jovem balançava em uma cadeira de madeira, os óculos na ponta do nariz enquanto folheava um volume encadernado.  

    Por um momento, ele hesitou. Depois, empurrou a porta. Um sino tilintou suavemente.  

    — Posso… ajudar? — O jovem ergueu os olhos, a voz áspera, mas não hostil.  

    Ele abriu a boca, mas as palavras emperraram em sua garganta. Em vez disso, estendeu o livro — o mesmo que roubara horas antes. As páginas estavam levemente dobradas, a capa manchada de neve derretida.  

    O livreiro pegou o volume, virou-o nas mãos com cuidado.  

    — Nenhum título… — murmurou, os dedos passando pela lombada desgastada. — Estranho.

    Ele engoliu seco.  

    — Não… não quero vender. — A voz saiu em um fio, mas clara. — Quero… devolver.  

    O jovem estudou seu rosto por um longo momento. Depois, acenou com a cabeça e colocou o livro em uma prateleira atrás do balcão.  

    — Está feito.  

    Era tudo o que precisava ouvir. Ele virou-se para sair, os ombros mais leves do que lembrava serem.  

    — Espere.  

    O livreiro inclinou-se sobre o balcão, estendendo um pequeno volume em brochura.  

    — Leve este. É meu. Não está à venda.  

    Ele pegou o livro com mãos trêmulas. A capa era simples, sem título.  

    — Por quê?  

    O velho sorriu, os olhos brilhando atrás dos óculos.  

    — Todo mundo merece uma segunda chance. Até os livros. Até as pessoas.  

    Lá fora, a noite havia caído por completo. Mas pela primeira vez em muito, muito tempo, ele não sentiu medo da escuridão.  

    Ele segurou o livro contra o peito, mais leve que o anterior, mas infinitamente mais pesado de significado. O frio da noite ainda cortava seu rosto, mas algo dentro dele ardia suavemente, como uma brasa protegida do vento.  

    “Segundas chances.”

    As palavras ecoavam em sua mente enquanto caminhava pelas ruas agora desertas. Suas mãos, antes apenas receptáculos de coisas roubadas, agora tinham algo para guardar. Algo que lhe pertencia de verdade.  

    Passou pela padaria onde tentara trocar o livro. A luz já estava apagada, mas o cheiro doce de pão ainda pairava no ar. Sorriu, sem amargura, desta vez.  

    Uma placa balançava no vento à sua frente: ‘Ajudante Procurado – Estável’. O anúncio estava colado na porta de um pequeno café, as letras já desbotadas pelo tempo. Ele parou, olhou para o livro, depois para suas mãos calejadas.  

    — Posso… tentar.  

    A voz saiu mais forte do que esperava.  

    Dentro do café, uma mulher arrumava as mesas para o dia seguinte. Ela ergueu o rosto quando a porta se abriu, os olhos estreitando-se por um instante antes de se acostumarem com a luz.  

    — Estamos fechados, mas… — Ela parou, estudando seu rosto. — Você veio pelo anúncio?  

    Ele assentiu, segurando o livro com ambas as mãos, como uma âncora.  

    — Não tenho experiência. Mas… aprendo rápido.  

    A mulher olhou para ele por um longo momento, depois para o livro que ele apertava com tanto cuidado. Algo em seu rosto se suavizou.  

    — O café abre às seis. Se estiver aqui às cinco e meia, te mostro como funciona a máquina.  

    Era tudo. Não era um, sim, não era um não. Era uma possibilidade.  

    Ele saiu do café com passos mais leves. O livro agora tinha um lugar seguro no bolso interno de seu casaco, próximo ao coração.  


     

    E voltamos para um pov antigo do ano passado ainda kkkk, estive querendo retornar a esse personagem faz tempo.

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