Índice de Capítulo

    Aquela semana estava sendo típica. Sim, Anayê havia exercitado sua calma e paciência depois de conversar com Finney e desde então se passara mais um mês.

    Nesse tempo, ela havia criado algumas situações para tomar tempo e outras acabaram surgindo naturalmente, por exemplo, o aniversário de setenta anos do mestre. Finney, Anayê e as crianças se planejaram e conseguiram fazer uma festa bacana com direito até a doces. 

    O velho se flagrou sem graça e surpreso, mas depois Finney dissera que ele sempre esquecia do seu aniversário. Era interessante enxergar o mestre após a história de Ananda, e ver como ele parecia se importar com cada criança, mesmo havendo dez para cuidar.

    Não sou apenas eu que tenho meus demônios, ela pensou.

    Finney contou a todos quando conheceu o velho ranzinza – usou exatamente essas palavras para se referir a ele – há mais de cinquenta anos. Ela ficara refém de um bando de maggs junto com os sobreviventes de seu vilarejo e então o velho surgiu e os libertou. Sem lugar para ir, o mestre levou os remanescentes para as Colinas Verdes.

    — Só havia uma cabana de madeira aos pedaços onde hoje é o casarão — contou. — Colocamos a mão na massa e fizemos deste lugar nosso lar.

    Nally e outras crianças questionaram onde estavam os outros e a pergunta pesou no clima, mas apenas a ceifadora notou.

    — Eles se foram… de várias maneiras — foi o mestre quem respondeu.

    Em seguida, o velho narrou mais uma de suas aventuras quando ainda era um jovem ceifador e da influência do Deus sem face em sua vida.

    Mais tarde, com as crianças dormindo e a Colina silenciosa, Anayê se sentou no chão enquanto o mestre relaxava em sua cadeira de balanço à luz do resto da fogueira.

    — É tarde para estar acordada — ele falou.

    — Eu deveria dizer o mesmo para você.

    — Engraçadinha.

    Anayê fitou as chamas queimarem as madeiras por um momento.

    — Finney te contou, não é?

    — …

    — Sobre Ananda.

    — Ah! Isso… — ela ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Sim.

    — Não era para contar.

    Anayê franziu o cenho e ele continuou:

    — Não quero que me obedeça com base em minha tragédia pessoal. Sou um mestre e sei o que estou dizendo, isso deve bastar para a obediência. Você acha que é a primeira aluna com quem discuto? Bah!

    A ceifadora observou a fogueira, o chão e as estrelas antes de dizer:

    — Não é uma questão de obedecer baseado em uma tragédia, é uma questão de enxergar por uma nova perspectiva. Veja, por exemplo, hoje sei que o Boyak lutou por mim quase até a morte porque ele queria se provar depois da perda de sua filha. Isso não fez o seu sacrifício diminuir, mas ganhar um novo sentido, mais pessoal e especial.

    — Eu não quero me justificar toda vez em que te der uma ordem.

    — Você não vai precisar. Mas, só às vezes, uma boa justificativa basta.

    O mestre virou a cabeça e a fitou.

    — Está ficando boa com as frases, hein. Quem te ensinou essa? Finney?

    Ela sorriu.

    — Talvez algum dia eu te conte.

    O velho bufou.

    — Esse sarcasmo eu sei de onde vem.

    ***

    No dia seguinte, Anayê se ocupou de seu treinamento. Desenvolvera um novo treino semanas antes quando percebera que a energia na adaga e no seu corpo era igual, como se forjados na mesma fonte. Após essa descoberta, notara que podia invocar a arma de volta à sua mão mesmo se já tivesse lançado a lâmina na direção de algum alvo. Desde então, estivera compenetrada em usar essa descoberta como um benefício.

    Outro ponto em que focava era em aumentar a força de sua técnica rajada de vento cortante, afinal, durante sua luta no Ribeiral, a rajada fora ineficaz para destruir a aberração. Então ela pedira ao mestre objetos que pudessem se assemelhar com a estrutura da pele da aberração ou até mais de difícil penetração e o velho conseguira alguns troncos da ilha flutuante, transformados em pedaços de madeira para o treinamento.

    Até então Anayê só causara alguns arranhões em uma tora.

    Mas isso não a deixara desanimada, pelo contrário, pareceu acender o fogo da perseverança e manteve sua mente muito ocupada.

    No meio do dia, enquanto remontava a técnica de invocação da adaga, Finney pediu que fosse até a estalagem entre as estradas de Zovig e Brakivad para comprar alguns suprimentos. Anayê se lavou, vestiu uma calça preta, botas de couro e uma camisa branca com gola em V de mangas curtas, além do seu colar, o presente de Nally. 

    Chegou à estalagem quase ao fim da tarde, comprou os itens da lista de Finney, deu água para sua égua e partiu de volta para casa.

    O sol estava sumindo no horizonte e a estrada mergulhava na escuridão. Felizmente, Anayê já se familiarizara com aquele pedacinho do mundo após tantas idas e vindas a estalagem ou a Skell. Contudo, foi naquele começo de noite que seus olhos fitaram um acontecimento inédito naquelas bandas: uma criança corria pelos prados.

    A pequena tinha cabelos cortados na altura do queixo de um jeito desleixado e um vestido maltrapilho que se parecia com o saco de feno comprado para Juno.

    A menina saltou para a estrada, tropeçou nos próprios pés e levou uma queda, mas não se deixou intimidar e levantou rapidamente.

    — Ei! — Anayê gritou.

    Foi nesse momento que tudo mudou.

    Quando os olhos se cruzaram, Anayê enxergou o medo dentro deles e a sensação familiar de desespero se apossou de seu peito trazendo tremor ao seu corpo.

    A ceifadora soube antes mesmo de ver os hematomas nos braços, pernas e no rosto da pequenina.

    A menina recuou como se não estivesse reconhecendo ou acreditando no que estava vendo.

    — Calma, fica calma — a ceifadora falou, descendo do cavalo e se aproximando.

    Imundo. Era essa a palavra que usaria para descrever o rosto da criança. Lágrimas deviam ter se misturado com poeira e criaram lama.

    — Meu nome é Anayê, sou uma ceifadora.

    Silêncio. Os olhos da menina ainda repletos do mais puro medo. Anayê sabia que se fizesse um movimento brusco, a pequena sairia correndo.

    — Qual é o seu nome?

    A mão da garota segurava a barra do vestido com tanta força que os nós dos dedos estavam ficando roxos. Seu olho esquerdo se assemelhava a um pedregulho de tão inchado.

    — De onde você vem? — Anayê deu mais um passo lentamente. — Onde estão seus pais?

    Mais silêncio.

    De repente, seus sentidos captaram ação e ela se esquivou segundos antes de um machado cravar aos seus pés.

    Ao fitar a arma, Anayê estremeceu novamente. Reconhecia aquele machado pequeno e enferrujado. Reconheceria em qualquer parte do mundo. Muitas vezes fora ameaçada com aquela arma na fortaleza de Astaroth.

    Ela olhou para o lado e visualizou três criaturas corcundas, verdes, com grandes bocarras e trajando armaduras de ferro saltando para a estrada.

    Anayê fechou a mão em um punho. Eram maggs.

    — Incrível como ela desviou daquele ataque, não é? — questionou um dos maggs.

    E, rapidamente, eles a cercaram. Dois ainda mantinham seus machados.

    — Escolheu o dia errado para passear, querida.

    — Que azar!

    — Agora vamos te matar, comer seu corpo, levar sua égua.

    — Não esqueça da criança, Cerp.

    — Ah, com certeza, não esqueceremos.

    Mas a menina havia sumido.

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