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    Boyak não soube quanto tempo ficou imóvel. Quando finalmente recuperou o controle das pernas e teve forças suficientes para caminhar, se aproximou passo a passo do pequeno corpinho no chão.

    Sua mente, incapaz de aceitar a realidade, buscava desesperadamente inúmeras formas de negar o que havia acontecido.

    Primeiro, achou que não era Isabela. Porém, o laço amarelo ao seu lado excluiu esse argumento.

    Depois, considerou que ela ainda poderia estar viva. Contudo, quanto mais se aproximava, mais o fato terrível era absoluto.

    Isabela trajava um vestido azul com fitas brancas, que outrora fora lindo. Havia enormes marcas de garras nos locais onde o tecido se rompera e várias fitas manchadas de vermelho. Um tufo de mechas de cabelo jazia do outro lado do cômodo.

    O ceifador se ajoelhou ao lado do corpo e não reconheceu o rosto de sua própria filha. Restava muito pouco do que um dia fora familiar — apenas o olhar aterrorizado e a boca aberta em um grito silencioso de horror.

    Boyak tomou-a nos braços com o cuidado de quem toma um bebê. 

    E então chorou.

    O lamento se tornou em um grito de dor, um som que apenas um pai diante de uma cena daquelas poderia emitir.

    Depois de esgotar a voz em gritos, o ceifador pegou o último vidro de fluido de oração e o despejou na boca da menina.

    — Vamos, amor, volte para mim, volte para mim — suplicou entre soluços.

    Isabela permaneceu inerte.

    — Você consegue, você consegue.

    Boyak não desistiu. Despejou o fluido nos ferimentos espalhados pelo corpo da garota, enquanto suas súplicas ao Deus Sem Face se intensificavam.

    — Traga a minha menina de volta, por favor! Traga a minha garotinha de volta, eu imploro.

    As feridas não cicatrizaram. O corpo não se curou. A menina não voltou.

    E, enfim, não havia mais fluido para ser usado e nem forças no ceifador para implorar.

    Ele continuou segurando Isabela em um abraço desesperado, até que seus braços cederam ao cansaço e sua energia se esvaiu

    — Boyak?

    O ceifador ergueu os olhos e enxergou sua esposa parada na entrada da casa. Ele perdera a noção de quanto tempo havia se passado.

    Ingrid já estava chorando antes mesmo de entender toda a situação e se junto ao marido no abraço ao corpo que um dia fora sua filha.

    Os dois permaneceram ali até a lua encher os céus e suas mentes ficarem dopadas pelo torpor do luto. Então, finalmente, se levantaram e levaram o corpo de Isabela para um lugar mais apropriado.

    Eles choraram mais quando o sol apareceu e a realidade cruel se abateu novamente.

    Isabela foi sepultada nas Colinas Verdes e seu enterro contou com alguns ceifadores e um bonito discurso do mestre. A vizinha responsável por cuidar dela também tivera um destino semelhante.

    Boyak, no entanto, não falara sequer uma palavra desde a morte da filha e continuou assim por mais dois dias, muito embora sua mente não parasse de gritar, assombrada por perguntas complexas. Quanto tempo ela levara para morrer? Será que ela tinha gritado por seu nome? Ela tinha suplicado para seu pai salvá-la?

    Ingrid se assemelhava a ele com a diferença de que se perguntava o motivo de tal tragédia ter acontecido com eles.

    Às vezes, os dois ficavam juntos, mas não se olhavam e nem se falavam.

    Após dois dias, Boyak saiu do seu quarto e encontrou o mestre do lado de fora observando o amanhecer. O ceifador dirigiu-lhe apenas uma pergunta:

    — Descobriram quem era o mensageiro?

    O mestre se recusou a responder.

    — Isto não lhe fará nenhum bem.

    — Quero saber o nome dele.

    — Sua esposa precisa de você agora. Esse é um momento em que vocês precisam ficar juntos para se curarem desse acontecimento terrível.

    — Me diga o nome dele, mestre — sua voz tranquila estava carregada de autoridade.

    — Não vale a pena. Escute o que estou dizendo, isso não vale seu esforço.

    — Eu quero saber o nome dele! — Boyak vociferou e seus olhos se encheram de lágrimas imediatamente.

    — Você precisa ir até a ilha flutuante para falar com os três.

    Boyak enxugou as lágrimas.

    — Não tenho nada para falar com ele.

    — É claro que tem.

    — Se você não me disser o nome, irei descobrir sozinho.

    — Sinto muito.

    A conversa havia se encerrado, mas o ceifador descobriu o nome do mensageiro ainda mais rápido, pois quando voltou ao quarto encontrou Ingrid.

    — Para onde vai? — ela perguntou percebendo as intenções dele.

    Boyak hesitou por um instante. O cabelo da esposa estava bagunçado em um emaranhado de fios e seus olhos cheios de olheiras.

    — Sinto muito — ele falou. — Eu fui… incapaz de protegê-la.

    Ingrid baixou a cabeça.

    — Foi o barão Jutred — a mulher revelou. — Ele contratou um invocador para fazer uma aberração atacar nossa filha.

    A notícia espantou o ceifador. Por um breve momento, ele foi tocado pela obviedade da informação e, em seguida, tomado pela raiva cega.

    Se limitou ao silêncio, pegou um frasco de fluido e deixou o quarto.

    Ingrid já sabia o que ele ia fazer, mas dentro de si, sentiu como se fosse justo.

    Boyak pegou um cavalo e partiu rumo ao rancho do barão.

    Um temporal o atingiu no caminho, mas ele continuou esporeando o cavalo. A imagem em sua cabeça era Isabela caída no chão com o laço amarelo ao seu lado.

    Muitas pessoas o reconheceram quando ele adentrou o vilarejo, e acenaram ou cumprimentaram. No entanto, toda a atenção do ceifador estava na construção ao sul do vilarejo, um pequeno castelo com apenas uma torre adornado por um estandarte da casa de Jutred. Também havia três guardas monitorando a entrada do local.

    Tão logo Boyak chegou próximo do portão do castelo e desmontou do cavalo, o barão Jutred apareceu na porta e ergueu os braços.

    Seu semblante era uma mistura de alívio e desprezo ao mesmo tempo.

    — Então agora tenho toda a sua atenção, não é mesmo?

    Um trovão estrondou o ambiente e chacoalhou as emoções dos presentes. Algumas pessoas cochichavam sem entender e os guardas também se mantinham paralisados.

    Boyak cerrou os punhos e os dentes em um rosnado.

    — Eu deveria dizer que sinto muito — Jutred continuou. — Mas seria mentira. Tudo o que sinto é alívio pela justiça que realizei.

    O ceifador franziu o cenho.

    — Justiça?! Colocar uma criança para enfrentar uma aberração é justo?!

    — Me diga você — Jutred apontou com o braço encharcado pela chuva. — Deixar uma pessoa desinformada e vulnerável ao ataque de uma aberração é justo?

    Boyak baixou a cabeça por alguns instantes e confessou:

    — Eu falhei com você — e disse mais alto. — Não houve um dia em que não pensasse em uma forma reparar o meu erro.

    — Oh, quanta gentileza — Jutred desdenhou. — Mas, me diga, como exatamente poderia reparar a morte da minha querida filha? Por acaso, você tem o poder de trazê-la de volta? Porque esse seria o único jeito.

    — Você não me deu tempo para pensar nisso!

    — A morte de uma pessoa não é como um vaso quebrado que podemos consertar. Não, não, não — o barão coçou a cabeça. — Você só sente muito porque agora está entendendo a minha perda. Se eu não tivesse tomado a sua filha, duvido que se lembraria de mim.

    A chuva caía de modo torrencial e implacável tornando o chão do vilarejo em lama.

    — Você não precisa reparar nada, Boyak. Eu só queria ver essa cena. — Deu um passo na direção do ceifador. — Você tão derrotado e desolado quanto eu naquele dia. Esse é o meu tipo de justiça.

    — Ela não tinha nada a ver com isso! Se queria resolver tudo, deveria ter vindo me atacar! Eu sou o culpado! Eu!

    — Humpf. E que benefício tal atitude me traria? Talvez ver você morto me trouxesse uma satisfação temporária, mas logo passaria.
    Ele riu triste e continuou:
    — Entretanto, assisti-lo desse jeito sabendo que não poderá fazer nada para salvar sua filha, oh sim, isso sim é recompensador. Agora você e eu estamos ligados pelo laço da culpa e do fracasso em proteger as filhas que amamos.

    Um sorriso macabro se abriu nos lábios do barão, despontando um sentimento de alerta dentro do ceifador.

    — Você só pode estar louco — Boyak murmurou.

    — É difícil manter qualquer juízo quando se assiste a filha ser empalada. Sabe o que é ver o fim de uma pessoa chegando e não poder fazer nada? Absolutamente nada?! Você teve a benção de não presenciar a morte de Isa, não é? Gostaria de saber como aconteceu? Se foi rápido, se ela gritou, se implorou pela ajuda do pai?

    — Já chega!

    O punho do ceifador estava ficando vermelho.

    — Soa cruel demais para você?

    — Você já teve o que queria, seu maldito.

    — Não, meu caro ceifador, ainda resta uma parte do enredo. 

    Por um instante, ao retumbar de um relâmpago, Boyak viu os olhos do rival se tornarem amarelos.

    — Hoje vou ser morto por suas mãos e, depois disso, você vai carregar esse fardo pesado nas suas costas até o fim da sua vida. Você matou a minha filha, matou a sua filha e, por fim, me assassinou.

    Boyak permaneceu em silêncio com os olhos fixados no barão. O semblante feliz do homem não condizia com suas palavras insanas.

    — Sabe, quando a aberração destruiu a parede da casa e encontrou Isabela e sua vizinha no cômodo, as duas gritaram feito porcos prontos para o abate.

    Algo dentro do estômago do ceifador revirou.

    — Já basta… — murmurou.

    — A vizinha num ato patético de heroísmo colocou a garota atrás de si. Bem, ao menos, ela foi mais honesta e corajosa do que você ou eu. Talvez ela devesse ter sido ceifadora no seu lugar.

    — Já basta!

    — Não! — o barão berrou. — Não basta até você ser humilhado. Não basta até ter destruído todas as emoções dentro de você. Ou até ceder à sua vontade de arrebentar a minha cara. A pergunta de todos é: qual vai ser a sua escolha? Qual é o seu tipo de justiça, Boyak?

    É muito bom ter você aqui!
    Espero que esteja curtindo a jornada de Boyak e Anayê.

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