Capítulo 67 - Pedido de Ajuda
Quando o mestre chamou Anayê naquela manhã, o assunto sequer passou pela sua mente. O velho estava do lado de fora sentado em sua cadeira de balanço mascando uma folha de hortelã.
— Bom dia, mestre. O senhor queria falar comigo?
O cabelo dela estava preso em um coque por conta de seu treinamento matinal. Mesmo depois de ter saído do quarto do ceifador, Anayê continuava praticando suas habilidades com a adaga e um pouco de sua rajada de vento cortante.
Ela reparou em um pergaminho nas mãos do mestre.
— Recebemos um pedido de ajuda.
Ele entregou o pergaminho e Anayê leu. O documento tinha sido escrito por Fenrir, filho do líder do vilarejo conhecido como Ribeiral, que vinha sofrendo com uma doença. Os moradores apresentavam fraqueza, depois entravam em um sono profundo sem jamais acordar. Fenrir desconfiava de uma aberração escondida na floresta.
Anayê estreitou os olhos para o mestre.
— O senhor quer que eu…?
— Não temos ninguém por perto — ele comentou. — Você é a ceifadora disponível mais próxima que posso enviar.
Anayê cruzou os braços. Nem havia passado uma semana desde que saíra do quarto do ceifador.
— Não vou aceitar nenhuma das suas desculpas — o mestre adiantou. — Nada de não estou preparada ou não estou confortável.
Ela quase riu pela facilidade de leitura de sua mente.
— Você vai até o Ribeiral, analisará a situação e investigará se existe uma aberração lá. Dependendo do nível da ameaça, volte e relate. Entendeu?
Ela assentiu, embora levemente contrariada. Dentro de si, o medo era confortado pelo fato de não precisar enfrentar uma aberração. Bastava investigar e relatar a situação.
— Prepare os frascos de oração e separe comida e um cavalo para a viagem. Saia amanhã, você levará um dia ou dois até o vilarejo.
O mestre se levantou da cadeira e retirou a folha de hortelã da boca.
— Chegou o momento pelo qual lutou tanto até agora — Tocou seu ombro. — Faça o trabalho. Seja uma ceifadora.
De alguma forma, seu coração se acalmou com aquelas palavras e Anayê ficou mais tranquila durante o dia. Durante a tarde, enquanto fazia a sua parte no trabalho das colinas verdes — recolher lenha — Nally veio ao seu encontro.
— É verdade? — a menina perguntou ajeitando o cabelo louro embaraçado.
— Sim.
As duas ficaram em silêncio por um minuto. Desde a volta de Anayê, Nally se tornara quase a sua sombra, sempre que podia. E, a ceifadora costumava gostar da atenção daquela pequena. Inconscientemente, ela se via em Nally, mas era o tipo de conclusão que só teria muito depois.
— O mestre me pediu para investigar uma doença em um vilarejo.
— Doença?
— Alguém está desconfiado que possa ser causada por uma aberração.
— Ah… elas podem fazer isso?
Anayê deu de ombros, mesmo tendo ouvido sobre a possibilidade.
— De qualquer forma, estava na hora de colocar em prática minhas habilidades, não acha?
— É verdade. Você é uma das pessoas mais fortes que conheço, então vai chutar o traseiro desse monstro e salvar esse vilarejo.
— Espero que sim.
— Não seja tão pessimista, ora.
Anayê sorriu.
— Com aquele corte da adaga, você consegue derrotar qualquer criatura. Aliás, você já deu um nome para esse ataque especial?
— Se chama rajada de vento cortante — revelou com um tom dramático na voz.
Os olhos de Nally faiscaram como apenas os olhos de uma criança conseguem quando dão asas para a imaginação.
— Uau. Você é realmente boa com nomes.
— Posso te ajudar com a sua habilidade especial no futuro — Anayê disse de forma debochada.
— Até lá acho que já terei um nome.
— Com certeza.
As duas caminharam até o casarão conversando a respeito de cabelos bonitos e limpos, assunto tirado de Anayê durante boa parte da vida. Agora ela estava começando a se acostumar com algumas trivialidades.
O véu escuro da noite cobriu os céus bem rápido — ou talvez fosse a impressão de Anayê. Ela ajudou Filley a fazer o jantar — mais uma habilidade arrancada dela por conta de Astaroth. Quando criança, costumava contribuir com sua mãe na cozinha, principalmente no decorrer dos festivais de inverno e verão, ainda que sua mãe não chamasse exatamente de contribuição.
No jantar, o mestre fez um brinde especial para ela, ressaltando seu esforço. Em seguida, fizeram uma oração pedindo a sabedoria, a força e a proteção do Deus sem face. Depois falaram muito sobre os ensinamentos e as brincadeiras das crianças, e também sobre o passado da senhora Filley. Inclusive, Nally contou que iria com Filley até a cidade para trocar frutas por outras comidas. Geralmente, era um grande dia para as crianças quando podiam sair para a cidade, pois voltavam cheias de empolgação e histórias para contar às outras.
Anayê se deitou com uma boa sensação no peito. Era assim quase todos os dias nas colinas verdes.
Por um momento, até achou que teria dificuldades para dormir pensando na missão do dia seguinte. Porém, o sono a encontrou depressa.
Conforme acontecia todos os dias, ela acordou pouco antes do sol nascer no horizonte e reuniu suas coisas para partir.
Encontrou o mestre do lado de fora bocejando aos montes.
— Separei uma boa égua para você.
E entregou-lhe um dos três cavalos criados nas colinas verdes. Possuía uma bonita crina marrom e chamavam-no de Juno.
Montar em um cavalo também havia sido uma aptidão obtida nas colinas verdes e isso fez o local tomar um lugar ainda maior no seu coração enquanto partia.
Poucas vezes havia deixado as colinas desde que saíra do quarto do ceifador. Duas vezes para acompanhar Filley até Skell e outra para buscar um presente para o mestre numa estalagem na estrada.
O velho indicou o caminho até o Ribeiral que pegava boa parte da estrada principal conhecida como Rota dos Reinos, pois ligava todas as cidades grandes dentro dos reinos livres. Em mais ou menos um dia de viagem encontraria a Estrada do Carvalho por onde seguiria por mais uma dia e chegaria ao vilarejo.
De acordo com o mestre, era um caminho impossível de se perder, mas caso acontecesse ela poderia perguntar a algum viajante ou em uma estalagem. Se apresentasse o selo dos ceifadores seria bem recebida em quase todos os lugares dos reinos livres.
Acenou para o mestre e finalmente voltou sua atenção para o caminho adiante mantendo toda a sua coragem no propósito de sua vida: ajudar os outros como ela e derrotar as aberrações de Astaroth.
Anayê encontrou a rota dos reinos horas depois de deixar o pé da colina e prosseguiu o dia inteiro. A estrada era muito movimentada. Carroças, carruagens, andarilhos, soldados e viajantes transitavam. Era difícil ficar um quilômetro sem ver alguém indo ou vindo.
Um casal de idosos numa carroça puxaram assunto com Anayê perguntando de onde era e para onde estava indo. Foi a primeira vez em sua vida que ela disse para um estranho:
— Sou uma ceifadora.
Valeu por ler esse capítulo!
Espero que esteja curtindo o início da jornada de Anayê como ceifadora.
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