Capítulo 47 - A Culpa e o Culpado
Anayê arregalou os olhos sentindo um medo imenso e terrível daquela cópia macabra de seu amigo.
O Boyak sombrio sorriu para ela e falou:
— Quanta culpa e amargura nesse coraçãozinho, hein?
E mal ele havia fechado a boca, Anayê sentiu uma amargura gigantesca no peito. Por que Zafael a tinha abandonado? Porque você é um peso, ela ouviu-o dizendo em sua mente.
Viu seus olhos julgadores em cima de si. Aquele olhar de pena misturado com desprezo. Oh, sim, era por isso que ele tinha ido embora, porque ela era fraca.
Ele sempre levava os castigos no lugar dela, sempre se colocava como um irmão protetor, mas, enfim, havia se cansado e desistido. Por isso, ele escolhera servir a Astaroth.
A angústia em seu peito se tornou insuportável e começou a dificultar sua respiração.
De repente, Anayê se deu conta de que o Boyak sombrio estava em sua frente. Ela não teve tempo para reagir quando a mão dele agarrou seu pescoço.
Anayê tentou se desvencilhar do apertão com os braços, mas sua força parecia ter abandonado todo o seu corpo.
— Vou me alimentar desse remorso bem devagar — a criatura com pele de Boyak disse, embora a sua voz fosse bem mais aguda do que a original.
Boyak sombrio abriu a boca e Anayê viu uma fumaça cinzenta deixando seu corpo enquanto sentia o peito arder ainda mais.
Ela tentou gritar, mas o grito ficou sufocado na garganta.
Então, em um piscar de olhos, não era mais o Boyak sombrio diante dela e sim a sua mãe. E não havia mais mãos em sua garganta. Os olhos de Anayê se arregalaram.
— Oh, minha querida — e era a voz de sua mãe.
Quanto tentara lembrar do timbre de sua voz? Quanto lutara para não esquecer o formato do seu rosto?
Anayê começou a chorar. As mãos doces de sua mãe enxugaram as primeiras lágrimas.
— Está tudo bem, está tudo bem, minha querida.
— Mãe, eu senti tanta a sua falta — a garota falou entre soluços.
— Venha cá, garotinha.
E as mãos a puxaram para ficar guardada dentro do abraço caloroso.
Anayê retribuiu o gesto segurando a sua mãe o mais forte que podia. Não ia perdê-la de novo. Nunca mais.
— Oh querida, quanta solidão nesse coraçãozinho. Fique tranquila. Pode chorar.
Anayê sentiu seus cabelos sendo afagados.
— Você carregou esse fardo sozinha por muito tempo, mas pode deixar comigo. Não vai ficar mais só.
A jovem ouviu tudo e sentia mais vontade de chorar, como se houvesse um oceano de tristeza vazando do seu peito em dor.
— Vamos, garotinha, deixe tudo sair.
E chorou ainda mais. Cada vez que sentia a emoção de estar de volta nos braços da mãe, ela se debulhava em lágrimas. E, no entanto, nenhuma lágrima trazia alívio a sua angústia.
Enquanto Anayê se perdia em seu próprio remorso, Boyak revivia novamente a sua tragédia. Cena a cena, sabendo da inevitabilidade do fato.
Quando pensava que conseguiria salvar a filha do barão, ele falhava de novo.
Quando se imaginava correndo e chegando a sua casa a ponto de salvar sua filha, ele não chegava a tempo.
E, por mais esforço que empreendesse em impedir sua esposa de ir embora, ela sempre tomava a mesma atitude.
E, mesmo assim, ele se via repetindo os mesmos dias, os mesmos erros e as mesmas desgraças.
— Pare agora mesmo!
De longe, ambos, Boyak e Anayê, ouviram um grito. Mas foi como uma coceira no pescoço e eles voltaram aos seus arrependimentos e memórias.
Embora não soubessem, a responsável pelo grito fora Thayala.
A ceifadora ainda dormia quando as crianças a acordaram alertando sobre o perigo. Thayala se levantou depressa e ficou espantada quando enxergou uma área circular envolta por uma densa fumaça cinzenta. No centro do círculo, os corpos de Boyak e Anayê jaziam cercados pela névoa. De suas bocas, ouvidos e narinas escorria uma substância viscosa e arroxeada, quase parecendo viva.
Thayala levou alguns segundos para reagir diante da cena, pois mesmo tendo presenciado muitas cenas bizarras, essa era chocante por envolver diretamente pessoas conhecidas.
Quando seu torpor se dissipou, ela percebeu que a área circular aumentava aos poucos, espalhando a fumaça cinzenta. Logo, todo o monte estará encoberto por essa névoa, ela pensou.
Então agarrou um frasco de fluido de oração que sempre deixava guardado de reserva. Na pressa de atender o chamado das crianças, ela esquecera seu equipamento no casarão.
Thayala molhou a ponta dos dedos com fluido, se abaixou e tocou o chão. Imediatamente, um círculo de fluido de oração se formou em torno da área tomada pela fumaça.
Era uma solução temporária que atrasaria a proliferação da névoa, mas ela precisava encontrar a aberração responsável por aquilo.
Em seguida, tomou o restante do fluido no frasco e sentiu a energia percorrendo seu corpo. Depois olhou rapidamente para as crianças e pediu para ficarem afastadas.
Então entrou no círculo.
Thayala fez um gesto com as mãos para preparar suas adagas de vento, entretanto, interrompeu o gesto quando viu sua irmã de frente para Anayê.
A visão deixou suas pernas trêmulas.
— Tyellen… — a ceifadora murmurou, boquiaberta.
Os curtos cabelos da irmã se destacavam em seu rosto fino e olhos pequenos. Abriu os lábios carnudos em um sorriso para Thayala.
— É muito bom ver você — Tyellen disse, mas faltava emoção em sua voz.
A ceifadora percebeu esse detalhe, porém, outro sentimento ainda mais forte tomou conta de sua mente. A questão era que prometera ao seu pai cuidar de sua irmã, afinal, esse tinha sido o objetivo de seu treinamento desde criança.
Era assim em seu reino. O segundo filho se tornava o protetor do mais velho, e tal atitude era vista com grande honra e respeito pelo seu povo.
Tyellen se aproximou. Trajava um vestido azul com muitas jóias, braceletes e um pingente que havia ganhado de Thayala em seu vigésimo aniversário.
— Irmã, quanto tempo faz? Quatro ou três anos?
Thayala engoliu a saliva e percebeu seu braço tremendo. Tyellen tocou o rosto dela.
— Por que não foi me ver, irmã?
A ceifadora sentiu o toque doce e gentil da irmã e se envergonhou. Sequer sabia por onde começar ou como pedir desculpas.
— Eu… Eu…
— Não diga mais nada, Thay.
Fitando os olhos escuros da irmã, Thayala soube que tinha sido desvendada. Não conhecia esconder nada daquele olhar. Era assim com Tyellen, sempre sabia o que a sua irmã estava sentindo.
— Eu sou estúpida! — Thayala soltou de repente. — Prometi ao papai que não sairia do seu lado e agora eu…
— Xiii…
Tyellen tocou os lábios da irmã.
— Sei que não voltou porque estava envergonhada de quebrar a sua promessa, mas fui quem te libertei desse voto.
— Isso só faz com que eu me sinta mais culpada.
— Não digo isso, irmã. Mesmo tendo quebrado a sua promessa, você ainda é do meu sangue.
Thayala estremeceu de novo. Uma parte interior do seu subconsciente tentava alertá-la de que havia algo errado, pois, quanto mais sua irmã falava, mais ela se sentia culpada.
Mas o que veio em seguida, haveria de quebrar todas as suas defesas emocionais.
— Thay…
A ceifadora olhou para o lado ao ouvir o chamado vindo de uma voz grossa.
Um homem vestindo uma armadura completa e brilhante, exceto pelo capacete, jazia parado ao lado das duas.
Os olhos pequenos eram semelhantes aos de Tyellen. E portava um cabelo liso e um grande bigode.
— Pai?
A última vez em que Thayala vira seu pai fora há cinco anos quando ele morrera por conta de uma doença. A peste do sangue, conforme chamaram, levou embora toda a força e a vida do corpo dele, deixando-o fraco e magro.
Então Thayala colocou as mãos no rosto e chorou por diversos motivos diferentes. Fosse a morte degradante e lenta do pai e sua incapacidade de impedi-la, fosse pela promessa quebrada de proteger a irmã, fosse pela vergonha de voltar para o seu reino e ser tratada como um indigna.
Os braços grandes do pai a puxaram e ela chorou em seu peito tal qual fazia quando era criança.
— Chore, minha menina, chore. Coloque tudo para fora.
E ela chorou.
Fora do círculo de oração, as crianças olhavam espantadas enquanto uma substância roxa também começava a sair da boca de Thayala.
É muito ter você aqui!
Espero que esteja curtindo a jornada de Anayê e Boyak
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