Índice de Capítulo

    Anayê acordou cedo e fez o desjejum mais depressa do que percebeu. Fora a primeira noite de sono tranquilo desde sua chegada ao Ribeiral e, ao mesmo tempo em que vivenciava a vitória e o fim da praga, também precisava comparecer para o julgamento de Fenrir. Por isso, acordara mais cedo. Era necessário pensar no que falaria, caso lhe fosse concedida a oportunidade de testemunhar, e suas palavras continham muito peso. Sim, disso tinha total certeza. Depois de derrotar a aberração, as pessoas do Ribeiral se aproximaram dela com reverência absoluta como se estivessem diante de uma divindade. Seus olhos brilhavam de deslumbre e algumas cabeças ficavam curvadas. Anayê se perguntara se havia agido assim em relação ao Boyak. Levou um tempo para convencê-los do contrário. E Wliff ajudou a tirá-los desse torpor esquisito. Ele era um dos poucos que parecia vê-la como uma mera humana, muito embora tivesse ganhado o seu respeito.

    As pessoas escutariam e concordariam com qualquer coisa dita por ela, portanto, cautela e responsabilidade estavam em sua língua.

    Anayê se preparou para o julgamento. Amarrou o cabelo num rabo de cavalo, vestiu uma camisa azul, calça bege, e colocou uma capa pois fazia frio, então saiu e caminhou até uma casa próxima à entrada do vilarejo que fora usada para manter alguns doentes.

    Quando entrou no local percebeu quase todo o vilarejo ali. As pessoas abriam sorrisos ao vê-la e outros chegavam a tocar sua mão com fervente alegria.

    Várias cadeiras ocupavam o derredor da casa e no centro estava um púlpito de madeira com hastes de bronze. Fenrir jazia ajoelhado diante do objeto, cabisbaixo e calado.

    Anayê viu Wliff próximo do púlpito, mas encontrou um assento ao lado de Ezec e Ailu, e aguardou. Logo mais pessoas foram chegando até que três anciãos vestidos com túnicas verde-escuras se aproximaram do púlpito e um deles abriu um livro de páginas amarelas e antigas.

    — Bons sóis para vocês, queridos amigos — disse o ancião careca com o livro na mão. — Estamos aqui para presidir essa assembléia em julgamento contra Fenrir, filho de Branrir.

    Segundo o que Zátia lhe contara, o ancião careca era o próprio pai de Fenrir.

    — Ficamos à mercê de uma terrível praga que levou alguns de nossos conhecidos e familiares. Como todos ficamos sabendo através dos feitos da ceifadora Anayê, a doença era parte de uma aberração. Porém, a pior notícia foi descobrir a traição de Fenrir contra nosso povo.

    Branrir suspirou profundamente como se estivesse carregando o mundo nas costas. Em seguida, continuou:

    — Fenrir, filho de Branrir, hoje você é acusado de atentar contra o seu povo ao invocar um demônio para este lugar. Saiba que as mortes derivadas dessa doença, hoje estão sobre os seus ombros.

    Havia um silêncio noturno no salão. Todos os olhos se deslocavam do moribundo ajoelhado para os idosos em pé diante do púlpito.

    — Agora, seguindo a nossa tradição, você terá a palavra para se defender das acusações aqui postas.

    O rapaz não se levantou e sequer ergueu a cabeça, apenas disse:

    — Não tenho nada a falar, exceto que sou culpado de todas as acusações e reconheço o sangue dos meus irmãos em minhas mãos. Faça comigo o que a lei exige.

    Anayê engoliu a saliva. Eles irão enforcá-lo, Zátia dissera. Assim era a lei do Ribeiral.

    Os três anciãos pareceram satisfeitos com as palavras do rapaz, principalmente Branrir. Porém, Anayê conseguiu captar certo traço de tristeza nos olhos do ancião depois disso.

    — Esse seria o momento de convidarmos as testemunhas, mas todos somos testemunhas do acontecido. Desse modo, creio podermos passar para o veredito.

    Anayê estava em silêncio, mas seus pensamentos eram um turbilhão. Ela sabia que as pessoas escutariam se falasse, então a pergunta era se deveria falar. E caso fizesse, suas palavras seriam a favor ou contra o julgado? Fenrir tinha sido um covarde e mentiroso desde o início. Invocando uma aberração por motivos mesquinhos e chamando uma ceifadora para limpar sua sujeira. Se ele tivesse contado a verdade em sua chegada, Anayê teria resolvido tudo rapidamente e teria poupado o trabalho. Havia algum motivo para defendê-lo?

    Mesmo assim, ela ergueu a mão.

    Os olhos dos presentes se voltaram para o gesto com surpresa e respeito.

    — Parece que nossa salvadora deseja falar antes de prosseguirmos para o veredito. Por favor, Anayê, venha.

    A ceifadora se levantou e caminhou até o púlpito se colocando ao lado de Fenrir. Ele permaneceu em silêncio.

    Anayê cerrou os lábios. Desde quando tinha coragem para falar diante de tantas pessoas? Ela recusou as suas neuras e se concentrou no discurso.

    — Alguns de vocês já conhecem a minha história — disse. — Sou uma fugitiva da fortaleza de Astaroth, uma escrava dos reinos devastados. Fui uma covarde a minha vida inteira, mentindo para mim mesma a respeito das minhas condições. Só estou aqui hoje porque um ceifador lutou por mim e me ensinou um caminho de coragem e verdade. Um dia, ele deu voz a uma escrava, defendeu uma desconhecida e lutou pela minha vida.

    Pausou enquanto fazia questão de olhar um por um bem no fundo dos olhos e eles escutavam como ela sabia que fariam.

    — Me tornei ceifadora para ser como ele. Meu desejo é salvar o maior número de vidas que puder, mesmo as desconhecidas, mesmo aquelas vistas pelos outros como desprovidas de valor. Sei que o Fenrir merece ser condenado, mas hoje peço para salvarem uma vida. Hoje peço que não deixem mais sangue ser derramado. Hoje, se a minha palavra tiver algum valor para vocês, peço que não matem.

    — O que sugere, Anayê? — Branrir perguntou.

    A ceifadora via o desespero em seus olhos.

    — Não podemos simplesmente libertá-lo — ele acrescentou.

    Anayê ficou calada por um momento, não havia pensado além daquele discurso.

    — Exílio.

    A sala inteira se voltou para Wliff, o responsável pela ideia. 

    — Ele viverá, mas não poderá retornar ao Ribeiral — Wliff explicou.

    Alguns burburinhos começaram e os três anciãos também conversaram entre si por um longo minuto.

    — O que acha da ideia, Anayê? Você se dará por satisfeita com tal veredito?

    A ceifadora concordou com a cabeça.

    — Os demais presentes nesta assembléia estão de acordo?

    Todos levantaram a mão, sem exceção.

    ***

    Ao fim da tarde, Anayê já tinha organizado suas coisas e estava na entrada do Ribeiral se despedindo das pessoas. Ezec e Ailu não paravam de perguntar quando voltaria e Zátia lhe trouxera um colar feito de pedrinhas brancas – um sinal de amizade para o povo do vilarejo. Ela também agradecera em segredo por ter apelado pela vida de Fenrir, pois se considerava um pouco responsável por ele. Anayê retirou aquela ideia da cabeça dela porque o rapaz era o único culpado de toda a situação.

    Outras pessoas trouxeram mais presentes como uma túnica colorida, pulseiras, anéis e pratos típicos do Ribeiral.

    Branrir foi outro a agradecer pela vida de Fenrir. Por causa de sua posição de liderança, ele precisava ser imparcial, mas conforme confessou à ceifadora, seu coração estava partido em mil pedaços tanto pela atitude do filho quanto pelo terrível destino que o esperava caso fosse condenado.

    — Obrigado por apoiar a minha ideia no julgamento — Wliff disse quando a cumprimentou.

    — Foi uma ótima ideia. Acho que você será um grande líder. Cuide bem deles.

    — Vou fazer o meu melhor.

    Anayê montou a sua égua e partiu. Olhou uma última vez para aquelas pessoas humildes e seus rostos radiantes. Queria gravar bem o momento em sua mente, pois gostaria de se lembrar dele caso esquecesse do seu propósito como ceifadora.

    Ela então voltou-se para a figura caminhando ao seu lado.

    — Fico feliz que tenha aceitado a minha oferta.

    Fenrir não ergueu os olhos. Caminhava com os ombros caídos e usava um capuz.

    Depois do julgamento, Anayê havia falado com ele.

    — Por que fez aquilo? — o rapaz indagara.

    — Você não ouviu meu discurso? — ela respondera de forma irônica.

    — Muito obrigado.

    — Fenrir, você recebeu uma chance que poucos teriam. Cabe a você torná-la digna da fé que o seu povo colocou em suas mãos. Se vier comigo, posso te mostrar um caminho melhor.

    Ele tinha hesitado de início. Não se considerava digno, ela imaginava. Porém, pouco depois, aceitara.

    Agora, cavalgando ao lado dele, Anayê estava ciente da mão dos Três Que São Um naquela situação.

    — Vai me levar para ser um ceifador? — ele perguntou.

    — Não. Vou te levar para conhecer uns amigos.

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