Capítulo 66 - Formação
Anayê já havia pensado e imaginado a sua saída do quarto do ceifador várias vezes. Em algumas cenas, se via sendo aplaudida e ovacionada por Boyak e Thayala. Em outras, era julgada como incompetente e incapaz de se tornar uma ceifadora.
Porém, a realidade foi bem diferente.
Era uma manhã comum. Se levantou, fez sua refeição matinal e foi para fora. Observou uma marca na parede da casa: uma grande mão de três dedos pertencente a uma aberração. Sentia-se satisfeita quando a vislumbrava, pois lembrava da primeira vez em que vira o farejador perseguindo Nally e o quanto o medo tinha paralisado suas pernas, e ao mesmo tempo, essa recordação se misturava com a primeira vez em que derrotara uma aberração com apenas um golpe de adaga, um mês depois de começar a ler o livro.
De certa forma, aquela marca era a prova da sua evolução.
— Contando quantos dedos tem uma aberração?
Foi a voz do mestre. Ela observou o velho caminhando até o seu local, trazendo consigo uma caixinha de madeira.
— Bom dia, mestre.
Ele retribuiu o cumprimento.
— O que vamos treinar hoje? — Anayê perguntou com as mãos enfiadas nos bolsos da calça.
— Hoje teremos uma missão completamente diferente.
— Que bom.
O mestre abriu a caixa de madeira e retirou um selo pequeno, quadrado e preto com uma runa semelhante a uma águia no centro.
— O que é isso?
— A marca do ceifador. Nós mostramos isso em qualquer lugar dos reinos livres e somos reconhecidos como ceifadores — ele fez uma pausa e entregou o objeto para ela. — Este pertence a você.
As sobrancelhas de Anayê ficaram arqueadas e suas mãos seguraram o selo como se estivessem pegando um bebê recém-nascido.
— Isso quer dizer que…?
— Sim, parabéns, garota púrpura, você concluiu seu treinamento.
Ela suspirou fundo e seus lábios formaram um belo sorriso.
— Agora você é uma ceifadora.
Mesmo depois foi difícil para Anayê conceber a torrente de emoções em seu peito.
Primeiro, havia gratidão e satisfação. Uma nova força se originou em si, reconhecendo a sua própria resiliência.
Segundo, nostalgia e lembranças boas e ruins. Uma breve cena de si mesma com Boyak e Thayala, revelando a sua vontade de se tornar uma ceifadora.
Terceiro, os Três Que São Um. Como a receberam e a incentivaram a perseguir aquele objetivo. Eles estavam muito certos a seu respeito.
Fosse como fosse, o selo significava mais um ponto de virada em sua vida desde a fuga da fortaleza de Astaroth.
— Estamos muito felizes por você.
Ela ouviu uma voz atrás de si e reconheceu imediatamente. Era Chokhmáh acompanhada por Arghus.
Anayê sentiu um perfume doce ao abraçá-la. A representante da sabedoria do Deus sem face parecia ainda mais radiante naquele dia.
— Nunca duvidamos da sua capacidade — Chokhmáh falou e beijou seu rosto.
Arghus estava meio acanhado e olhava para ela com admiração oculta. Mas Anayê agarrou-o pelo ombro e o envolveu em um abraço apertado.
— Obrigada — ela sussurrou no ouvido dele.
— Parabéns — ele falou.
Depois disso, fizeram uma refeição especial relembrando os erros e acertos da garota púrpura. Seus medos e anseios, virtudes e coragem, até mesmo fatos que Anayê deixara escapar.
Chokhmáh lembrou dos principais conselhos para se tornar uma ceifadora sábia enquanto Arghus falou para melhorar na pontaria e no manejo da adaga.
Quando a refeição terminou, Chokhmáh e Arghus se levantaram e ficaram em pé diante dela.
— O que vai acontecer agora? — Anayê perguntou.
— Você vai voltar com seu mestre.
— E vai acabar com algumas aberrações — Arghus complementou.
— Vou vê-los de novo?
— Receio que sua missão conosco tenha terminado — Chokhmáh respondeu.
Anayê fitou os dois e sentiu um nó na garganta. Se censurou pelo apego demasiado por aqueles seres.
— Há muitos que precisam de você agora. Foi para isso que te treinamos. Leve a liberdade do Deus sem face para eles, assim como ela foi levada até você.
Anayê concordou.
— Obrigada.
Chokhmáh balançou a cabeça e então, como uma miragem, eles desvaneceram.
Ela ficou alguns segundos em silêncio com as mãos juntas perto da boca.
— E aí, está pronta? — o mestre perguntou.
Com um aceno, os dois caminharam para o portão de bronze. Anayê olhou outra vez para a casa, o lago, os postes de treinamento e depois para a longa escadaria e a montanha sagrada. Em sua mente, se despediu do lugar.
As colinas verdes pareciam nem ter mudado desde a sua saída. O casarão de madeira ainda possuía algumas rachaduras, a grama estava do mesmo tamanho e as árvores não haviam sido podadas.
— Lembra quando te disse que o tempo passava de forma diferente no quarto do ceifador? — o mestre questionou.
— Não.
— Bem, acho que deixei de lado a explicação pois era complexo.
Anayê observou um passarinho colorido voando céu acima.
— E o que tem isso? — indagou.
— Quanto tempo passou dentro do quarto?
Ela se voltou para o mestre e fez umas contas rápidas.
— Sete semanas.
— Certo, mas aqui, fora do quarto, se passaram apenas sete dias.
Anayê parou de caminhar.
— Como é?
— Uma semana dentro do quarto equivale a um dia aqui fora — o mestre falou bem devagar.
— Isso é… simplesmente impossível.
— Você sabe que impossível é uma palavra muito forte para dizer quando estamos lidando com ceifadores e aberrações.
Anayê olhou para trás, mas tanto o portão quanto a entrada para o quarto tinham desaparecido.
— Isso acaba de ficar mais complicado do que usar fluido de oração.
— Com o tempo, você vai entendendo, assim como as outras informações.
Ela engoliu a saliva e coçou a cabeça.
— Esse é um meio mais rápido para treinarmos um ceifador, portanto, não é a primeira pessoa a ficar chocada — o mestre disse enquanto começou a dar pequenos passos.
— Não sei se vou conseguir digerir esse fato.
— Você consegue. Ah! Mudando de assunto, tem alguém que esperou por você.
Anayê ergueu os olhos e viu Nally correndo em sua direção. O cabelo cor do sol estava preso num coque e usava um vestido azul com a barra e a cintura verdes.
— Anayê! É muito bom ver você!
— Digo o mesmo, Nally. Gostei do vestido.
— Ah! Foi a senhora Filley quem costurou para mim — ela deu uma volta se exibindo. — O mestre me disse que seu treinamento terminava hoje. É verdade?
— É sim. Agora sou uma ceifadora oficial.
Anayê retirou o selo do bolso e mostrou para a menina que ficou deslumbrada com o objeto.
— Muito legal! Quando crescer, quero muito ter um desses.
— Se passar no treinamento, você terá o seu — o mestre comentou.
— Eu vou passar, fiz um juramento para uma amiga — Nally piscou para a nova ceifadora. — Mas, sabendo da sua vitória, te trouxe um presente.
Anayê não soube o que dizer. Ainda não estava acostumada com os presentes. Por um momento, quase desviou os olhos, mas forçou-se a permanecer na menina enquanto ela retirava um colar do bolso.
— Eu mesma fiz.
O colar era adornado com pedras pequenas de quartzo.
— Isso é.. incrível. Muito obrigada. Você coloca para mim?
Anayê se abaixou e a animada Nally passou e amarrou o cordão pelo seu pescoço.
— Ficou lindo — a menina elogiou.
Mas, para a nova ceifadora, não havia nada mais bonito do que ganhar aquele tipo de atenção.
É muito bom ter você aqui!
Esse capítulo marca o fim do treinamento de Anayê e o começo de uma nova jornada.
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