Capítulo 59 - Rajada de Vento Cortante
Chokhmáh colocou a mão no queixo e falou:
— Isso foi… inesperado.
Anayê ainda estava surpresa. Se aproximou da adaga e a segurou com cautela temendo uma nova onda de vento. Aquilo havia sido um pouco assustador para ela. Quase podia sentir a pele esquentando no cabo da lâmina.
— Eu fiz isso? — ela perguntou.
Chokhmáh assentiu e acrescentou:
— Parece que sua adaga possui uma habilidade especial para derrotar aberrações. Quando imbuída com sua energia espiritual ela consegue emitir esses cortes que empurram até mesmo o ar, criando rajadas de vento.
Anayê fitou a lâmina novamente um tanto incrédula. Como podia uma arma tão comum fazer aquilo?
— A questão vai ser controlar esse poder sem nos deixar aleijados — disse Arghus.
Anayê lançou um olhar cínico para ele.
— Isso virá em breve. Ela tem tempo — retrucou Chokhmáh — Mais importante é continuar treinando.
Anayê assentiu e segurou o cabo da lâmina com firmeza. Pensou em enviar uma dose menor de sua energia para a adaga, talvez assim pudesse controlar as rajadas de vento.
Arghus tocou a árvore e as folhas caíram.
Anayê fez conforme o planejado e, dessa vez, sentiu um pequeno choque subindo pelo punho.
Balançou a arma uma vez para acertar as folhas, porém, o resultado foi diferente. O golpe da adaga gerou uma rajada grande que desintegrou as folhas e deixou uma marca na árvore no local atingido.
Anayê arregalou os olhos e tampou a boca com uma das mãos.
— Ei! Cuidado aí! Eu estou bem aqui embaixo — Arghus reclamou.
— Desculpe — ela falou entredentes.
— Está tudo bem, minha querida — Chokhmáh tranquilizou. — Essa árvore aguenta o tranco… e o Arghus também.
O boneco de madeira olhou desconfiado para o pergaminho sagrado sem entender bem o significado dessa frase.
Anayê concordou com a cabeça e se preparou para outra tentativa.
Arghus tocou a árvore, as folhas desceram e a garota de olhos roxos atacou.
A rajada de vento veio menor, mas com a mesma intensidade e deixou as folhas em pedacinhos.
Anayê segurou o cabo da arma com firmeza ponderando onde estava seu erro.
— Por que você não tenta cortar as folhas sem seu poder para começar? — Arghus perguntou.
Anayê estava prestes a falar, no entanto, foi interrompida por Chokhmáh.
— Arghus, esse é o momento dela. Permita a garota encontrar seu próprio caminho. Apenas ela tem o poder da adaga, portanto, será inútil opinar sobre algo que pertence apenas a ela.
— Tudo bem, me perdoe, senhora. Acho que me excedi no comportamento.
— Caso ela queira, poderá pedir a sua ajuda — Chokhmáh inteirou.
Arghus balançou a cabeça.
De certa forma, Anayê se sentiu feliz. Depois de Boyak e Thayala, a satisfação sempre emergia quando ela era vista, defendida e ouvida.
Além disso, imaginar que era capaz de resolver uma dificuldade por conta própria tinha seu charme. O fato da adaga ter sido forjada para si também contava muito e a frase de Chokhmáh a respeito do poder da adaga lhe pertencer ficaria em sua mente por um longo tempo.
— Você pode tentar outra vez, se quiser — Chokhmáh falou. — Você pode pensar também até adquirir uma estratégia que te pareça melhor.
— Obrigada. Gostaria de tentar mais uma.
— A seu pedido, mileide — Arghus disse.
As folhas despencaram e Anayê disparou, mas obteve o mesmo resultado.
Ela pediu nova tentativa e procurou imbuir ainda menos da sua energia espiritual gerando uma rajada de vento menor, mas com intensidade maior.
“Isso não faz o menor sentido”, ela pensou. “Basta…”
Então uma ideia surgiu em sua mente.
— Mais uma vez, por favor, Arghus.
Quando as folhas vieram, ela arremeteu e a rajada saiu. Porém, desta feita, o poder não passou de sopro de vento que sequer balançou as folhas.
Anayê coçou a cabeça. Havia mudado a estratégia equiparando a energia espiritual com a sua voracidade de acertar as folhas.
“Eu estou perto”, ponderou.
— Outra vez.
Se concentrou um pouco quando as folhas começaram a cair. A energia espiritual fluiu por seu braço, encontrou a lâmina e causou um formigamento em seu braço por alguns segundos.
Em seguida, disparou para o alvo e dedicou uma intensidade de pensamento mais suave sem o seu ímpeto costumeiro. Antes, estava agindo como se acertar as folhas fosse o fim do mundo e agora procurava um caminho intermediário entre a calma de quem é bom de mira e a ferocidade apenas para alcançar seu objetivo.
Quando ela cortou, uma rajada de vento em diagonal investiu e rasgou todas as folhas em duas partes.
Anayê observou seu feito com um sorriso no rosto.
Chokhmáh piscou e retribuiu o sorriso.
***
Anayê pediu para continuar praticando sua habilidade especial e Chokhmáh permitiu enquanto Arghus não ficou muito feliz com a ideia de permanecer tocando na árvore, mas se interessou no modo como a garota tentava adaptar o corte.
Quando o sol estava no centro do céu, Chokhmáh retornou e eles foram fazer uma refeição com carne, mel, pães e sopa de legumes.
Enquanto comia, Anayê observava Arghus sentado de pernas cruzadas ao lado de Chokhmáh. Então tomou coragem para perguntar:
— Por que você não participa da refeição?
— Um boneco de madeira não precisa de comida.
— Não é necessário, mas também não é proibido.
Arghus bufou porque se sentia bobo quando subestimava a inteligência daquela garota.
— E então? — ela provocou erguendo a sobrancelha.
Arghus mexeu a língua na boca, nitidamente incomodado.
— Não gosto da comida humana.
— Por que não?
— Tudo é muito estranho para mim.
Anayê deu de ombros e mastigou mais um pedaço de carne.
— Você é estranho para mim — ela resmungou entre uma mordida e outra. — Mesmo assim, acho você uma pessoa bacana.
Ele se mexeu novamente, pois não esperava essa afirmação.
— Então, talvez deva dar mais uma chance para a comida humana.
— Quem sabe… — ele falou.
— Pode ser que dessa vez você goste.
Arghus soltou um sorriso sem abrir a boca.
— Às vezes, a sua astúcia me impressiona.
— Oh! — os olhos roxos reluziram com sagacidade por um momento. — Muito obrigada. Isso foi um elogio?
— Tá, não abuse da sua sorte.
— Que tal dizer o quanto estava boquiaberto com as minhas tentativas com a rajada de vento cortante?
Arghus deu um riso sarcástico.
— Estava na sua cara — Anayê insistiu. — Seus olhos brilhavam de admiração com a minha habilidade e criatividade.
— Por acaso, você está se ouvindo? — ele fez um movimento com o dedo ao redor do ouvido. — E que porcaria de nome é rajada de vento cortante?
— Foi assim que nomeei a minha habilidade especial. Se o Boyak tem o punho de Deus e a Thayala tem as adagas de vento, então eu também preciso de um nome.
— Você é péssima nesse negócio de nomes.
— Espere até ouvir o apelido que inventei para você. Ah! Ah!
Arghus arregalou os olhos.
— Como assim você inventou um apelido?
— Já te disse, faço isso o tempo todo.
Na verdade, ela não fazia. Tudo o que queria era deixar o boneco de palha irritado. E, sem consciência da razão pela qual fazia isso, não se dava conta de estar seguindo os passos de seu salvador das terras de Astaroth.
É muito ter você aqui!
Espero que esteja curtindo a jornada de Anayê para se tornar uma ceifadora.
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