Índice de Capítulo

    Anayê já havia pensado e imaginado a sua saída do quarto do ceifador várias vezes. Em algumas cenas, se via sendo aplaudida e ovacionada por Boyak e Thayala. Em outras, era julgada como incompetente e incapaz de se tornar uma ceifadora.

    Porém, a realidade foi bem diferente.

    Era uma manhã comum. Se levantou, fez sua refeição matinal e foi para fora. Observou uma marca na parede da casa: uma grande mão de três dedos pertencente a uma aberração. Sentia-se satisfeita quando a vislumbrava, pois lembrava da primeira vez em que vira o farejador perseguindo Nally e o quanto o medo tinha paralisado suas pernas, e ao mesmo tempo, essa recordação se misturava com a primeira vez em que derrotara uma aberração com apenas um golpe de adaga, um mês depois de começar a ler o livro.

    De certa forma, aquela marca era a prova da sua evolução.

    — Contando quantos dedos tem uma aberração?

    Foi a voz do mestre. Ela observou o velho caminhando até o seu local, trazendo consigo uma caixinha de madeira.

    — Bom dia, mestre.

    Ele retribuiu o cumprimento.

    — O que vamos treinar hoje? — Anayê perguntou com as mãos enfiadas nos bolsos da calça.

    — Hoje teremos uma missão completamente diferente.

    — Que bom.

    O mestre abriu a caixa de madeira e retirou um selo pequeno, quadrado e preto com uma runa semelhante a uma águia no centro.

    — O que é isso?

    — A marca do ceifador. Nós mostramos isso em qualquer lugar dos reinos livres e somos reconhecidos como ceifadores — ele fez uma pausa e entregou o objeto para ela. — Este pertence a você.

    As sobrancelhas de Anayê ficaram arqueadas e suas mãos seguraram o selo como se estivessem pegando um bebê recém-nascido.

    — Isso quer dizer que…?

    — Sim, parabéns, garota púrpura, você concluiu seu treinamento.

    Ela suspirou fundo e seus lábios formaram um belo sorriso.

    — Agora você é uma ceifadora.

    Mesmo depois foi difícil para Anayê conceber a torrente de emoções em seu peito. 

    Primeiro, havia gratidão e satisfação. Uma nova força se originou em si, reconhecendo a sua própria resiliência.

    Segundo, nostalgia e lembranças boas e ruins. Uma breve cena de si mesma com Boyak e Thayala, revelando a sua vontade de se tornar uma ceifadora.

    Terceiro, os Três Que São Um. Como a receberam e a incentivaram a perseguir aquele objetivo. Eles estavam muito certos a seu respeito.

    Fosse como fosse, o selo significava mais um ponto de virada em sua vida desde a fuga da fortaleza de Astaroth.

    — Estamos muito felizes por você.

    Ela ouviu uma voz atrás de si e reconheceu imediatamente. Era Chokhmáh acompanhada por Arghus.

    Anayê sentiu um perfume doce ao abraçá-la. A representante da sabedoria do Deus sem face parecia ainda mais radiante naquele dia.

    — Nunca duvidamos da sua capacidade — Chokhmáh falou e beijou seu rosto.

    Arghus estava meio acanhado e olhava para ela com admiração oculta. Mas Anayê agarrou-o pelo ombro e o envolveu em um abraço apertado.

    — Obrigada — ela sussurrou no ouvido dele.

    — Parabéns — ele falou.

    Depois disso, fizeram uma refeição especial relembrando os erros e acertos da garota púrpura. Seus medos e anseios, virtudes e coragem, até mesmo fatos que Anayê deixara escapar.

    Chokhmáh lembrou dos principais conselhos para se tornar uma ceifadora sábia enquanto Arghus falou para melhorar na pontaria e no manejo da adaga.

    Quando a refeição terminou, Chokhmáh e Arghus se levantaram e ficaram em pé diante dela.

    — O que vai acontecer agora? — Anayê perguntou.

    — Você vai voltar com seu mestre.

    — E vai acabar com algumas aberrações — Arghus complementou.

    — Vou vê-los de novo?

    — Receio que sua missão conosco tenha terminado — Chokhmáh respondeu.

    Anayê fitou os dois e sentiu um nó na garganta. Se censurou pelo apego demasiado por aqueles seres.

    — Há muitos que precisam de você agora. Foi para isso que te treinamos. Leve a liberdade do Deus sem face para eles, assim como ela foi levada até você.

    Anayê concordou.

    — Obrigada.

    Chokhmáh balançou a cabeça e então, como uma miragem, eles desvaneceram.

    Ela ficou alguns segundos em silêncio com as mãos juntas perto da boca.

    — E aí, está pronta? — o mestre perguntou.

    Com um aceno, os dois caminharam para o portão de bronze. Anayê olhou outra vez para a casa, o lago, os postes de treinamento e depois para a longa escadaria e a montanha sagrada. Em sua mente, se despediu do lugar.

    As colinas verdes pareciam nem ter mudado desde a sua saída. O casarão de madeira ainda possuía algumas rachaduras, a grama estava do mesmo tamanho e as árvores não haviam sido podadas.

    — Lembra quando te disse que o tempo passava de forma diferente no quarto do ceifador? — o mestre questionou.

    — Não.

    — Bem, acho que deixei de lado a explicação pois era complexo.

    Anayê observou um passarinho colorido voando céu acima.

    — E o que tem isso? — indagou.

    — Quanto tempo passou dentro do quarto?

    Ela se voltou para o mestre e fez umas contas rápidas.

    — Sete semanas.

    — Certo, mas aqui, fora do quarto, se passaram apenas sete dias.

    Anayê parou de caminhar.

    — Como é?

    — Uma semana dentro do quarto equivale a um dia aqui fora — o mestre falou bem devagar.

    — Isso é… simplesmente impossível.

    — Você sabe que impossível é uma palavra muito forte para dizer quando estamos lidando com ceifadores e aberrações.

    Anayê olhou para trás, mas tanto o portão quanto a entrada para o quarto tinham desaparecido.

    — Isso acaba de ficar mais complicado do que usar fluido de oração.

    — Com o tempo, você vai entendendo, assim como as outras informações.

    Ela engoliu a saliva e coçou a cabeça.

    — Esse é um meio mais rápido para treinarmos um ceifador, portanto, não é a primeira pessoa a ficar chocada — o mestre disse enquanto começou a dar pequenos passos.

    — Não sei se vou conseguir digerir esse fato.

    — Você consegue. Ah! Mudando de assunto, tem alguém que esperou por você.

    Anayê ergueu os olhos e viu Nally correndo em sua direção. O cabelo cor do sol estava preso num coque e usava um vestido azul com a barra e a cintura verdes.

    — Anayê! É muito bom ver você!

    — Digo o mesmo, Nally. Gostei do vestido.

    — Ah! Foi a senhora Filley quem costurou para mim — ela deu uma volta se exibindo. — O mestre me disse que seu treinamento terminava hoje. É verdade?

    — É sim. Agora sou uma ceifadora oficial.

    Anayê retirou o selo do bolso e mostrou para a menina que ficou deslumbrada com o objeto.

    — Muito legal! Quando crescer, quero muito ter um desses.

    — Se passar no treinamento, você terá o seu — o mestre comentou.

    — Eu vou passar, fiz um juramento para uma amiga — Nally piscou para a nova ceifadora. — Mas, sabendo da sua vitória, te trouxe um presente.

    Anayê não soube o que dizer. Ainda não estava acostumada com os presentes. Por um momento, quase desviou os olhos, mas forçou-se a permanecer na menina enquanto ela retirava um colar do bolso.

    — Eu mesma fiz.

    O colar era adornado com pedras pequenas de quartzo.

    — Isso é.. incrível. Muito obrigada. Você coloca para mim?

    Anayê se abaixou e a animada Nally passou e amarrou o cordão pelo seu pescoço.

    — Ficou lindo — a menina elogiou.

    Mas, para a nova ceifadora, não havia nada mais bonito do que ganhar aquele tipo de atenção.

    É muito bom ter você aqui!
    Esse capítulo marca o fim do treinamento de Anayê e o começo de uma nova jornada.

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