Capítulo 49 - O Que Você Faz Quando Tem Medo?
O corpo do demônio saiu rolando pelo chão deixando marcas de fumaça e gosma preta por onde passava, até enfim parar.
Boyak continuou alerta, com o punho em posição de ataque. Em seguida, observou enquanto Aruyo se levantava com dificuldade.
O rosto da criatura estava se desmanchando tal qual um argila.
— O que… — ele passou as mãos ossudas no rosto com o olhar incrédulo. — Você não pode… eu não posso ser derrotado! Estou em todo lugar, em cada culpa e remorso.
Boyak, enfim, baixou a guarda e sorriu enquanto via as pernas de Aruyo cederem diante do próprio peso.
— O Deus sem face também está em todo lugar.
Aruyo pareceu consternado com a declaração.
— Você não pode sorrir, garoto… — a voz estava ficando com um tom desesperado. — A sua filha está morta e a sua mulher desaparecida. Como você pode sorrir diante disso?
— Eu sorrio porque sei em quem tenho crido.
O demônio soltou um grito de angústia que faria qualquer ser humano comum se arrepiar dos pés à cabeça. E, logo em seguida, não passava de uma poça de gosma preta.
Sentiu um alívio transbordante ao ver o inimigo derrotado. Era como se uma parede de concreto tivesse desaparecido de suas costas.
De repente, ele ouviu um grito e percebeu que Thayala e Anayê haviam sido libertas de seu torpor.
Boyak correu até Thayala e Anayê e colocou-as sentadas no chão.
— Vocês estão bem?
As duas assentiram, embora o rosto ainda estivesse recuperando a cor.
Percebeu uma aproximação atrás de si e viu o mestre caminhando em sua direção bem devagar. Ao lado dele, as crianças acompanhavam, apreensivas.
— Chegou tarde, eu já dei conta de tudo — disse Boyak.
— Eu assisti tudo ou acha que eu não sabia da presença de um demônio do remorso em seu corpo?
O velho levantou as largas sobrancelhas. Boyak franziu o cenho e perguntou:
— Então você sabia disso esse tempo inteiro?
— Fui avisado pelos Três, mas eles me proibiram de intervir diretamente.
O ceifador ponderou por um momento tentando absorver todas essas decisões e como elas influenciavam as pessoas próximas.
— Se você tivesse me dito antes, eu jamais teria aceitado essa ideia — ele afirmou, por fim.
— Existem jornadas que precisam ser trilhadas da forma mais difícil e solitária até chegarmos a um entendimento melhor dos fatos.
O mestre buscou um frasco com fluido de oração dentro do bolso da túnica e então molhou os dedos e colocou-os na testa de Anayê e Thayala. E, assim, as duas ficaram mais tranquilas, recuperando a razão e obtendo a consciência de que estiveram presas por conta da influência do demônio do remorso.
E, no instante seguinte, Thayala desferiu um cascudo na cabeça de Boyak.
— Você é um tremendo idiota!
— Ei! Ai! — ele resmungou coçando a cabeça.
— Trouxe os inimigos até a porta da nossa casa!
— Eu não sabia!
— Deve ser o ceifador mais estúpido da face da terra!
— Ora, vamos, admita, você estava em uma ilusão em que não tinha a mim, certo? Por isso, está tão brava — ele falou rindo.
E levou outro cascudo em seguida.
***
Na manhã seguinte, logo depois da refeição de cedo, Anayê estava sentada na borda da fonte que ficava atrás do casarão. Esperava pelo mestre para começar seu treinamento quando viu Boyak caminhando em sua direção. Ele tinha retornado da ilha flutuante.
— Bom dia!
Ela cumprimentou-o também e notou o laço amarelo preso ao antebraço dele.
— Como foi lá? — Anayê perguntou.
— Tão bom quanto sempre, mas acho que eu havia esquecido dessa sensação.
— Às vezes, acho que temos essa tendência a esquecer.
— Então é bom ter alguns amigos para lembrar.
— É verdade. Como está se sentindo?
— Mais disposto, mais tranquilo e mais lindo — ele movimentou os braços. — Meus braços não estão mais doloridos.
— Isso é ótimo.
— E você? Inicia o treinamento hoje?
Anayê assentiu.
— Não deixe o mestre te frustrar, ele tem a mania de colocar pra quebrar no início, mas vai ficar mais manso com o passar do tempo.
— Obrigada pela dica.
— E cuidado para não queimar a mão nos exercícios com fogo ou perder a cabeça nos treinos com espadas. É que o mestre não enxerga tão bem, então pode acabar… — ele fez um gesto passando a mão no pescoço. — Também não precisa se cobrar, ninguém é tão bom quanto eu.
— Tão bom em ser estúpido?
Eles olharam e Thayala estava se aproximando. Ela trazia uma bolsa nas costas com seus pertences.
— Veja só, a Thayala é um exemplo de resiliência, pois não tem nenhum talento para ser ceifadora — Boyak zombou.
— Eu poderia acabar com você em dois segundos, mas isso me deixaria em maus lençóis com os Três.
Boyak soltou um riso sarcástico.
— E você, garota, não fica dando ouvidos a esse idiota. Ele só quer te deixar com medo.
— Eu? Jamais.
— Você vai conseguir, Anayê. Logo estará se juntando às fileiras para nos ajudar a destruir essas aberrações.
— Obrigada. E você vai mesmo embora?
Thayala assentiu e disse:
— Fiquei muito tempo longe de casa, acredito que está na hora de voltar. Quero rever a minha irmã e os meus amigos.
— Boa sorte. Ela ficará feliz em te ver — Anayê disse.
— Espero que sim.
— Bah! Deixe de ser pessimista — Boyak falou. — Concordo com a Anayê, ela ficará muito contente em te rever.
— Se você está dizendo. Bem, enfim, preciso ir. A viagem é muito longa. Vejo vocês em breve.
Anayê se levantou e abraçou a ceifadora. O gesto pegou Thayala despreparada, mas mesmo assim ela retribuiu.
— Obrigada pelas coisas que fez por mim.
— Se cuida, garota.
Anayê e Boyak observaram enquanto a ceifadora subia no cavalo e sumia colina abaixo.
— Posso fazer uma pergunta? — a garota falou.
Boyak assentiu para que continuasse.
— O que você faz quando está com medo?
Boyak não respondeu de imediato. Primeiro, fitou o horizonte azulado preenchido por uma porção de nuvens brancas.
— Como ceifadores, precisamos mostrar o tempo inteiro para as pessoas que não estamos com medo, apesar de também termos nossos próprios medos.
Ele suspirou; foi um longo suspiro.
— Nessa jornada de ceifador — prosseguiu. — É necessário aprender que você não é a única preocupada em salvar pessoas e derrotar monstros, os Três também estão. E embora ele aja através de nós, somos apenas o meio e não o fim.
Ela permanecia prestando atenção como se fossem as palavras mais importantes do mundo.
— Tentei esconder meus medos por trás de uma coragem baseada na minha própria força, achei que era o único preocupado em derrotar Astaroth e encerrar o ciclo de dor e sofrimento. Mas isso não afasta o medo, apenas intensifica o quanto ele pode controlar você e fazê-lo tomar muitas decisões erradas, afastando as pessoas que te amam.
Ele desviou o olhar para Anayê.
— Eu nunca afastei o medo, só fingi que não estava lá, mas isso não o fez desaparecer. Só existe uma forma de vencê-lo, uma forma de fazê-lo ir embora, você precisa focar no Deus sem face.
Seu olhar penetrou fundo. Aquela cena e as palavras ficariam gravadas na mente de Anayê para sempre.
— Foque nele nas suas vitórias, nos dias alegres, nas bonanças. Foque nele nas derrotas, por mais dolorosas que elas sejam.
— Parece uma boa maneira.
— É a única.
Ele colocou as mãos atrás da cabeça.
— Mas não apenas isso. Tenha certeza de que o foco dele também está em você. Oh, sim, isso me deixa bastante tranquilo.
— Com certeza, deixa qualquer um.
Ela esperou um pouco antes da próxima pergunta:
— O que vai fazer agora?
Ele também esperou alguns instantes antes de responder:
— Vou procurar pela Ingrid.
Anayê franziu o cenho.
— Tem certeza?
— Da última vez em que busquei por ela, eu mesmo não tinha me encontrado. Dessa vez será diferente.
— Faz sentido.
— Talvez no caminho até ela, eu possa derrotar algumas aberrações, salvar pessoas e causar bagunças no reino de Astaroth.
— Esse parece um bom plano — Anayê finalmente sorriu.
— Também acho.
É muito bom ter você aqui!
Espero que esteja curtindo a jornada de Anayê e Boyak.
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