Capítulo 56 - Madeira e Palha
À princípio, Anayê considerou a cena bizarra, mas o boneco de palha lhe pareceu simpático logo em seguida. Ela só descobriria irritação por ele depois.
— Conheça seu saco de pancadas pessoal — Chokhmáh disse. — O senhor Arghus.
O boneco caminhou de um modo um pouco desajeitado até elas.
— Será um prazer servir, minha senhora.
A voz soou oca e Anayê achou engraçado o tufo de palha no lugar do cabelo dele.
— Agora terá a chance de experimentar a sua força — Chokhmáh falou para ela.
— Vou lutar com… ele?
O pergaminho sagrado concordou com a cabeça. Anayê coçou o pescoço, confusa.
— Ficarei feliz em ajudar no seu treinamento.
— Não fique pensando, o senhor Arghus foi feito exatamente para esse propósito. E ele é mais resistente do que imagina.
Ela ficou de frente para Arghus e teve aquela sensação de estranheza novamente. Era muito difícil ver um boneco de palha vivo.
— Que tal um aquecimento amistoso? — Chokhmáh propôs. — Se você conseguir tocar no Arghus antes do pôr-do-sol ficará com a vitória, mas se perder terá que fazer cem flexões.
Anayê olhou para as pernas finas de madeira do boneco e desdenhou em seu pensamento. “Do modo como ele anda desajeitado vai ser fácil”, pensou.
— Quando estiver pronta, senhorita, pode atacar — Arghus escancarou o peito feito de madeira e palha como um alvo.
Anayê hesitou outra vez e olhou para Chokhmáh.
— Vá em frente, menina.
— Tá legal.
Anayê ficou em posição de ataque e disparou. Visualizou sua mão no alvo quando percebeu estar tocando o ar. Arghus se esquivou facilmente e num piscar de olhos apareceu atrás dela.
A perna de madeira do boneco se moveu e acertou em cheio o traseiro de Anayê. A garota saltou para o lado e soltou um grito de dor.
— Ei! Que história é essa? — indagou.
Chokhmáh estava soltando risinhos com a mão cobrindo a boca.
— Ah! Me desculpe — ela falou. — Esqueci de avisar que a cada esquiva, Arghus terá o direito de te acertar com um chute no bumbum.
— Como é? — Anayê arregalou os olhos.
Arghus parecia contente por ter conseguido seu primeiro acerto.
— Isso é lógico se você não conseguir desviar do chute dele.
Anayê massageou a área atingida.
— Tá legal, vamos começar pra valer então — ela disse.
Avançou outra vez. O boneco esquivou e adiantou o chute, mas Anayê usou o fluido em seu corpo para pular segundos antes do golpe.
“Esse boneco…”, ponderou.
Então, levou a energia espiritual para as pernas e se lançou contra Arghus em maior velocidade. Porém, o boneco a surpreendeu novamente, pois ele não apenas se esquivou de seu toque como também aumentou sua velocidade para atingi-la com um chute.
Anayê massageou outra vez a região do golpe enquanto observava a felicidade de Arghus com o objetivo cumprido.
“Eu utilizei a energia espiritual e mesmo assim ele foi mais rápido?”, pensou com certa indignação.
Concentrou toda a sua energia nas pernas mais uma vez. Focou os olhos no boneco. Suspirou devagar e se moveu.
Seu deslocamento deixou poeira para trás e seus pés nem tocaram o chão, fazendo Anayê aparecer em frente ao seu oponente ainda mais depressa. Arghus precisou se esquivar às pressas e não tão efetivamente quanto antes. Mesmo assim, o boneco de palha tentou se evadir para as costas dela, mas Anayê previu o movimento e utilizou toda a energia novamente para deixar o chute de Arghus acertando o ar.
Enquanto o boneco ainda estava com a perna para cima, ela disparou na direção dele e esticou o braço para tocá-lo. Entretanto, o boneco girou no próprio eixo com a perna erguida e fez Anayê cair de cara no chão.
“Como ele fez?”, ela cuspiu um bocado de poeira. Levantou-se e limpou as pedrinhas da sua roupa.
Ela se colocou em posição de ataque. Estava claro que a velocidade de Arghus era maior, por mais que usasse toda a sua energia combinada com o fluido de oração.
“Preciso surpreendê-lo de alguma maneira”, pensou. “Mas como?”
Arghus olhava para ela de maneira infantil como se tudo aquilo não passasse de uma brincadeira de criança.
Chokhmáh observava sentada de pernas cruzadas em uma cadeira na porta do templo com seu queixo descansando em sua mão direita.
Anayê disparou. Arghus esquivou e migrou para as costas dela desferindo seu chute que atingiu o ar quando a garota desviou e saltou na direção dele. O boneco girou no próprio eixo de novo enquanto esperava sua oponente cair. Mas Anayê distribuiu sua energia entre os braços e as pernas, assim se equilibrou nas mãos para saltar para trás ao invés de atingir o solo com o rosto. O torço dela rapidamente se virou e a mão avançou.
— Agora eu te peguei! — ela berrou.
Porém, Arghus deu um salto mortal por cima dela e caiu exatamente em suas costas, o que resultou em um chute no traseiro.
Anayê se afastou alguns passos e tropeçou nos próprios pés, mas recuperou o equilíbrio antes de cair.
“Eu quase consegui…”
E arremeteu contra o boneco de palha.
Uma vez. Duas vezes. Uma centena de vezes.
Quando o sol estava se aproximando do horizonte, Anayê estava com os cabelos desgrenhados, a camisa branca transformada em cinza, os braços ralados e a certeza de que os chutes do boneco de palha deixariam uma marca.
Suspirava frenética. Os olhos mantinham a vontade de vencer, mas as pernas começavam a tropeçar e tremer.
“O fluido de oração está acabando”, concluiu.
Fosse como fosse, os próximos movimentos seriam decisivos. Assim que o fluido acabasse, suas pernas ficariam sem força. Se sentiu um pouco fraca por não ter sequer chegado até o pôr-do-sol no treinamento. E, conforme as últimas tentativas, parecia que não ia conseguir nem tocar em Arghus.
Será que Thayala e Boyak haviam concluído esse treinamento no mesmo dia?
“Pare com isso!”, repreendeu a si mesma. O mestre dissera para evitar as comparações e ela precisava se livrar desse costume ruim.
Focou toda a sua atenção naquele momento excluindo qualquer pensamento que não tivesse relação com seu treinamento.
Fitou Arghus e sentiu raiva daquele semblante infantil e, de certo modo, debochado. No início, era só um boneco de palha e madeira e agora era o oponente mais difícil de seu treinamento até então. Ficaria com o ensinamento de não subestimar as pessoas.
Ela se concentrou, reviu todos os movimentos de Arghus e todas as suas tentativas procurando seus erros.
Ficou irritada por não enxergar uma forma de derrotar o boneco. Olhou de relance para Chokhmáh e percebeu que ela estava na mesma posição desde o início do treinamento.
Mas a mulher também não se mexeu e nem deu dicas. Anayê soube que precisava vencer aquele desafio sozinha.
Suspirou devagar e Arghus a encarou com felicidade.
— Esse idiota — murmurou entre dentes.
Mirou o horizonte enquanto o sol mergulhava nele. Seu tempo estava se esgotando rapidamente.
Ela fechou os punhos.
“O que eu vou fazer?”
É muito bom ter você aqui!
Espero que esteja curtindo o treinamento de Anayê.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.