Capítulo 50 - O Quarto e a Escadaria
Anayê acordou e, como de costume, foi apreciar a vista das Colinas. Era incrível aquele silêncio no início do dia no topo da colina, vislumbrando o mundo inteiro de cima. Parecia que o horizonte não tinha fim.
Depois, quando foi fazer a refeição da manhã, ela ficou sabendo da partida de Boyak durante a madrugada.
— Ele não gosta muito de despedidas — o mestre contou.
O ceifador havia falado que ia atrás de sua esposa, uma busca motivada pelos acontecimentos do dia anterior e o retorno de sua confiança no Deus sem face. Entretanto, Anayê não esperava que fosse tão repentino.
— Sabe como ele é apressado. Quando coloca uma ideia na cabeça, ninguém consegue mudar.
Ela ficou um pouco triste. Não havia se despedido e poderia ficar sem ver o ceifador por meses. Lembrou-se do irmão que a havia deixado também e a recordação pesou em sua tristeza.
— Ele vai voltar em breve — o mestre pegou uma folha de hortelã para mascar. — O garoto é estúpido, mas sabe se cuidar.
Anayê assentiu. Na verdade, não estava preocupada com Boyak, mas com a sua insegurança costumeira. Precisava continuar lutando para perder o costume de se sabotar.
— Você terá seus próprios problemas para se preocupar agora.
Ele estava falando do primeiro dia de seu treinamento. Anayê pensara nisso até pegar no sono durante a noite. O que faria? Como seria? Ela ia conseguir?
Seu conforto estava no fato de que teria ajuda de Boyak, mas agora estava realmente sozinha. Sozinha de novo.
Ela ignorou o pensamento. O mestre estava ali. O Deus sem face continuava com ela.
Quando Anayê terminou a refeição, o mestre a acompanhou para fora até a fonte atrás do casarão.
O velho pegou um frasco parecido com aquele usado por Thayala e Boyak e encheu com o fluido emanado pela fonte.
— Tome tudo — ele falou.
Anayê obedeceu.
— Agora venha.
Ela seguiu até a outra ponta da colina onde enxergou um portão de bronze com cerca de dois metros de altura. Anayê ficou espantada por ter percebido aquilo antes.
— Não é que você não percebeu — o mestre falou. — Apenas não tinha o discernimento para vê-lo.
Ela assentiu se lembrando da experiência com a ponte flutuante.
— O fluido de oração não afeta apenas seu corpo, ele abre a sua mente para uma realidade nova.
Eles passaram pelo local da batalha do dia anterior. As plantas mortas eram a lembrança do toque maldito do demônio do remorso, mas o fato de estar viva era a lembrança do toque bondoso dos Três Que São Um.
— Agora, seu corpo precisa se adaptar ao uso do fluido de oração — o mestre continuou explicando enquanto se aproximavam do portão. — O uso sem sabedoria vai te fazer acreditar que é o próprio Deus sem face. Não vai saber quando parar ou quando continuar, e isso vai te matar.
Anayê parou de frente ao portão e o mestre usou uma das mãos para empurrá-la.
Do outro lado, Anayê enxergou uma pequena casa com paredes de madeira e telhado de palha. Posicionados na parede, havia um punhado de lenha e um machado, além de uma rede.
Caminharam na direção da casa. Do lado direito, um lago tranquilo e cristalino cercava a casa e, do esquerdo, uma escadaria de pedra em ziguezague que levava ao topo de uma montanha. Anayê sequer conseguia contar tantos degraus.
— Bem vinda ao quarto do ceifador.
Os olhos roxos e grandes de Anayê estavam deslumbrados com a beleza e tranquilidade daquele lugar. Próximo do lago, alguns esquilos se esgueiravam e passarinhos recolhiam plantas para se alimentarem. Ela viu também uma goiabeira e uma laranjeira na frente da casa.
Voltando sua atenção para a grande escadaria, percebeu a ponta triangular de uma construção no alto da montanha.
— Este é o Sinai, a montanha de fogo — o mestre contou. — E lá em cima, o templo do pergaminho sagrado.
— E o que devo fazer agora?
O mestre abriu um sorriso e caminhou lentamente até a rede.
— Venha, sente-se.
Ela encontrou uma cadeira e sentou-se ao lado dele enquanto via um esquilo correndo com uma noz.
O mestre se ajeitou na rede, pegou uma folha de hortelã para mascar e fez todos os movimentos seguintes da maneira mais lenta possível.
A perna de Anayê não parava de balançar na cadeira.
O velho continuou mascando e suspirou fundo.
— Você vai passar os próximos meses aqui — ele anunciou.
— Como assim?
— Digamos que o tempo passa de uma maneira peculiar neste lugar.
— Isso parece confuso.
— Você vai entender no futuro.
— E não vou poder sair daqui?
— Basicamente, não. Essa é uma das vantagens do quarto do ceifador, sua mente estará totalmente focada no seu treinamento, sem tempo para muitas distrações.
— Faz sentido.
— Todos os dias, você deve subir a escadaria até o templo para encontrar o pergaminho sagrado.
Anayê franziu o cenho.
— Todos os dias?
— E não deve falhar nenhum dia. Isso é muito importante.
— E quem vai estar me esperando lá em cima?
— O pergaminho sagrado. Ele servirá para ampliar seu conhecimento sobre o poder do fluido do oração e vai te orientar a respeito do seu treinamento. Será assim durante um tempo.
Anayê vislumbrou a enorme escadaria imaginando a canseira de subir aqueles degraus todos os dias. De tudo o que tinha pensado sobre o treino, nada havia sido como aquilo.
— Achei que o treinamento teria a ver com aprender sobre lutar e dar aquele soco poderoso nas aberrações. Subir escadas não me parece ser… útil — ela admitiu.
— Todos falam a mesma coisa — o mestre se levantou da rede. — Subestimam os resultados de um bom fundamento. — O velho colocou as mãos atrás das costas. — Mas por enquanto, basta obedecer.
— Eu irei — a moça disse com firmeza.
— Então pode começar fazendo isso agora. Aproveite que o fluido de oração está fresco no seu corpo.
Anayê se levantou e amarrou os cabelos num coque.
— Bom, vamos começar.
Chegamos ao capítulo 50! Que maneiro.
Se você esteve acompanhando esse história desde o início, fico muito grato.
Um grande abraço!
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