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    Anayê chafurdou na lama sombria de suas memórias, um misto de ódio e tristeza transbordava em seu peito, fervilhando com a possibilidade da violência. Ela nunca tinha imaginado que aqueles sentimentos tão profundamente guardados voltariam à tona de maneira voraz.

    Seus dentes se fecharam em rosnado animalesco e seus olhos se encheram de brutalidade, assustando até mesmo o magg em sua frente, que segurou mais firme seu machado.

    A cena da menina correndo pelos prados se misturou às suas próprias recordações, se misturando e embaralhando sua noção de realidade. Só conseguia ver sua vila queimando, sua mãe perecendo nas mãos da aberração pálida e sua captura pelas mãos dos maggs.

    — Vocês… — ela murmurou, quase um grunhido. — Vocês vão morrer.

    No mesmo instante, invocou a adaga que surgiu em sua mão direita com a lâmina reluzindo um brilho azulado.

    Um magg à sua esquerda avançou com um ataque vertical, mas ele era tão lento e previsível que Anayê nem precisou de esforço para esquivar, e revidou com dois golpes. A adaga entrou primeiro na parte lateral do abdômen e o ferro sequer conseguiu fazer resistência. Em seguida, foi levado ao pescoço e abriu um buraco de onde jorrou um guincho de sangue verde.

    O magg deu dois passos e caiu morto, sem grito e sem escândalo. 

    Seus companheiros arregalaram os olhos, pois tudo tinha acontecido muito rápido na concepção deles.

    — Qualquer aberração que atravessar meu caminho vai morrer!

    E ela avançou novamente.

    O magg com o machado lançou um ataque vertical enquanto o outro corria para recolher sua arma do chão.

    Anayê abaixou e cortou o joelho do inimigo que se desequilibrou com o peso de seu ataque e de seu golpe, mas antes de deixá-lo cair, a ceifadora se levantou e desferiu um corte no antebraço da criatura que desmembrou sua mão. E, logo em seguida, a adaga atravessou a garganta do magg, finalizando a vida em seu corpo.

    A lâmina estava manchada de verde quando ela se virou para o último rival. O magg segurava o machado com as mãos trêmulas e o rosto vidrado numa expressão de horror.

    — Você… é uma ceifadora? — ele balbuciou.

     Anayê não respondeu, mas quando ela moveu as pernas para andar, o inimigo arremessou seu machado em sua direção, um ataque evitado por um simples mover da adaga. Porém, para sua surpresa, a criatura saiu correndo pelos prados com passos desajeitados.

    — Você acha que pode escapar de mim?! — ela gritou.

    O magg continuou avançando como se um bando de coiotes estivesse em seu encalço e só baqueou quando sentiu algo atingindo suas costas. Após um grunhido de dor, sentiu outra vez a lâmina gelada atravessando sua armadura e furando sua costela. Suas forças o deixaram imediatamente e um tropicão levou-o ao chão.

    Tentou usar um dos braços como um impulsionador para se arrastar até perceber as botas de sua rival bem à sua frente.

    Anayê pisou na cabeça da criatura e a esfregou no chão. O magg suplicou por debaixo da terra enquanto suas mãos e pernas tentavam em vão forçar uma fuga.

    Depois a ceifadora se abaixou e agarrou a cabeça dele com uma das mãos. Os hematomas e cortes no rosto da criatura fizeram uma espécie de satisfação emergir em seu peito.

    — O que vocês estavam fazendo aqui? — ela perguntou.

    — A garotinha… ela escapou. Farejamos para encontrá-la.

    — Destruíram a vila dela?

    O magg ficou em silêncio, mas era uma resposta suficiente.

    — Tem mais de vocês por perto?

    Tomado pela certeza de seu fim, a criatura abriu um sorriso com dentes grandes e imperfeitos e falou:

    — Tantos que nem você com essa adaga pode combater. Vá até o nosso acampamento e morra, ceifadora!

    O magg cuspiu no rosto dela e foi finalizado com vários golpes de adaga na cara.

    Anayê se ergueu com a roupa cheia de pigmentos verdes, mas com a sensação de recompensa tal qual não experimentara nem no Ribeiral.

    Então seus pensamentos se voltaram para a menina que havia sumido durante a chegada dos maggs e tão logo observou seu redor encontrou a garota escondida atrás de um grande carvalho destacado na região.

    — Não tenha medo — ela disse se aproximando bem devagar. — Não vou machucar você. Os maggs não podem mais te capturar.

    Aos poucos, um passo de cada vez, a menina surgiu, levemente assustada.

    — Vou te levar para um lugar seguro, está bem?

    Anayê se ajoelhou em frente da criança e pousou uma mão no ombro dela. E então as lágrimas apareceram no rosto da pobre garotinha como uma válvula de escape depois de todos os horrores.

    ***

    Anayê levou a menina para as Colinas Verdes. Para as crianças foi uma novidade ter uma nova adicionada ao grupo. Para Finney foi a providência dos Três que colocou a ceifadora no momento certo na estrada. Para o mestre foi um sentimento dúbio. Ele ficou extasiado com o livramento da menina pelas mãos de sua aluna, mas preocupado pelo modo com o qual a ceifadora reagira à situação, e o que ela faria a seguir com a informação de outros maggs espalhados na região.

    Anayê não estava perturbada com a maneira que eliminara as aberrações e revelara ao mestre o sentimento satisfatório perpetuado em seu peito. Por outro lado, suas maiores preocupações se voltavam para a criança que não emitia uma palavra.

    Ela havia comido, tomado banho, trocado de roupa e até tinha dado risada de uma piada de Nally, mas não respondera nenhuma pergunta e parecia extremamente incomodada quando falavam de sua família e dos maggs.

    A ceifadora não fizera questão de questionar a respeito de um acampamento de maggs, porém, sua intuição afirmava que a garota tinha fugido de lá.

    — Dificilmente ela saberá onde fica — Finney dissera. — Deve ter escapado para qualquer lugar.

    Nos dois dias seguintes, as tentativas continuaram a falhar e a produzir momentos desconfortáveis com a criança. A menina se recusava a dormir em outro quarto senão com a ceifadora como se os maggs fossem aparecer a qualquer momento. Foram noites em que Anayê acordou com a menina chorando ou gritando após inúmeros pesadelos.

    O mestre e Anayê trocaram vários olhares durante as tentativas, pois o velho desconfiava de todos os pensamentos da aluna e sabia ser a criança o único impedimento para a concretização dos planos dela.

    No fim do dia, Anayê se sentou ao lado da menina no alto da colina enquanto ela observava o sol ser engolido pelo horizonte.

    — No vilarejo onde eu morava antes de ser capturada pelos maggs, a gente costumava fazer um colar de pétalas e flores para os estrangeiros como sinal de boa fé e esperança — a ceifadora contou.

    Então, mostrou um colar colorido composto de várias flores.

    — E este é para você.

    A menina ergueu as sobrancelhas e aceitou o presente colocado em volta de seu pescoço. Observou rosa por rosa, pétala por pétala, em silêncio e com curiosidade infantil.

    — Miriã.

    O semblante de Anayê se transformou em surpresa.

    — Meu nome é Miriã.

    A ceifadora abriu o seu melhor sorriso.

    — Muito prazer, Miriã. À propósito, é um belo nome.

    — Muito prazer, Anayê. E à propósito, obrigada por salvar minha vida.

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