Capítulo 70 - Investigação
Anayê acordou cedo escutando cochichos e sussurros. Se levantou, abriu a porta e tomou um susto ao se deparar com uma fila de pessoas.
A primeira da fila era uma senhora de cabelos tão alvos quanto a neve e com um sorriso portador da tristeza. A idosa contou-lhe sobre seu marido acamado, como viveram cinquenta anos belos e o seu desejo de vê-lo recuperado. A mulher nem tinha terminado de falar quando a segunda pessoa da fila interrompeu pedindo ajuda. A idosa ficou irritada com a intromissão e uma discussão começou.
— Irei ajudá-los, fiquem tranquilos — ela precisou falar usando o máximo de autoridade.
As duas se calaram como se um trovão tivesse irrompido no local.
Manteve a calma, mas por dentro estava assustada. Teriam aquelas pessoas acampado em sua porta durante a noite inteira?
— Voltem para suas casas enquanto faço a minha refeição da manhã, então irei até vocês.
À primeira vista, eles pareceram não gostar da resposta, mas seguiram seus caminhos e se dispersaram pelo vilarejo.
Anayê fechou a porta. Levou a mão ao peito sentindo o coração acelerado. O mestre não havia informado sobre essa pressão popular.
— Não importa a situação, não se entregue a desespero. Ninguém está preparado para pensar enquanto dominado pelo desespero — fora o que o mestre lhe dissera.
Colocar o ensinamento em prática era mais difícil do que ouvi-lo, como ela mesma já comprovara durante seu treinamento.
Anayê preparou sua refeição matinal procurando manter toda a calma possível.
— Um ceifador não deve se deixar levar pela ocasião ou pela pressão do povo. As pessoas só querem enxergar seu quadro individual, mas o ceifador deve enxergar o quadro completo — o mestre também falara. — E eu sei que a vontade de ajudar um indivíduo angustiado é muito grande, quase irresistível às vezes, e pode até parecer o caminho mais prático. Porém, lembre-se do quadro completo.
Sua mente estava tomada por esse pensamento. Sim, ela ajudara muitas pessoas no vilarejo, mas não era a missão principal. Precisava encontrar a aberração responsável pela doença e derrotá-la. Assim, eles não necessitariam de fluido e ela poderia retornar para as colinas verdes.
Anayê só não sabia como as pessoas com parentes doentes de Ribeiral reagiriam ao ouvi-la dizer aquilo.
Ela colocou as duas mãos na lateral do rosto e suspirou fundo. Nunca imaginei que ser ceifador fosse tão complicado. Ajudar pessoas deveria ser um trabalho simples, não?
— Muitos ceifadores preferem estar no campo de trabalho enfrentando a pior das aberrações do que lidar com as pessoas, mas no fim, nosso trabalho continua sendo ajudá-las, mesmo quando elas pensam o contrário — mais um conselho do mestre rodeou sua mente.
Aquele velho sobrancelhudo sabe muito mesmo.
De certa forma, as pessoas de Ribeiral estavam acostumadas com suas vidas normais, por isso, ficavam chateadas quando algo era negado a eles. Anayê concluiu que sua vivência como escrava tornava a sua visão de mundo a respeito dos ceifadores bem diferente.
Ela terminou de comer e contabilizou seus frascos com fluido de oração. Ainda restavam cinco. Ficou levemente desapontada por ter usado tantos para curar as pessoas de Ribeiral. Sem ter nenhuma informação da aberração local era complicado calcular quantos frascos usaria para derrotá-la.
Deu de ombros. O que estava feito, estava feito.
Ela saiu da casa e começou a caminhar. Primeiro, passou no estábulo para verificar como Juno, a sua égua, tinha ficado. Conheceu o cuidador e constatou a bela estadia do animal. Não eram as colinas verdes, mas não era nada mal também.
Depois, continuou. Seu objetivo era investigar os arredores do vilarejo e encontrar os vestígios da aberração. Isso também definiria o tipo de criatura que estava enfrentando.
A investigação era um trabalho mais complicado para os ceifadores, porém fazia parte de um núcleo importante. Quanto mais informações obtivesse, melhor se prepararia para a luta.
Anayê cruzou o arco que delimitava o vilarejo, cumprimentou o vigia na entrada e prosseguiu pela estrada por alguns metros. Em seguida, saiu do caminho e adentrou a mata enquanto consumia um pouco de fluido de oração.
Imediatamente, sentiu a energia fluir por seu corpo e experimentou a sensação que o mestre costumava chamar de discernimento.
Luzes minúsculas e coloridas começaram a dançar pelas árvores, brotar das plantas e cintilar no solo. Buscou uma árvore alta, subiu por seu tronco robusto e, do alto, contemplou o cenário.
Ao sul, enxergou a Rota dos Reinos. De restante, o Ribeiral era cercado por floresta e apenas mais a frente uma cadeia de montanhas.
Os olhos de Anayê procuraram o sinal mais óbvio de uma aberração: uma fumaça ou nuvem cinzenta. Como não encontrou, teria de procurar outros sinais.
Desceu da árvore e prosseguiu pela mata prestando atenção aos cheiros e marcas nos troncos ou no solo.
Sua busca somente cessou depois que o sol já estava se escondendo no horizonte e ela já havia olhado os arredores com bastante cuidado.
Quando retornou para Ribeiral, se deparou com uma dúzia de pessoas na entrada e suspirou com certa frustração. Não queria dizer para as pessoas que o resultado de sua investigação inicial tinha sido nada e também não queria negar ajuda. Porém, se quisesse ser respeitada e manter sua investigação, precisaria se tornar firme.
Lembrou-se de Boyak. Como ele tinha facilidade com as pessoas e parecia que sempre sabia o que falar.
No entanto, ao notar a presença de Wliff na entrada do vilarejo, seu estômago protestou de relance.
Pelos Três, esse rapaz nunca cansa, pensou.
— Ora, ora — Wliff cruzou os braços com um sorriso sarcástico no rosto; o primeiro sorriso que lhe dera desde sua chegada — Apareceu no momento oportuno.
Ao lado dele, um homem vestido com roupas coloridas e um chapéu laranja também sorriu de forma boba. Brincos pendiam de suas orelhas e uma corrente de bronze adornava seu pescoço.
— Quero te apresentar o maior feiticeiro dos reinos livres, Duncan Strog.
Wliff fez uma mesura teatral como se Anayê realmente estivesse interessada no sujeito extravagante ao seu lado.
— Pelos sete rios da montanha congelada, uma garotinha ceifadora — seu tom foi puro deboche.
Duncan se aproximou para beijar a mão dela num cumprimento, mas ela se afastou com um gesto rude.
— Não se aproxime de mim — ela se viu dizendo.
Wliff se divertiu com a situação, pois manteve seu sorriso no rosto.
Duncan retirou o chapéu exibindo seu cabelo preto, curto e desarrumado.
— Desculpe meu primeiro comentário — ele falou. — Não foi minha intenção ofendê-la. É que nunca encontrei uma ceifadora tão jovem.
— A mão de obra está escassa para eles — Wliff zombou.
Anayê não respondeu. Caminhou para o outro lado e deixou as pessoas para trás. Ouviu Wliff declarando para as pessoas que Duncan encontraria e expurgaria a doença do vilarejo. Teve a impressão de que ele falara alto para provocá-la.
Fenrir a alcançou antes de chegar em sua casa temporária.
— Vocês querem a ajuda dos ceifadores e contratam um feiticeiro?
— Não posso controlar quem Wliff quer pagar. Não deixe isso te desanimar.
— Está tudo bem, desde que eles fiquem fora da minha investigação.
— Sinto dizer, mas acho que Wliff contratou o feiticeiro com esse propósito.
— Então fica na sua responsabilidade mantê-los longe de mim — ela exigiu.
Fenrir ficou calado.
— Ou então irei embora.
— Por favor, não faça isso — ele disse de modo quase desesperado. — Está bem, está bem, eu farei o possível para afastar Wliff e o feiticeiro de você.
— Espero que sim. Agora preciso descansar.
Ele assentiu e ficou assistindo enquanto a ceifadora entrava na casa.
Anayê se sentou depressa depois de fechar a porta. Ela não conseguiu parar de tremer. Desde quando me tornei tão exigente? Sorriu, nervosa. Surpresa pela força e atitude.
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