Capítulo 65 - Evolução
Abrir os olhos pela primeira vez foi uma tarefa complicada. Acostumar-se com a luz tornou tudo ainda mais difícil. E, por fim, ganhar consciência da vida e de suas últimas lembranças levou suas mãos a reagirem e tocarem o local onde seu estômago havia sido perfurado, constatando que não existia ferida. Seu olfato encontrou cheiro de milho na sequência.
Toda essa cena aconteceu em poucos segundos. Suficientes para Nally aparecer e exclamar sua alegria por ver Anayê acordada.
E, logo em seguida, quem surgiu na porta da casa foi o mestre.
— Boa noite — ele falou.
Anayê se sentou e passou as mãos pelo cabelo embaraçado.
— O monstro? — perguntou.
— Fazia parte do seu treinamento.
Seu semblante surpreso paralisou.
— Sim — o mestre se aproximou de modo lento. — O farejador só foi real por um momento.
Atrás dele, sem conseguir esconder o sorriso, Nally também se achegou.
— Como isso é possível?
— É o poder desse lugar. Assim fica mais fácil treinar os ceifadores.
— Por que você não me disse antes? Eu achei que a Nally… — o tom frustrado da voz dela deixou o velho incomodado.
— Sinto muito fazer você passar por isso, mas era necessário. O aprendiz precisa entender como a vida real é diferente e como um segundo ou um ataque errado pode custar caro.
A mão direita de Anayê estremeceu e ela a conteve com a outra mão.
— E mais importante, é crucial aprender o nível das ameaças. As aberrações nunca hesitarão. Algumas não cansam, não desistem e não morrem facilmente.
Ele chegou mais perto, apoiado em sua bengala e acompanhado por Nally.
— Entretanto, importante mesmo foi a sua atitude em relação à criança.
Anayê ergueu os olhos púrpuras para ele.
— Se preocupar com as pessoas é uma característica inerente aos ceifadores, pois estamos aqui, em primeiro lugar, por causa das pessoas. E tanto eu quanto Chokhmáh ficamos muito felizes de observar seu sacrifício.
— Não foi legal morrer — ela comentou em um tom mais descontraído.
— Com certeza, não. Mas quando começar seu trabalho como ceifadora, já estará preparada para derrotar quase todo o tipo de aberração.
— Espero que sim.
— Tenha mais fé em si mesma, garota — o velho se virou para a mesa. — Agora, você terá outra surpresa, mais agradável eu diria.
Nally veio em sua direção com passos leves e um sorriso gigante.
— O mestre me explicou tudo depois, mas fiquei muito grata por ter me salvado, então preparei um bolo de milho para você.
— Obrigada — Anayê também sorriu.
— Bem, não preparei sozinha. A senhora Filley me ajudou a fazer.
Eles se sentaram à mesa. Os olhos de Nally não deixaram Anayê durante a refeição e ela tentava retribuir, embora não estivesse acostumada com atenção daquele tipo.
Depois de terminarem, o mestre e Nally se despediram. A criança abraçou Anayê antes de sair e o mestre recomendou um bom descanso.
Mesmo assim, Anayê levou algum tempo para pegar no sono, pois sua mente não conseguia se desvincular do horror de enfrentar uma aberração.
No dia seguinte, durante a refeição da manhã, Anayê leu mais do livro sobre aberrações e depois retornou ao treino de arremesso nos postes. Ela já era capaz de acertar todos mesmo de uma distância maior.
O mestre chegou pouco depois, dessa vez, sozinho.
— É quase difícil lembrar que dias atrás você não acertava nenhum — ele apontou para os postes.
Anayê concordou.
— Portanto, está em tempo de complicarmos esse treino.
A sugestão do velho foi colocar um pano nos olhos dela e forçá-la a atingir o alvo.
— Erhhh… eu não consigo ver nada. Como vou acertar?
— Ouça o vento com seus sentidos.
Ela havia tomado metade do frasco de fluido de oração e manejou a energia espiritual até seus ouvidos e sua pele. Sentir o seu redor daquela maneira fez um sorriso brotar em seus lábios.
— Essa percepção sensorial é uma arma poderosa para um ceifador — o mestre explicou.
Anayê mantinha três adagas em cada mão e quando o vento tocou seu rosto, ela atirou as seis adagas quase simultaneamente.
O barulho oco da lâmina acertando a madeira conferiu-lhe a certeza da vitória. Ela retirou a venda e seus olhos brilharam de satisfação.
Cada adaga havia atingido um poste diferente.
— Isso foi impressionante — o velho aplaudiu.
Anayê notou uma pilha de pedras ao lado dele e soube o que viria.
— É óbvio a evolução, não é?
Ela voltou a colocar o pano nos olhos. Dessa vez, precisaria de toda a sua concentração.
— À princípio, basta apenas desviar. Depois iremos evoluindo.
Ele pensou ter ficado claro quando ela balançou a cabeça, mas quando lançou a primeira pedra, Anayê invocou a adaga e usou sua habilidade especial, cortando a pedra ao meio.
A garota simulou um sorriso por saber de seu acerto.
— Está ficando convencida, hein. Ótimo, então vamos complicar.
Com seus sentidos, ouviu o velho pegando três pedras e lançando uma atrás da outra. Concentrou sua energia como fizera inúmeras vezes com Arghus e então desferiu três cortes na direção das pedras.
O baque no chão a fez concluir que havia conseguido.
— É muito impressionante — o mestre admitiu.
Anayê retirou a venda e segurou o riso.
— Eu disse ao senhor, fiquei treinando esses golpes por uma semana.
— Mas sua facilidade com os olhos vendados é boa.
— E o que vem agora?
— Que tal se eu jogasse as pedras para algum lugar aleatório no ar e você tentasse acertá-las antes de atingirem o chão?
— Parece interessante.
Anayê voltou a colocar a venda e o mestre indicou o início.
Ela teve alguma dificuldade nos três primeiros lançamentos, mas dominou o som da pedra no ar e a distância para desferir sua habilidade, e assim acertou todas as pedras posteriores.
Ao fim, percebeu que ainda havia fluido de oração em seu corpo.
— É, menina púrpura, você melhorou mesmo. Dominou a técnica e também o manejamento do fluido de oração.
— É muito bom ouvir isso.
— Acho que você está pronta para a próxima fase — ele comentou.
— E qual seria? — ela perguntou ajeitando uma mecha do cabelo.
O mestre colocou uma folha de hortelã na boca, começou a mascá-la e disse:
— As aberrações.
A notícia não deixou Anayê muito confortável.
— Não precisa ficar preocupada, não iremos te pegar de surpresa outra vez.
Ela ficou calada.
— Você está lendo o livro, certo?
— Sim, mas não sei se estou pronta para…
— Se esperarmos o seu medo de fracassar ir embora, nunca passaremos para a próxima fase.
Ela baixou os olhos diante do comentário.
— O que leu a respeito dos farejadores?
Anayê estava prestes a responder quando ouviu um rugido vindo do lago e percebeu o corpo curvado e magro da aberração emergindo. Engoliu a saliva e uma gota de suor escorreu pela palma de sua mão.
Ela franziu o cenho para o mestre que retribuiu com uma piscadela.
— E então, o que leu sobre os farejadores? — ele questionou novamente. — A sua leitura vai determinar a próxima batalha.
É muito bom ter você aqui!
Espero que esteja curtindo a jornada de Anayê para se tornar uma ceifadora.
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