Índice de Capítulo

    Quando Anayê saiu do casarão, viu o mestre sentado no chão de pernas cruzadas mascando uma folha de hortelã. 

    Um sol reluzente brilhava sob as flores coloridas da ilha dando um belo contraste para o cenário.

    Ele levantou a cabeça para ela e disse:

    — Foi ainda mais rápido do que pensei.

    — Obrigado.

    — Ora, não me agradeça, eu não fiz nada.

    — Você…  Vocês me trouxeram até aqui e finalmente pude me livrar daquela marca. Como não agradecer?

    — Pensando por esse aspecto… aceito a sua gratidão. Meus alunos, Boyak e Thayala, sempre são atenciosos no cumprimento de suas missões, ainda mais quando o assunto é salvar pessoas.

    Anayê deu outra espiada na casa deixada para trás. Por um instante, teve vontade de voltar e agradecer aos três mais uma vez. Ou quem sabe aquele sentimento não passasse de uma vontade inconsciente de continuar com eles por mais tempo.

    — Agora me ajude a levantar, por favor.

    Ela estendeu a mão e ajudou o velho a se colocar em pé.

    — Você me parece bem melhor — o mestre comentou. — Seu rosto está quase brilhando de alegria.

    Dessa vez, Anayê não se envergonhou por ser transparente. Na verdade, queria mostrar a face da liberdade estampada em seu rosto.

    — Oh! E retornará com presentes? — o velho perguntou notando que ela trazia uma caixa de madeira bem polida.

    Ela assentiu, relembrando o pedido do Inventor e do Escriba.

    — Não são para mim — falou enquanto começava a acompanhar o mestre de volta a ponte de corda. — Eu já recebi meu presente.

    — O Deus sem face adora presentear, faz parte do seu jeito de ser.

    — Percebi.

    — Fiquei sabendo do seu desejo de se tornar uma ceifadora — o mestre revelou evitando pisar em uma planta. — Isso é um pouco raro por aqui.

    — O Guerreiro disse que o senhor poderia me treinar.

    — Oh, sim, eu posso, embora esteja ficando velho demais para isso.

    Os dois finalmente entraram na ponte. Porém, diferente da primeira vez, Anayê não sentiu medo ou remorso, nem sequer ouviu a voz de seu irmão falando. A ponte não balançou, nem vento algum soprou.

    Quando chegaram do outro lado e Anayê se virou para vislumbrar novamente a ilha flutuante, foi tomada de repentino espanto. Não havia mais ponte ou ilha, tudo não passava de uma imensidão vazia povoada por pequenas nuvens e algumas aves.

    — O efeito do fluido está passando — o mestre explicou. — Algumas coisas ficam invisíveis sem o efeito dele, pois falta de discernimento à mente.

    Anayê continuou fitando, incrédula. De repente, era como se tudo aquilo fosse parte de um sonho, um sonho muito real e vívido, estranho e deslocado ao mesmo tempo.

    — Mas não precisa se preocupar, voltará a se encontrar com o Deus sem face, com certeza. E nós voltaremos à ilha flutuante em breve.

    Ela assentiu e aceitou o fato, embora ainda se sentisse estranha.

    — Você pode descansar e entregar os presentes ao destinatário. Depois falaremos de seu treinamento.

    — Obrigada, mestre.

    De repente, foi cercada por uma euforia ao pensar em sua tarefa de entregar os presentes. Foram-lhe dadas palavras específicas destinadas ao presenteado.

    Ela caminhou na direção de seu destino. Os passos parecendo apressados inconscientemente, o peito começando a acelerar e as mãos a suar.

    Anayê atravessou o casarão e entrou no quarto do ceifador com um sorriso estampado no rosto. Entretanto, o cômodo estava vazio.

    Saiu procurando pela casa, mas acabou por encontrá-lo na parte de trás do terreno, sentado em frente a fonte de fluido azul.

    Seu cabelo branco estava bagunçado, sua camisa marrom abarrotada e não estava calçando sapatos ou chinelos.

    Ela correu na direção dele e sua chegada foi recebida com um sorriso, muito embora seu rosto estivesse visivelmente pálido.

    — O retorno triunfal de Anayê — ele falou com um tom alegre.

    — Bom dia! Eu te procurei pela casa toda.

    — Sabe como sou, odeio ficar parado em cima de uma cama. Precisava respirar um pouco de ar fresco.

    — Fico feliz que esteja bem.

    — Ora, não falemos mais de mim nesse estado deplorável. Vejo que finalmente se livrou daquela marca terrível.

    Anayê assentiu e tirou alguns fios de cabelo para mostrar melhor.

    — Tão novo quanto pele de bebê — o ceifador comentou.

    — Foi tão… diferente de tudo que eu já imaginei.

    — Sempre é assim.

    — Acho que nunca mais serei a mesma pessoa depois desse dia.

    — Tenho certeza que não. E fico muito feliz que tenha conseguido.

    — Eu não teria chegado aqui sem você.

    — Eu sei — ele falou de forma orgulhosa. — Ouço isso sempre.

    Ela sorriu. Sentira falta daquele senso de humor.

    — Eu nunca tinha pensado direito em um Deus — revelou. — Mas as minhas referências eram péssimas.

    — Estando nas terras devastadas, as referências ficam realmente confusas.

    — Mas, sabe, se tivesse imaginado, gostaria que fosse algo parecido com os Três Que São Um.

    — Seria uma imaginação e tanto — ele franziu o cenho. — Duvido que exista alguém em todo o mundo que consiga pensar em algo assim. Eu mesmo já andei por muitos lugares desse continente e já ouvi falar de muitos deuses, mas nenhum com tal complexidade. É uma noção dificilmente encontrada na mente dos homens.

    — Você está certo, acho que é impossível para nós conceber essa ideia.

    Os dois ficaram em silêncio por um instante, cada um absorvendo a revelação do Deus sem face que tivera.

    — E o que você ganhou? — Boyak perguntou apontando para a caixa nas mãos dela.

    — Hã? Ah! Eu me distraí e acabei esquecendo disso — ela estendeu o objeto para ele. — Deus me pediu para entregar esse presente em suas mãos.

    O ceifador estreitou os olhos. Por um momento, permaneceu sem reação, e depois pegou a caixa. Ela estava habilmente entalhada e moldada, e não era pesada.

    — Antes de abrir, bem, eles me pediram para te entregar uma mensagem também.

    Ele assentiu para que ela continuasse.

    Anayê suspirou, relembrando a frase do Escriba: “Entregue a mensagem palavra por palavra, isso é muito importante.”

    — Estou aguardando a sua visita, você não veio nos ver desde que Isa e Ingrid se foram.

    As mãos do ceifador estremeceram ao ouvir aqueles nomes.

    — Este presente é uma forma de dizer que nos importamos e que aquela tragédia não foi culpa sua. Sentimos sua dor e trabalhamos para transformar esse acontecimento terrível em bem. Volte, filho, espero por você.

    Boyak estava tremendo. Sua face, anteriormente pálida, agora era quase transparente.

    Repentino, ele abriu a caixa em um piscar de olhos.

    Anayê ficou consternada com a reação dele. Pensava que tudo seria diferente, que veria a alegria se instaurar no ceifador. Porém, aquela faceta de Boyak era desconhecida e estranha.

    Os olhos dele se encheram de lágrimas quando visualizaram o item dentro da caixa. E, um instante depois, Boyak estava chorando como uma criança diante de uma moça desentendida e perdida.

    Anayê espiou dentro da caixa esperando ver alguma coisa que respondesse as suas dúvidas. 

    Entretanto, tudo o que viu foi um laço de cabelo feminino, amarelo, provavelmente pertencente a uma criança por causa do tamanho.

    E naquele objeto tão pequeno estava todo o coração do ceifador.

    É muito bom ter você aqui!
    Espero que esteja curtindo a jornada de Boyak e Anayê.

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