Índice de Capítulo

    Miriã continuou falando, aos poucos, a seu tempo. E, com a liberdade e afeto de todos, sua responsividade foi aparecendo e encantando por sua esperteza, mesmo com apenas dez anos de idade. Sabia escrever e ler muito bem, e possuía aptidão para o ensino, habilidade extremamente apreciada pelo mestre.

    Ela e Nally se tornaram amigas quase instantaneamente. Talvez o fato de ambas estarem próximas de Anayê fosse responsável. E começaram a compartilhar ações e histórias em comum, por exemplo, terem perdido os pais para aberrações.

    Mas enquanto a garota se soltava e esquecia dos seus horrores — ela passou a dormir mais tranquilamente — Anayê passava a pensar ainda mais nos maggs. Era como um mosquito voando ao redor do ouvido ou uma coceira nas costas. A ceifadora até confessou o desconforto ao mestre, mas o velho apenas dizia para esquecer e focar em Miriã.

    — Você não apenas salvou a criança, mas trouxe sua mente de volta. Não pode ficar feliz com isso?

    Sim, ela estava muito contente. Participar da recuperação de Miriã trazia satisfação espetacular ao seu ser, e fazia Anayê ter certeza de que nascera para ser ceifadora. Porém, esse sentimento estava totalmente atrelado a sua inquietação em esquecer dos maggs a solta.

    Para acalmá-la, o mestre escreveu uma carta e pediu para levá-la até Skell, ao ministro do rei, Oscari.

    — O mesmo cara que expulsou Boyak e nos colocou diretamente nas mãos de Rom? — Anayê relembrou, cruzando os braços.

    — Aquela era outra situação. Apresente-se em meu nome e ele irá ouvir. Escrevi alertando sobre a presença dos maggs nas redondezas de Skell.

    Anayê desacreditava na justiça de Skell, mas obedeceu e carregou a mensagem.

    E se arrependeu.

    — Desculpe, o conselheiro do rei está muito ocupado hoje. Deseja retornar amanhã ou esperar? — informara Finéias, um dos guardas.

    Anayê esperou. E, mesmo quando todos os seus instintos gritavam que era perda de tempo, ela aguardou. E, mesmo quando o sol subiu aos céus e desceu na linha da muralha da cidade, aguardou.

    Quando a noite já dominava o mundo, Finéias a chamou e a levou até uma grande sala cheia de quadros, pergaminhos e livros.

    Oscari estava sentado em uma espécie de sofá repleto de peles de animais. Em suas mãos, repousava uma taça de vinho e um pergaminho.

    — Oh, perdoe-me, querida — ele falou colocando o pergaminho de lado.

    — Senhor, trago uma mensagem do mestre das Colinas Verdes — ela entregou a carta.

    Senhor?, ela zombou na mente observando aquele homem acima do peso trajando vestes pomposas.

    — Maggs? Nas redondezas de Skell? — ele franziu o cenho ao terminar de ler. — Tem certeza?

    — Eu matei três deles com as minhas próprias mãos.

    — Ah, então você é uma ceifadora?

    Anayê não conseguiu identificar se ele estava zombando ou sendo sincero.

    — Desculpe, é que… não aparenta ser perigosa — Oscari justificou.

    Novamente, não soube fora rude ou verdadeiro. Ambas as coisas, sua mente concluiu.

    — Os maggs perseguiam uma criança.

    — Sim, eu li. Diga ao mestre que relatarei seu alerta ao rei.

    — Quando?

    Oscari fechou o semblante como se a pergunta fosse ofensiva.

    — Oras, quando eu estiver diante dele.

    — Amanhã?

    — Para uma ceifadora, você é um tanto rude em seus modos. Deixe-me ser claro, menina, estamos com problemas nas fronteiras dos reinos livres, e apenas Skell está entre a liberdade e o reino de Astaroth.

    — Eu posso ajudar, se estiver com problemas nas fronteiras — ela ofereceu, quase imediatamente ao fim da frase do conselheiro.

    — Matando os mensageiros de Astaroth e rompendo com um tratado de paz de cinquenta anos?

    — Não se deu conta ainda? Não existe tratado de paz com aquele monstro!

    — Conheço a opinião de vocês, ceifadores, mas quem mantém os reinos livres em segurança é o nosso tratado e não as suas guerrinhas particulares — Oscari não disfarçou seu tom de desprezo. — Agora, por favor, volte para casa, cace alguns monstrinhos e deixe o rei cuidar dos assuntos sérios, está bem?

    Ele tomou um gole do vinho e Anayê teve vontade de engasgá-lo com a taça. Porém, não se censurou mais, pois tinha certeza de que acabaria sem ajuda. E estava certa.

    Entretanto, o pior era sentir que o mestre a fizera perder tempo. O velho devia saber a verdade sobre os políticos e nobres de Skell: eles não se preocupavam com as aberrações. Que tipo de paz destruía vilarejos, deixava orfãos e levava crianças prisioneiras? Na fortaleza de Astaroth, todos conheciam que a paz do lorde sombrio era um ardil para aumentar seu poder e seu reino até o ponto da ruptura final, o dia de destruir os reinos livres e tornar todos os humanos escravos.

    Ela retornou para as Colinas Verdes fazendo uma pausa no local onde encontrara Miriã e os maggs. Investigou as redondezas à procura de sinais que pudessem ajudá-la, porém, sem sucesso. Se Miriã tivesse fugido por dias, então o acampamento ficava em outro lugar, mais longe.

    Quando a ceifadora chegou ao lar, o mestre estava sentado na sua cadeira de balanço em frente a uma fogueira. Ele soube da condição de sua aluna quando ela veio em sua direção a passos largos e firmes.

    — Você me enviou lá para perder tempo! — ela vomitou com ferocidade. — E eu, a idiota, fiquei esperando que alguém fosse me ouvir.

    O velho retirou a folha de hortelã da boca e a fitou, de forma lenta e calma.

    — O que Oscari disse?

    Anayê cruzou os braços sem ousar responder.

    — Sim, imaginei a resposta — o mestre confessou. — Mas tive esperança. Sempre a mantenho comigo, a esperança de que um dia os poderosos irão escutar.

    — Até lá, enviamos outra otária para perder tempo, não é? E até lá, mais crianças como Miriã e eu, somos vendidas para a escravidão.

    Ela saiu e sua inquietação cessou apenas quando entrou no quarto e encontrou Nally consolando Miriã, que chorava.

    — Sonho ruim — Nally revelou.

    Miriã ergueu os olhos e eles chegaram a se iluminar com a chegada da ceifadora.

    — Ei, tudo bem — Anayê se ajoelhou ao lado das duas. — Nada de mal vai acontecer com você.

    — Eu sei — Miriã respondeu.

    Anayê segurou o rosto da menina entre as mãos e foi tomada de novo pela satisfação.

    — Não estou preocupada comigo — a garota revelou.

    A ceifadora estreitou os olhos.

    — Lá no acampamento dos maggs… — Miriã começou. — Outras crianças não conseguiram escapar. Elas vão ser castigadas e depois… serão a comida deles.

    Anayê engoliu a saliva e seu rosto congelou em uma expressão vazia, embora ela fizesse força para não deixar seu desconforto transparecer.

    — Você precisa ajudá-las — a menina suplicou cheia de lágrimas nos olhos e no rosto.

    Anayê tomou as mãos dela com carinho.

    — Eu vou. Juro. Mas você precisa se acalmar, está bem?

    Miriã consentiu.

    Anayê ficou com as duas até pegarem no sono. Porém, a ceifadora foi incapaz de fechar os olhos, pois todos os seus pensamentos estavam firmes em seus objetivos.

    Salvar as crianças.

    Exterminar os maggs.

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