Índice de Capítulo

    O plano de Anayê demorou bem mais tempo do que imaginava.

    Primeiro, reconferiu quantos frascos de oração ainda possuía. Contabilizou cinco.

    Segundo, retornou ao casarão onde estavam reunidos os doentes em pior situação e aplicou uma gota de fluido em cada. A reação foi imediata e todos voltaram ao normal como se nunca tivessem estado doentes.

    Em seguida, pediu para chamarem os doentes restantes e, caso alguém não pudesse andar, ela iria até essa pessoa.

    Zátia, Ailu, Ezec, Fenrir e outros começaram a trazer os doentes e Anayê aplicava uma gota para curá-los.

    Depois ela precisou ir até a casa daqueles mais debilitados — alguns realmente aparentavam estar mortos.

    Quando terminou, Anayê ficou cansada e retornou para sua moradia para comer. Zátia e Fenrir questionaram o que deveriam fazer e ela os mandou cuidarem para todos permanecerem dentro do vilarejo. Segundo sua lógica, a aberração apareceria em breve, agora que ela retirara sua fonte de alimento.

    Após a refeição, conferiu seus fracos. Restavam Três. Quase ouviu o mestre reclamar em sua orelha porque tomara uma atitude um tanto precipitada — na mente dela era ousada.

    A outra opção seria mais demorada e complicada: investigar o território por mais dias procurando os indícios do monstro. Anayê não estava muito paciente para aguentar essa possibilidade, embora fosse a mais segura.

    Ao mesmo tempo, ao perceber o modo como a aberração operava no vilarejo, entendia que a força da criatura vinha das pessoas. Provavelmente, a fera estaria mais fraca no confronto, então não ia ser tão difícil derrotá-la.

    Bastava esperar.

    E ela esperou o dia inteiro.

    Quando o sol estava sumindo nas sombras das árvores, Fenrir apareceu em sua casa trazendo um prato com bolo de milho.

    — Zátia fez para você — ele falou.

    Anayê agradeceu.

    — Bem — ele colocou as mãos nos bolsos da calça. — Você tem mais alguma instrução para nos dar?

    — Apenas fiquem atentos e me chamem se algo incomum começar a acontecer. Ah! E não deixem ninguém sair do vilarejo. Talvez essa seja a ordem mais importante.

    — Me permita ser mais invasivo, o que você espera que aconteça? As pessoas estão bem! Todos os doentes estão curados — ele se atrapalhou nas palavras antes de continuar. — Eu nunca pensei que veria essas pessoas falando, comendo e andando outra vez. Mas agora estou aqui, diante de um milagre.

    — Esse é o poder do Deus sem face — ela afirmou.

    — Então é o tipo de Deus que gostaria de ter ao meu lado.

    — Eu, mais do que ninguém, não poderia discordar dessa frase.

    — Então o que exatamente você está esperando?

    Anayê cedeu e contou todo o seu plano. Fenrir pareceu um pouco amedrontado, mas a ceifadora sentiu que ele já desconfiava de algo, como se estivesse esperando o pior.

    — Tenho um pedido a fazer — ele disse. — Se puder, atraia essa aberração para longe do Ribeiral. Não deixe essas pessoas sofrerem mais, por favor.

    — É um pedido digno, mas não é assim que funciona. Esse tipo de aberração é atraído justamente pela energia das pessoas, e agora sua fonte de alimento foi tirada. O movimento seguinte será conferir o que aconteceu com sua comida.

    Anayê suspirou por um momento e então fitou o jovem.

    — Não posso pedir para mover as pessoas para outro lugar, a aberração iria atrás delas. Toda a medida que tomarmos a partir daqui será complicada. Por isso, o melhor movimento é esperar pela chegada do monstro e quando ele vier, eu darei cabo de sua vida.

    Ela procurou toda a autoridade para dizer aquilo.

    — Você nos colocou em uma armadilha? — Fenrir perguntou, calmo.

    Anayê balançou a cabeça.

    O jovem líder ficou um tempo calado e a ceifadora não atrapalhou seu tempo de introspecção.

    — Está bem — ele disse, por fim. — Receio que você deseje manter isso em segredo.

    — Me diga, as pessoas do Ribeiral receberão essa notícia com calma?

    Fenrir não respondeu. Colocou o prato com o bolo na mesa, se despediu e saiu da casa.

    A atitude não deixou Anayê ofendida. Na verdade, achava que o jovem tinha lidado bem com as informações. Uma única coisa a preocupava: não conseguir cumprir sua promessa de proteger todo mundo.

    A noite chegou lançando suas vestes negras pontilhadas de estrelas no céu e Anayê se viu ficando cansada. Curar todas as pessoas, lidar com a frustração de Fenrir e com o peso das suas escolhas estava deixando sua mente pesada.

    Mesmo assim, ela perseverou em sua vigília. Tinha altas expectativas de enfrentar a aberração na madrugada.

    Porém, nada aconteceu.

    E, ao amanhecer, a ceifadora pegou no sono.

    ***

    Voltou a si quando alguém bateu na porta da casa. Coçou os olhos e se espreguiçou, notando que o sol já estava quase no meio do céu.

    Era Ailu.

    Anayê também notou a penca de presentes se acumulando ao redor da entrada.

    — Bom dia! — a menina disse, animada. — Gostaria de te convidar para almoçar na minha casa.

    — Humm, parece um convite impossível de recusar. Mas eu acabei de acordar porque passei a noite em claro, então pode ir na frente que vou em seguida, tá bom?

    — Ah! Que maravilha!

    A menina saiu saltando e cantarolando.

    Anayê resolveu fazer algumas conferências antes da refeição. 

    Primeiro, verificou os arredores do vilarejo em busca de sinais da aberração. Nada.

    Segundo, começou a procurar por selos que poderiam indicar uma barreira espiritual. Essa ideia viera durante os devaneios da noite. Porém, o resultado foi nulo.

    Se dirigiu para a casa de Ailu um pouco confusa. Seu plano não possuía falhas. A aberração tinha que aparecer.

    Quando chegou a casa da menina, foi recebida tão bem quanto a primeira vez em que estivera nas colinas verdes. E esse sentimento nostálgico permaneceu enquanto comia e conversava com eles. Ailu e sua mãe também havia convidado Ezec, Zátia e Fenrir para o almoço. Anayê contou sua trajetória da fortaleza de Astaroth aos reinos livres e todos ficaram ainda mais admirados de sua coragem e resiliência.

    Fenrir parecia cabisbaixo durante a refeição, mas ela achou que era por conta da sua escolha em fazer do Ribeiral uma armadilha.

    Foi só quando o almoço terminou e ele se prontificou a ajudar Zátia com uma sacola que Anayê viu algo perturbador. Seus olhos púrpuras se arregalaram e seu corpo inteiro estremeceu.

    — Fenrir… — chamou imediatamente.

    Todos voltaram sua atenção para ela.

    — Sim?

    — Por favor, erga a manga da sua túnica.

    Fenrir hesitou. Trajava uma longa túnica preta por cima de uma camisa e uma calça.

    — Como assim?

    — Apenas faça.

    O jovem engoliu a saliva.

    — O que foi, Anayê? — Zátia questionou.

    — Por favor, se afasta dele.

    Zátia estreitou os olhos. Ailu, aos pés da mãe, se encolheu sem perceber.

    — Mostra o braço, Fenrir — Anayê pediu outra vez.

    Fenrir fitou o rosto dela e seu semblante se transformou em culpa, como uma criança flagrada fazendo arte.

    — Fenrir, o que está acontecendo? — Zátia indagou.

    — Mostra o braço ou vou ser obrigada a fazer isso — dessa vez, a voz da ceifadora foi firme.

    As mãos trêmulas do jovem se moveram devagar e puxaram a manga do braço esquerdo.

    Anayê estremeceu novamente.

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