Índice de Capítulo

    O Tigre-Chifre retornou bem mais depressa do que o ceifador desconfiava.
    O grupo caminhou um dia inteiro tomados por desconfiança e medo, mas o ataque veio apenas ao anoitecer. O barão Jutred tentara se aproximar algumas vezes, porém, o ceifador fizera questão de se afastar até a desistência do barão.

    Boyak descansava próximo à fogueira, enquanto observava o crepitar suave das chamas, mas sua meditação foi interrompida por um leve tremular da madeira na fogueira.

    Seu instinto de ceifador despertou e, sem hesitar, alcançou o vidro com fluido de oração, tomou o conteúdo e sentiu a força se espalhando pelos membros do seu corpo.

    Seu plano era simples: derrotar a criatura com um único golpe. Quando o chão estremeceu novamente, ele preparou o punho de Deus.

    — Acorde os outros! — Boyak gritou para um homem encarregado de vigiar o acampamento.

    O homem ficou imóvel por alguns instantes, fascinado pela luz que irradiava da mão do ceifador. Então, como se despertasse de um transe, saiu correndo, gritando para alertar os outros.

    Os olhos de Boyak finalmente encontraram o monstro.

    A criatura, uma massa de músculos com rosto de tigre, avançava com ferocidade, derrubando as árvores que encontrava pelo caminho. 

    Boyak ergueu o punho e o direcionou para a aberração, mirando diretamente em sua cabeça. 

    Os olhos da fera se fixaram nele, como se o tivesse escolhido como seu alvo.

    Isso, venha, o ceifador pensou.

    As pessoas do acampamento acordavam em polvorosa e correriam de uma lado para o outro não fossem as instruções do ceifador durante o dia. Eles começaram a se agrupar e deixar o local com suas famílias.

    O barão Jutred, por outro lado, berrava ordens aos seus guardas, exigindo que localizassem o ceifador. Sua filha estava agarrada aos seus joelhos, os olhos cheios de medo, enquanto sua esposa gritava desesperada para que partissem imediatamente. Boyak não havia explicado para ele como agir por conta da discussão do dia anterior. 

    A criatura finalmente entrou no campo de ataque de Boyak. Ele afastou as pernas, preparando o punho para desferir o golpe.

    No entanto, um movimento inesperado da aberração o forçou a mudar de ideia rapidamente. O Tigre-Chifre agarrou um pedaço de tronco caído e o arremessou em direção ao acampamento.

    O tronco voou com uma velocidade assustadora, carregando a intenção mortal de esmagar uma dúzia de pessoas sob sua sombra.

    Boyak precisou agir depressa. Sem tempo para cancelar o punho de Deus, ele simplesmente mudou sua trajetória e saltou em direção ao tronco.

    Seu soco colidiu com o objeto, despedaçando-o em inúmeros fragmentos.

    Os pedaços voaram para todos os lados, e um deles seguiu em linha reta rumo ao barão.

    Os olhos sagazes de Boyak conseguiram ver o trajeto dele, porém, ainda no ar, o ceifador era incapaz de se impulsar para impedi-lo.

    No entanto, Jutred havia assistido a cena e percebeu o pedaço de tronco vindo em sua direção. Seus pés reagiram rápido, movendo-se para longe. Contudo, seus instintos não consideraram a filha agarrada aos seus joelhos, fazendo o barão tropeçar e cair, levando a menina junto na queda.

    Boyak sentiu o gosto amargo da tragédia antes mesmo de vê-la concluída.

    O barão se desviou da trajetória do tronco ao cair, porém, com isso, sua filha entrou no caminho.

    A madeira atravessou o peito da menina como se fosse um pedaço de papel e fincou no chão espalhando sangue e carne ao redor, inclusive na roupa do barão.

    Jutred soltou um grito de horror que se juntou às lágrimas.

    Logo em seguida, a aberração já estava em cima dele, pronta para atingi-lo com seu chifre.

    O barão ergueu a mão como instinto de defesa, mas tudo o que recebeu foi um banho de sangue e pedaços de cérebro.

    Boyak havia executado outro punho de Deus e acertara a cabeça do monstro em cheio, desfazendo-a em vários pedaços.

    Jutred estava ainda mais horrorizado e ficou parado por longos minutos em uma espécie de transe. Sua esposa precisou ser levada por outras pessoas enquanto retiravam o corpo da menina fincado no chão com o pedaço de tronco.

    O ceifador deu uma gota de fluido para acalmá-la, mas o barão recusou qualquer ajuda.

    Quando o dia amanheceu e todo o terror havia se transformado em lembrança, Jutred se aproximou de Boyak. 

    O ceifador já sabia o que viria. Quando as pessoas eram salvas, na maioria das vezes, ele era o herói. Porém, quando alguém morria no processo de derrota de uma aberração, ele era o vilão.

    — Me disseram que você avisou a todos a respeito dos procedimentos a serem tomados durante o ataque da aberração — Jutred comentou com um semblante duro. — Mas não avisou a minha família.

    — Esse não é um bom momento para discutir isso.

    — Esse é o momento perfeito! — Jutred agarrou-o pela gola do casaco. — Está vendo ali na carroça? Aquele é o corpo da minha filha! E ela está morta simplesmente porque você não nos avisou! Você poderia ter aceitado a minha oferta e ela estaria viva agora, mas seu egoísmo patético falou mais alto.

    Boyak não respondeu. Não iria discutir com um homem em luto. Manteve sua postura de piedade.

    — Vou levar um corpo inerte para casa por sua culpa. Você pensa nisso? É claro que não, afinal, não é a sua filha que está ali. Você já parou pra pensar que vocês ceifadores não são tão heróicos quanto pensam?
    Mais silêncio.

    Jutred largou a gola dele e abandonou o ceifador.

    A partir daquele momento, não falou e nem se dignou a olhar para Boyak. Sua mente, contudo, não parava de pensar nele.

    Boyak voltou para casa dois dias depois.

    Isabela ficou eufórica com seu novo laço amarelo para a cintura e agradeceu o presente dando vários beijos no pai.

    Mesmo dizendo para si que fizera todo o possível para salvar o barão e sua filha, quando estava com Isabela no colo, as palavras de Jutred voltaram a atormentá-lo. De fato, ele não sabia a sensação de perder uma filha.

    Foi Ingrid, sua esposa, quem conseguiu acalmá-lo.

    — Você fez tudo o que pôde naquele momento. Você sempre faz — ela lhe disse quando estavam sentados no chão da varanda da casa olhando a noite.

    — Eu poderia ter explicado sobre o que fazer quando o monstro aparecesse, mas por conta da proposta indecente do barão, me recusei a fazê-lo — ele confessou com a cabeça no colo dela. — Não pensei na família do barão. De alguma forma, queria puni-lo.

    — Querido, você tem muitos defeitos, mas tenho certeza de que se pudesse salvá-lo, você o teria feito. Negligência com vidas não é um dos seus defeitos. Pelo contrário, às vezes, você se preocupa demais. Inclusive, está pensando em como pode se retratar com o barão nesse momento.

    — Você me conhece tão bem…

    Ela acariciou os cabelos dele.

    — Deve ter uma forma de fazer algum bem para ele — Boyak falou.

    — Você vai pensar em algo.

    Aquela foi a última noite em que conversaram como pessoas civilizadas, como marido e mulher.

    No dia seguinte, após a refeição da manhã — a última com sua família — Boyak foi para a cidade em busca de algum contrato para caçar aberração e prometeu voltar em dois ou três dias.

    A visão de Isabela se despedindo na varanda da casa com o laço amarelo preso aos cabelos ficou em sua mente por muito tempo e foi responsável por seus mais perturbadores pesadelos.

    Dois depois, enquanto conversava com um comerciante a respeito de uma possível aberração na região da fronteira dos reinos livres, Boyak encontrou Ingrid, sua esposa, procurando-o.

    — Ingrid, o que faz aqui? — ele perguntou com uma mistura de alegria e curiosidade.

    Ela arqueou as sobrancelhas.

    — Ué, você me chamou.

    — Eu? Quem disse?

    — Um mensageiro me entregou uma carta escrita por você e me chamava para vir até aqui, pois precisava de mim. Estou te procurando quase o dia inteiro.

    Os olhos de Boyak buscaram imediatamente por Isabela.

    — Cadê a Isa?

    — Eu a deixei com Breanna.

    Era a vizinha mais próxima deles.

    — Precisamos ir embora, não estou com um bom pressentimento.

    Boyak conseguiu um cavalo emprestado para Ingrid. 

    — Vou na frente — ele falou e usou fluido de oração para potencializar sua velocidade.

    Mesmo com essa força, ainda levou um dia inteiro para chegar até sua casa e precisou usar outro frasco de fluido para não ceder ao cansaço, mas sabia que quando o efeito passasse um preço alto seria cobrado de seu corpo.

    Essa questão, entretanto, ficou em segundo lugar na sua cabeça assim que viu a varanda de sua casa destruída e uma parte da parede desmoronada.

    O coração cavalgou. As palmas das mãos suaram. A saliva deslizou pela garganta.

    A paralisia ante a cena durou apenas alguns segundos e, em seguida, o ceifador saiu correndo e atravessou o rombo na parede. 

    Suas pernas se detiveram quando seus olhos cruzaram com o cenário.

    Os móveis estavam destruídos e seus pedaços espalhados pelo chão.

    No centro de tudo, cercada por uma poça de sangue, jazia o corpo pequeno de Isabel com os braços em riste como alguém que tenta se defender de algo indefensável.

    Seu laço amarelo estava ao seu lado, totalmente manchado de vermelho.

    É muito bom ter você aqui.
    Espero que esteja curtindo a jornada de Boyak e Anayê.

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