Índice de Capítulo

    Anayê não dormiu direito. Sonhou que falhava em expurgar a doença do Ribeiral e que era apedrejada pelo povo. Depois se viu enfrentando uma aberração muito poderosa, e incapaz de derrotá-la, fugia aos frangalhos para ser capturada pelos maggs e levada de volta para a fortaleza. Acordava suando e ofegante, grata por ainda estar bem.

    Uma mente confusa sabota a si mesma, lembrou-se do mestre dizendo. Resolveu se exercitar e comer algo.

    Quando o sol surgia no horizonte, ela comia um pedaço de queijo e carne, e ouviu passos do lado de fora segundos antes de baterem na porta.

    Imaginou que seriam pessoas pedindo ajuda e sentiu a cabeça doer um pouco só de pensar em tentar lidar com elas novamente.

    — Anayê! — era a voz Ailu.

    A ceifadora abriu a porta e a menina negra de olhos caramelos a fitou com desespero.

    — Você precisa vir rápido, por favor — Ailu falou.

    — O que aconteceu?

    Anayê não se sentiu bem em fazer a pergunta, mas tinha decidido colocar limites.

    — São os doentes! Eles estão piorando. Fenrir me pediu para te chamar.

    — Piorando?

    Ailu agarrou o braço da ceifadora.

    — Vamos, por favor, só você consegue ajudá-los.

    Anayê seguiu a pequenina pelo vilarejo até um casarão maior com telhado em forma de /\ e duas grandes janelas.

    — Não posso entrar na casa. Minha mãe proibiu — a menina revelou.

    — Pode deixar que eu cuido de tudo a partir daqui.

    Lá dentro havia uma dúzia de camas cheias de doentes idosos e de meia idade. Todos gemiam e tremiam, e as linhas cinzentas em seus corpos estava ainda mais evidente.

    Fenrir e algumas pessoas com panos molhados tentavam apaziguar a situação.

    Os olhos do jovem líder do Ribeiral se iluminaram ao vê-la.

    — Ainda bem que você veio!

    — O que houve?

    Zátia também estava entre os cuidadores e se aproximou.

    — Seus corpos começaram a esquentar durante a madrugada e depois as marcas apareceram — explicou.

    Anayê examinou um dos doentes. Os olhos haviam adquirido um tom amarelado, e a pele seguia ficando cada vez mais acinzentada. Graças ao discernimento concedido pelo fluido de oração, também conseguia ver uma fumaça tênue escapando pelas narinas.

    Descobriu um ponto significativo naquela análise: a aberração estava se alimentando da energia vital dos doentes.

    Quando curara os outros com fluido, havia reduzido a fonte de alimento da criatura, e portanto, a fera apertara o cerco e agora sugava a energia dos remanescentes.

    Um plano audacioso surgiu em sua cabeça e ela abriu um sorriso com lábios fechados. Ao levantar os olhos, viu seus espectadores com os semblantes cheios de expectativa.

    — Você vai poder ajudar? — Fenrir perguntou.

    — Mais do que isso. Acho que descobri uma forma de fazer essa aberração sair das sombras.

    Foi como se todos estivessem em uma caverna escura e vislumbrassem uma saída.

    Naquele momento, entretanto, dois sujeitos irromperam pela porta a passos largos e semblante imponente, Wliff e Duncan.

    — O que está acontecendo? Ouvi dizer que a coisa está feia por aqui — Duncan disse cheio de pompa.

    Anayê cruzou os braços, mas Fenrir e Zátia explicaram os últimos acontecimentos, inclusive que a ceifadora havia encontrado uma solução.

    — Bem, isso não me parece uma solução — Wliff criticou. — Talvez essa situação seja porque ela fez todo mundo tomar aquele líquido azul.

    — As pessoas que beberam não ficaram mais doentes — Zátia relembrou.

    — Isso não significa que ela não seja responsável — Duncan falou. — Já vi cenários terríveis se desencadearem por causa da intromissão dos ceifadores. Raramente eles resolvem um problema sem resultar em outro.

    — O que você pretende fazer? Nos diga de uma vez! — Wliff exigiu.

    — Ela não deve explicações a você — Fenrir falou antes que Anayê pudesse responder.

    — Se a vida das pessoas corre perigo, eu devo ficar sabendo, pois também sou um cidadão deste vilarejo.

    — E se ela tem respeito pelas vidas de vocês, deve uma explicação clara — Duncan disse.

    — Ela não dará nenhuma explicação — Fenrir aumentou o tom de voz. — Pois eu chamei a ceifadora e, caso deva alguma coisa, ela só deve a mim.

    — Quero ver quando a coisa ficar feia de verdade, Fenrir. Qual será a sua desculpa para defendê-la? — Wliff deu de ombros.

    Mas Duncan o segurou pelo braço e pediu:

    — Antes que ela faça algo, eu também quero analisar e dar a minha visão.

    Wliff fitou Fenrir e desafiou:

    — Vai me tirar esse direito também?

    O jovem líder suspirou.

    — Está bem, você tem permissão para analisar — Virou-se para Anayê. — Você quer sair?

    Por um instante, ela desejou responder sim. Porém, seu ímpeto de curiosidade foi mais forte.

    — Quero ver o que esse falastrão vai fazer — disse de maneira quase tão pomposa quanto o feiticeiro.

    Fenrir e Zátia se surpreenderam um pouco, mas não disseram nada.

    Duncan soltou um risinho ao ver a atitude dela. Depois caminhou até um dos doentes, sentou ao seu lado e segurou o pulso.

    — Seu corpo está muito agitado — comentou.

    Em seguida, puxou de suas vestes um objeto triangular de madeira, entalhado com símbolos estranhos, e o agitou ao redor do próprio corpo em movimentos ritmados.

    — O que está fazendo? O que é isso? — Zátia questionou.

    — Isso é um selo negro, objeto capaz de apriosionar energias malignas.

    O feiticeiro continuou balançando o selo sem nenhum efeito, pois o doente permanecia suando, tremendo e gemendo.

    — Está funcionando? — Zátia indagou.

    — Silêncio, por favor.

    Duncan sacudiu o objeto com mais verocidade, mas nada mudou. Ele se levantou bruscamente, limpou o suor da testa e ajeitou as vestes. Em seguida, começou a andar ao redor da cama de um lado para o outro, agitando o selo com crescente nervosismo. 

    Várias vezes.

    A expectativa dos presentes foi se exaurindo a cada volta, pois o doente não melhorava e nenhum evento realmente importante acontecia.

    Os moradores do Ribeiral haviam ouvido que os feiticeiros poderiam conjurar fogo e tempestades, assim como amaldiçoar ou abençoar um lugar ou uma pessoa.

    O mestre contara a Anayê que existiam usuários de poderes sombrios conhecidos como feiticeiros, mas que eles eram manipulados por Astaroth, em última instância. Muitos feiticeiros afirmavam não tomar partido nem dos deuses e nem das aberrações e demônios. Alguns mais audazes dizem estar do lado dos homens. Porém, o mestre foi claro: naquela realidade, neutralidade era uma ilusão.

    Ao mesmo tempo, o velho também havia falado a respeito dos charlatões que só queriam ludibriar as pessoas e ganhar às custas delas.

    Anayê tinha quase certeza de que Duncan era o segundo caso.

    O feiticeiro cessou seu ritual com a respiração acelerada e as mãos na cintura.

    — E então? — dessa vez foi Wliff quem perguntou.

    Ele ergueu um dedo pedindo tempo e apenas depois de muitos suspiros exagerados respondeu:

    — Essa… energia por trás da doença é muito poderosa — Pausou como se estivesse escolhendo as palavras. — Vou precisar de um ritual mais elaborado.

    Wliff não gostou da resposta e fechou a cara.

    — Pois bem, você teve a sua chance — Fenrir interrompeu. — Agora deixe a ceifadora fazer o trabalho.

    — É melhor pensar direito. Ela pode liberar uma força perigosa se não souber o que está fazendo — Duncan advertiu.

    — Está falando de uma aberração? O trabalho deles é matar essas pragas.

    — Não sem sequelas.

    — O seu tempo já acabou — Fenrir falou com mais autoridade. — Agora peço que se retire.

    O feiticeiro assentiu, guardou seu objeto e acompanhou Wliff até a saída.

    O líder do vilarejo se virou para a ceifadora.

    — Agora, por favor, nos livre desse problema.

    Anayê balançou a cabeça.

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