Capítulo 62 - O Corte Mais Profundo
Anayê despertou com o peito ofegante e o estômago dolorido.
— Você está bem? — Arghus perguntou.
Ela não sabia o que responder, mas assentiu com a cabeça. Mantinha a certeza de que se fechasse os olhos, veria sua mãe e a aberração de duas cabeças.
— Desbloqueando más lembranças?
A pergunta veio de Chokhmáh que estava sentada ao seu lado de pernas cruzadas.
Anayê não se recordava daquela cena há anos, pois fizera questão de suprimi-la no lugar mais profundo de sua mente.
Ela se sentou com a ajuda de Arghus. Por um instante, achou que vomitaria.
— Um ceifador não pode lidar apenas com os monstros lá fora — Chokhmáh falou. — O que há dentro também precisa de tratamento.
— Aquilo… — Anayê segurou o peito com uma das mãos. — É doloroso demais para lembrar.
— Você se tornou ceifadora por causa desse trauma, mas até mesmo a mais nobre das motivações pode se tornar perigosa se não for equilibrada.
Lembrou-se da história que Thayala contara a respeito de Boyak e sua filha assassinada.
— Não sei se foi o melhor momento para recordar daquilo — Anayê disse.
— E quando seria a situação ideal?
Ela se viu sem ter uma resposta. No atual estado, desejaria nunca mais reviver o trauma.
— Precisa parar de fugir, menina — a voz de Chokhmáh tão suave continha uma autoridade invejável. — Precisa parar de ter medo.
Aquela palavra, medo. Sim, Anayê pensara que havia se livrado de todo o medo depois da decisão de se tornar uma ceifadora. Principalmente, durante esses dias de treinamento onde descobrira a sua força e a sua capacidade de conseguir superar obstáculos. Mas então estaria enganada? Após a recordação dolorosa do dia da destruição de sua vida, o medo parecia tão presente quanto nunca.
— Não lidar com seus medos é como jogar poeira para debaixo do tapete, uma hora será impossível escondê-lo e quando vier a tona causará muito estrago.
— É mais fácil falar — Anayê retrucou. — Essa lembrança… é apenas dor.
— E o que você pretende fazer com essa dor? Até hoje você tentou sufocá-la e funcionou em certo sentido. Porém, se um inimigo usar suas dores contra você, o que fará para revidar? Vai paralisar e ser derrotada, ou pior, morta?
Anayê agarrou o seu joelho com força, mas sua mão não queria parar de tremer. Estava irritada por estar sem respostas para as perguntas de Chokhmáh. Realmente, não queria falar de sua mãe. Só desejava que a dor parasse.
De repente, Chokhmáh segurou a sua mão com delicadeza.
— Você vai usar isso a seu favor no treinamento. Agora que liberamos suas emoções, será mais difícil controlar o fluido dentro do seu corpo.
— E como uma situação assim pode me ajudar?
— Fazendo você entender como seu corpo reage diante de diferentes sentimentos.
Foi a primeira resposta coerente para Anayê. Convencida, assentiu com a cabeça e se levantou.
— Usei fluido de oração para curar os ferimentos no seu braço — Chokhmáh também se ergueu.
Arghus acompanhou a conversa e caminhou até a pilha de pedras.
Anayê deixou um longo e lento suspiro passear por seus pulmões e só depois invocou sua adaga que apareceu em sua mão instantaneamente.
— Tá pronta? — Arghus perguntou.
Ela assentiu e o fluido percorreu seu braço enquanto o boneco de madeira lançava a primeira pedra.
Porém, no instante seguinte, não era um objeto vindo em sua direção e sim a garota pálida com duas bocas, quatro olhos e a pele repuxada e rasgada.
— Não!
Anayê desferiu um corte que lançou uma rajada de vento desregulada para todos os lados e nem foi capaz de parar a pedra.
Ela levou sua mão para o rosto até notar a realidade. Reteve o olhar em Chokhmáh por um momento e depois pediu para Arghus continuar.
Foi fácil cortar a primeira pedra, mas ao preparar sua rajada para a segunda, ouviu uma voz chamando seu nome e desviou a atenção para trás. Entretanto, não havia ninguém.
“O que está acontecendo comigo?”, questionou coçando os olhos.
No segundo posterior, a pedra atingiu sua cabeça e ela gemeu se voltando para Arghus.
— Há um corte mais profundo, minha querida — Chokhmáh disse. — Que precisa ser curado.
Anayê engoliu a saliva e tentou se concentrar. Mas era inevitável. Como ia treinar se todo o seu pensamento estava em sua mãe? Não era como trocar de roupa, aquele sentimento, aquele maldito sentimento permanecia grudado tal qual sujeira antiga.
— Está preparada? — Arghus perguntou.
“Não! Eu quero parar”, pensou em dizer. Mas ficou imóvel durante alguns segundos.
— Você quer desistir? — Chokhmáh indagou.
Anayê se pegou arregalando os olhos com a questão. De imediato, sim desejava desistir. No entanto, seu caminho percorrido desde a fortaleza de Astaroth até ali não abria exceções. Ela só via uma estrada pelo qual poderia seguir e fazer diferença no mundo.
— Eu não vou! — ela falou usando toda a firmeza em sua voz.
Chokhmáh abriu um sorriso e assentiu para Arghus prosseguir.
“Eu não posso parar”, sussurrou para si mesma.
E novamente aconteceu. A primeira pedra se transformou na imagem macabra daquela aberração e levou tremores ao corpo de Anayê.
“Não vou ficar paralisada mais uma vez”.
Seu braço executou o movimento e a rajada de vento foi lançada com sua forma menor e vertical, o que resultou na pedra se quebrar em duas.
“Vou cortar!”, sua mente bradou e trouxe certo alívio ao seu corpo.
A segunda pedra veio e ela invocou sua habilidade para destruir da mesma maneira.
“Vou cortar”.
E a terceira foi despedaçada enquanto mal havia saído das mãos de Arghus, deixando até o boneco de madeira impressionado.
Anayê revelou um sorriso tímido, mas vitorioso.
— Que tal mais uma rodada? — Arghus perguntou.
— Quatro pedras?
O boneco de palha assentiu e arremessou a primeira, seguida da segunda e terceira, e por fim, a quarta.
Todas caíram no chão retalhadas.
Anayê ergueu as sobrancelhas duas vezes, porém, ofegava um pouco. Havia entendido um princípio interessante do fluido e das emoções, e também como poderia usá-las a seu favor. Mesmo assim, o fato não a salvava do cansaço.
“Eu acho que só consegui usar a rajada de vento cortante quatro vezes”, concluiu. “Será que é suficiente para matar uma aberração?”
Recordou brevemente de Boyak derrotando o farejador com apenas um soco. Seu corte teria a mesma eficiência?
— Quero tentar mais uma vez — ela falou.
— Está bem — Arghus concordou.
Com a primeira e a segunda pedra foi fácil, mas seu braço quase travou na terceira e apesar de seu esforço, a quarta pedra não se despedaçou.
No fim, o barulho de sua respiração estava superando até mesmo o cântico de alguns passarinhos.
— Por enquanto basta — Chokhmáh falou.
Anayê pensou em pedir mais um arremesso, porém, suas pernas tremeram quando deu um passo e, portanto, resolveu suspender o treinamento.
Chokhmáh trouxe algumas frutas com pães e colocou em cima de um grande lençol marrom.
— Muito da sua energia foi consumida nesse treinamento, você precisa comer.
— Não me sinto com fome, apenas cansada — Anayê retrucou.
— É por causa do efeito do fluido de oração, mas quando o efeito passar e seu corpo precisa lidar com todo esse cansaço sozinho, você vai precisar da energia dessa comida.
Diante daquele discurso, ela resolveu obedecer e começou a comer.
É muito bom ter você aqui!
Espero que esteja curtindo a jornada de Anayê para se tornar ceifadora.
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