Capítulo 60 - Modelar
Anayê acordou mais cedo no dia seguinte e preparou sua refeição da manhã de maneira rápida. Ainda estranhava o sumiço do mestre, mas manteve o foco nas suas tarefas.
Após o desjejum, vestiu uma roupa leve e praticou seus arremessos com as adagas. Depois de cinquenta tentativas, ela obtivera dez acertos, uma quantia elevada para o seu padrão.
No entanto, seu verdadeiro intuito estava em outro lugar. Ela invocou sua adaga especial que pensava em nomear de Ventania, mas adiara essa decisão. A lâmina irradiou a luz azulada contra o brilho do sol quando apareceu na mão da garota.
Então Anayê fechou os olhos e se concentrou. Havia um pouco de fluido em seu corpo do dia anterior e esperava esgotá-lo em breve. Ela suspirou fundo e deixou a energia espiritual percorrer seu corpo até a adaga. Em seguida, abriu os olhos e desferiu um corte diagonal no ar.
A rajada de vento disparou, acertou o topo dos tocos de seu treinamento de arremesso, deixando uma marca no local atingido.
Anayê suspirou. Suas suspeitas estavam confirmadas para sua frustração. Desconfiava que cortar uma folha era diferente de cortar um objeto mais sólido como tentara com o toco de madeira.
“Esse autocontrole da potência da habilidade é o ponto”, ela ponderou.
Além disso, um segundo ataque poderia cortar o toco por completo, mas ela duvidava de poder acertar o mesmo lugar duas vezes. Tudo ainda parecia bem fora de seu controle.
Anayê voltou para a casa, tomou um frasco de fluido de oração e partiu para a montanha.
***
— Alguma coisa preocupa você, jovem aprendiz? — Chokhmáh perguntou.
Anayê descruzou os braços e retornou ao mundo real.
— Mais ou menos — admitiu.
Do outro lado, Arghus estava aguardando na lateral de uma pilha de pedras pequenas.
— Me diga — Chokhmáh pediu ajeitando uma mecha de seu cabelo.
— O mestre não aparece há três dias — Anayê falou.
— Ah, acredite, ele está bem.
— É porque… ele me faz lembrar das coisas mais normais — ela confessou esfregando a mão na calça — Não me entenda mal, é que tudo por aqui parece surreal.
— Te entendo. Mas o mestre tem outros alunos, incluindo várias crianças para cuidar, então é normal seu desaparecimento.
Anayê se sentiu egoísta nesse momento, pois se esquecera completamente das crianças. E agora Thayala e Boyak se foram, o que deixava o mestre sozinho.
— Você tem razão. Preciso continuar me focando no treinamento.
— Falando em treinamento…
Chokhmáh apontou para a pilha de pedras e Arghus exibiu um de seus sorrisos misteriosos.
— Hoje vamos melhorar o uso da sua habilidade que você nomeou de rajada de vento cortante.
— Ótimo — Anayê invocou a adaga e ela respondeu seu chamado.
Arghus pegou uma pedra na mão.
— Nesse treinamento o seu objetivo é se defender das pedras — Chokhmáh explicou. — Mas, neste caso, usando seu poder especial.
— Entendi.
— Então, quando estiver pronta, Arghus irá começar.
Anayê assentiu e Chokhmáh se afastou até uma cadeira de balanço.
A garota deixou a energia espiritual fluir por seu corpo até a lâmina e, em seguida, fez um sinal de cabeça para o boneco de madeira.
Arghus lançou a pedra e Anayê desferiu um corte que disparou uma rajada de ar e desviou o objeto para o outro lado.
Anayê sorriu sem abrir os lábios e assentiu para Chokhmáh. Ela retribuiu o gesto e depois acenou para Arghus.
— Quer dizer que vamos para o estágio seguinte? — o boneco falou. — Há! Agora vai ser bom.
Ele agarrou duas pedras.
— Tá pronta?
— Quando quiser — Anayê respondeu concentrando a sua energia na adaga mais uma vez.
Arghus jogou a primeira pedra e a garota repeliu o objeto com a rajada, mas logo depois ele enviou a segunda.
Anayê não teve tempo de se concentrar, pois a pedra ultrapassou sua adaga e acertou seu ombro.
— Ai! — ela resmungou massageando o local.
— Lenta demais — Arghus disse com o tom de voz sarcástico.
Mais duas pedras foram recolhidas da pilha enquanto Anayê se concentrava.
Quando acenou, o primeiro objeto voou em sua direção e, no corte, ela disparou apenas metade da potência concentrada na adaga que foi suficiente para fazer a pedra parar no ar por alguns segundos.
Na sequência, a segunda pedra apareceu e Anayê deixou o restante do poder acumulado na lâmina se soltar, o que fez as duas pedras recuarem para longe.
Anayê suspirou e sentiu o braço tremer de leve. Manter o poder condensado na lâmina era como segurar uma parede de concreto de trinta quilos, ou seja, cedo ou tarde faltaria força para preservar a potência da habilidade e isso poderia resultar na perda de sua mão.
— Próxima fase? — Arghus questionou para ela segurando três pedras nas mãos.
Anayê secou uma gota de suor da testa e concordou.
A primeira pedra disparou e ela separou mais energia para a adaga por conta da terceira pedra. No entanto, assim que liberou o corte inicial, a força da rajada também foi maior e a obrigou a largar a adaga antes que seus dedos fossem estraçalhados.
Anayê gritou e recuou por instinto enquanto a rajada de vento cortante disparava em todas as direções criando os vórtices de ar.
Quando o vento cessou, ela coçou a cabeça e se desculpou.
— Precisa descansar? — Arghus perguntou.
Às vezes, ela não sabia quando ele estava sendo educado ou irônico.
— Não, obrigada — ela respondeu pegando a sua adaga do chão.
Anayê repensou seu método. Poderia até conseguir conter uma rajada de vento cortante em três partes, mas não era o indicado. Se na próxima fase do treinamento fossem quatro pedras, ela não seria capaz de segurar tamanha potência. No fim, acabaria se machucando e prejudicando o tempo do treino.
“Preciso disparar a habilidade a cada corte”, ela concluiu. Mas, para isso, a rajada tem que ser mais precisa. No atual momento, sua habilidade era uma lufada de ar imprecisa e vazando como uma coluna de vento.
“Será que eu consigo modelar a rajada?”, pensou.
Se preparou, imaginando que seu corte era uma lufada de ar vertical e menor e então assentiu para Arghus.
A primeira pedra voou em sua direção. A adaga reluziu azulada com o corte vertical e uma rajada de vento vertical do tamanho da lâmina disparou e despedaçou o objeto em dois.
Anayê arregalou os olhos e comemorou internamente.
A segunda pedra também veio e ela executou os mesmos movimentos, resultando na lufada de ar vertical e menor outra vez. Porém, o golpe foi incapaz de partir a pedra em dois e apenas a derrubou no chão.
Anayê concentrou mais intensidade no terceiro corte e a lufada de vento saiu vertical, no entanto, maior em tamanho e largura, e despedaçou a pedra em quatro pedaços.
O braço de Anayê tremia quando a pedra estraçalhada caiu. Ela esforçou todos os músculos do braço para permanecer segurando sua arma.
— Próximo nível? — Arghus sugeriu com quatro pedras nas mãos.
“Até quantas pedras eu vou ter que derrubar?”, ela questionou em sua mente. “Isso não importa! Eu consigo.”
Anayê focou na energia espiritual, porém, ao sentir o fluido percorrendo seu braço foi como se agulhas estivessem perfurando o cotovelo, o antebraço e as juntas dos dedos. Ela firmou os dentes e segurou a adaga com mais força.
— Vamos lá, pode começar! — disse.
Arghus lançou as pedras, uma em sequência da outra.
Anayê cortou a primeira com uma rajada de vento vertical menor.
Quando a energia subiu por seu braço na segunda vez foi como se as agulhas afundassem mais em sua carne. Ela rangeu os dentes e desferiu o corte. Vertical, menor e suficiente para dividir a pedra em duas.
Na terceira vez que usou sua habilidade, ela se lembrou de certa feita na fortaleza de Astaroth em que pisara num prego. Além de desabar no chão, seu grito de dor chamou a atenção dos maggs e fora Zafael quem conseguira acalmá-los enquanto ela gemia e chorava. Ela ficara a noite inteira com dor, mas por causa de seu irmão, suportara a aflição calada. No dia seguinte, o pé estava inchado e era dolorido pisar no chão, porém, não tinha tempo para lamentações ou apanharia dos maggs. Portanto, aguentara a agonia em silêncio.
Foi através dessa lembrança que ela executou o terceiro corte. Gotas de suor desceram por suas costas enquanto se preparava para o último.
“Eu consigo!”, bradou para si.
A energia correu até a lâmina e ela cortou. A lufada de vento saiu vertical e menor, mas não despedaçou a pedra.
Ela arfava pesado quando o objeto atingiu o chão. Ainda segurou a adaga por alguns segundos antes de finalmente perder todas as forças e cair.
Sua última visão foi Arghus correndo para ajudá-la.
E, por um momento, não era o boneco de madeira e sim Zafael, seu irmão.
É muito bom ter você aqui!
Espero que esteja curtindo a jornada de Anayê para se tornar uma ceifadora.
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