Capítulo 76 - A Festa da Liberdade
Anayê estava apreciando o sol do amanhecer enquanto fazia seus exercícios. A camisa molhada de suor e os cabelos ensopados tinham um efeito de orgulho sobre ela, quase como atestado de sua persistência.
Uma semana se passara desde a sua chegada do Ribeiral, e especificamente naquele dia, partiriam rumo a Skell, a cidade neutra para a celebração dos reinos livres. Segundo o mestre dissera, era a festa mais importante de todo o continente, pois relembrava a liberdade como o símbolo mais relevante dos reinos.
Com a ajuda da senhora Filley, Anayê tinha preparado um vestido amarelo e púrpura com uma cinta de couro para ressaltar a sua cintura. De fato, ela não gostava muito dos vestidos porque não eram bons para o combate, mas o mestre lhe garantira a tranquilidade nesse evento.
— Você vai para a festa como uma cidadã dos reinos livres e não como uma ceifadora — ele falara.
Sua mente se voltou rapidamente para Fenrir. O jovem exilado não tinha ficado a vontade com a recepção caridosa das Colinas Verdes. Ela chegou a se lembrar de si mesma quando chegara. Fenrir aceitou o jantar e a cama, mas revelou não estar contente com aquilo. Achava que precisava sofrer por ter traído e destruído seu povo.
Então o mestre ofereceu uma escolha.
— Você pode trilhar o caminho da peregrinação ou decidir trilhar seu próprio caminho.
A peregrinação era um meio concedido pelo Deus sem face para os traidores e mentirosos.
Fenrir pensou durante um dia inteiro. Confessou para Anayê que achava melhor ter morrido no seu vilarejo, pois viver com aquela vergonha era pior. A ceifadora sobrepôs seu argumento.
— Se você tivesse morrido não poderia mostrar ao seu povo que estava arrependido. Apenas suas próximas ações demonstrarão seu arrependimento.
No dia seguinte, Fenrir escolheu a peregrinação. Após tomar uma gota de fluido de oração, ele partiu rumo à ilha flutuante.
Anayê estava ao seu lado, porém, notara que a ponte parecia se estender até o infinito e não enxergava a ilha flutuante. O mestre explicara depois que cada pessoa possuía uma jornada diferente até o Sinai.
Depois da partida de Fenrir haviam se passado cinco dias.
— Ei, Anayê! Já está pronta?
Fora Nally quem chamara. A menina trajava seu vestido azul, perfeitamente desenhado em seu corpo.
— Estava esperando você para me ajudar — a ceifadora disse.
— Então, vamos logo, o mestre odeia atrasos.
***
Foram dois dias de viagem até a cidade neutra. Uma carruagem veio buscá-los, embora a maioria das crianças quase não coubesse. Foi uma jornada diferente da primeira vez que Anayê chegara às Colinas Verdes, tanto pela companhia quanto pela situação.
Além disso, a Rota dos Reinos, a principal estrada que ligava as cidades dos reinos livres, estava lotada de pessoas, carroças e carruagens. Muitos vendedores ocupavam postos de parada para oferecer todo o tipo de coisa, desde ofertas de sacrifício – Anayê descobrira que os deuses variados cobravam diferentes ofertas – até presentes e jóias.
No caminho, Anayê viu se destacar a adoração à Malvínia, a deusa da guerra dos povos do Rio Estreito. As imagens da deusa na estrada estavam adornadas com flores, colares e incenso. E também com pessoas ajoelhadas realizando suas preces.
Segundo Finney contara, os povos do Rio Estreito acreditavam ter conseguido a sua independência de Fenda Profunda através um ato divino de Malvínia que fizera chover no dia da guerra e inutilizara as bigas e carruagens dos inimigos.
Anayê também viu muitas árvores e plantas pintadas e pessoas trajadas de vestidos feitos de flores ou adornados com madeira polida. Esses eram fiéis de Hustephor, o deus da existência, uma crença evoluída a partir de uma veia filosófica que acreditava que a existência e a inexistência eram fragmentos da mesma coisa. Eles viam toda a existência como uma dualidade: bem e mal, verdade e mentira, feio e bonito, etc.
A cidade neutra nunca estivera tão cheia e tão deslumbrante. Bonitos diamantes foram colocados nas muralhas e bandeiras coloridas pendiam dos portões, além de estandartes espalhados por toda a cidade com brasões de todas as famílias e reinos importantes do continente.
O mestre alugou uma casa de um conhecido para ficarem durante os dois dias de festas. Ele alertou para que as crianças jamais saíssem sem um adulto e também advertiu os adultos para tomarem cuidado. Era comum ter a presença de charlatões naqueles dias.
— Tome, isto é seu — o velho disse, entregando um saco de moedas para a ceifadora.
Ela franziu o cenho.
— Para que isso?
— Digamos que o povo do Ribeiral ficou bem feliz com as suas ações, mais especificamente o pai de um jovem exilado.
Anayê sorriu sem abrir os lábios.
— De vez em quando, os ceifadores também recebem por seus trabalhos.
Contou uma dúzia de moedas de ouro.
— Agora vá e se divirta um pouco.
Anayê saiu acompanhada de Nally. As duas passaram pela praça do mercado que parecia ter triplicado de tamanho com suas bancas, vendedores e chamarizes. Encontraram todo o tipo de objeto e jóia ali, originadas de todos os lugares dos reinos livres.
Além disso, conheceram pessoas de todos os tipos. Uma mulher com o rosto pintado de amarelo e verde, segurando um pote de tinta, em certo momento, fez um símbolo na mão de Nally que representava um pássaro voando. Depois encontraram um grupo de homens com a cabeça raspada repetindo uma prece várias e várias vezes, e uma dúzia de mulheres com brincos nos cabelos e nos narizes.
Mais a frente, alcançaram o anfiteatro, uma estrutura circular com arquibancadas em degraus que circundavam a área central, a arena. Lá, elas assistiram a uma peça que representava a luta inicial dos homens contra Baal, uma aberração antiga. A vitória e expulsão da entidade maligna resultou na criação dos reinos livres. No final da peça, quando o rei se casa com a bela dama, Anayê e Nally quase choraram.
Próximo da tarde, depois de comerem uma peixe feito à moda do sul, elas encontraram Erlik e alguns dos fugitivos da fortaleza de Astaroth. Reencontrá-los foi como viajar no tempo. Anayê se viu como aquela menina espantada e curiosa na primeira vez que estivera em Skell.
Todos estavam bem. Alguns trabalhavam como funcionários nos registros, outros como vendedores ou pilotavam carruagens. Infelizmente, poucos tinham se perdido, fosse por causa de doenças inesperadas ou desaparecimentos misteriosos.
Anayê contou sobre sua jornada até se tornar uma ceifadora e como havia ajudado a derrotar a aberração no Ribeiral. A história surpreendeu a todos e eles fizeram um brinde à ceifadora.
Por fim, quando o sol estava para se pôr, Anayê e Nally se sentaram nas escadas em frente ao prédio dos registros. Recordou de Boyak sentado ali ao lado de Thayala, e sentiu falta dos dois.
— No que você está pensando? — Nally perguntou.
— Em como as coisas mudam depressa. Mudam mais rápido do que podemos controlar.
— Isso é ruim?
Anayê admirou a inteligência da garotinha.
— Acho que depende. Mas gostaria de saber distinguir quando estamos vivendo um desses momentos bons.
— Será que esse é um deles?
A ceifadora abriu um sorriso e balançou a cabeça.
— Com certeza.
Elas retornaram para a casa alugada. Jantaram carne, leite e vinho.
No dia seguinte, compareceram ao discurso do rei de Skell. Sempre havia um discurso, era tradição. Ele falava sobre a importância de manter a liberdade para todos os povos, pois isso fazia os reinos livres prosperarem.
Mas Anayê não prestou muita atenção nisso, pois enxergou um sujeito próximo do rei. Era o conselheiro-chefe Oscari que basicamente havia expulsado Boyak da cidade. E nessa confusão, Rom colocara seu dedo e quase matara o ceifador. Anayê tivera de matá-lo, uma cena que fazia questão de esquecer.
Porém, em seu coração, o culpado continuava sendo o rei e seu conselheiro-chefe que temiam uma retaliação de Astaroth após a queda da torre do maquinário, um medo que jamais se concretizou.
Boyak podia ter causado algum transtorno breve, mas o golpe precisaria ser ainda mais violento para derrubar Astaroth.
E um plano mirabolante começou a surgir na mente de Anayê.
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