Capítulo 1 - A Fortaleza e o Invasor
A torre do maquinário era um edifício no leste da fortaleza de Astaroth. Exibia seus cinco metros de altura enquanto ressoava o barulhento e velho som de engrenagens e metal somado ao odor de óleo queimado. Seus blocos feitos de pedras compunham a base e o topo era adornado com desenhos de mármore e madeira. Um grande arco formava a única entrada para a torre onde os escravos, vestindo trapos e fedendo a carvão e poeira, entravam levando consigo uma pedra alaranjada e saíam com potes cheios de uma substância líquida cinza.
Disfarçado como um deles, Boyak acompanhava a fila de escravos que ia entrar na torre e avistou dois maggs vigiando a entrada. Como de costume de sua raça, eles tinham corpos grandes e gordos, pele marrom, orelhas acima dos olhos, bocas enormes contendo duas presas e apenas dois dentes em cima e em baixo. Além disso, eles não possuíam cabelo e poucos pelos pelo corpo.
— Ouviu o que disseram sobre a caravana quatro? — perguntou um dos maggs.
— Não — respondeu o outro distraído com uma mancha em sua camisa.
— Foram atacados por um sujeito com uma mão que reluzia tanto quanto os cristais de Salém. Apenas Genson escapou, aquele maldito sortudo! Quando voltaram ao local, todos os maggs estavam mortos e os escravos haviam fugido. Alguns desconfiam de um ceifador.
— Bah! Isso parece coisa inventada, há décadas um ceifador não chega tão próximo da fortaleza de Astaroth. Pode ter sido um sanguessuga ou um lobisomem.
— Não havia indícios. Além disso, o relato de Genson foi preciso.
— Espera, essa aí não é a caravana a qual o Tures pertencia?
O outro assentiu.
— Droga! Eu adorava aquele cara.
— E quem não? Me lembro que nos meus primeiros dias como patrulheiro, um escravo escapou durante meu turno e eu quase morri de preocupação, imaginava que meu destino seria as minas. Mas Tures, o responsável pelo meu pelotão, me tranquilizou e disse ter enviado um farejador atrás do fugitivo. Um dia depois, descobri que tinham encontrado o escravo e Tures me deu a honra de chicoteá-lo. Nem parecia que eu havia passado por um sufoco daqueles.
— E ele fazia isso com qualquer um. Sempre prestativo.
— Segundo me disseram, o corpo dele foi encontrado desmembrado. Só reconheceram porque ainda estava com a insígnia de capitão na testa.
— Maldição… — lamentou o outro e após um momento de silêncio prosseguiu. — Mas encontraram o responsável?
Boyak estava passando do lado do contador da história.
— Humpf! E desde quando alguém aqui se importa com a morte de um magg? Enviaram um farejador atrás dos escravos e ponto. Tures morreu e ninguém, além de seus amigos, vai lamentar por isso.
— Os bons morrem cedo. Eu adoraria encontrar o sujeito que fez isso e fincar minha lança em seu pescoço — o guarda ergueu sua lança comprida simulando um gesto de ataque.
— Eu faria melhor. Torceria seu pescoço com minhas próprias mãos.
Boyak abriu um sorriso sarcástico ao ouvir aquilo. Tudo o que desejava era ver se o magg tinha coragem e capacidade para realizar tal feito, mas ele tinha outras prioridades e não podia se desviar por causa de um comentário inútil.
Deixando os guardas para trás, ele seguiu para dentro da torre. Ajeitou seu capuz velho e surrado para esconder o rosto. Por baixo do manto, ele visualizou uma grande máquina de metal ocupando metade do salão. Os escravos que chegavam, abasteciam a máquina com a pedra alaranjada e ela, por sua vez, sugava todas as proteínas do solo e transformava em uma substância líquida cinzenta.
O local estava cheio de fumaça exalada pelo equipamento, além do barulho excruciante. Boyak considerou aquele cenário perfeito para seu plano. Enxergou apenas um guarda lá dentro, ocupado estorvando uma bela escrava.
Boyak retirou um frasco de vidro de um dos bolsos da calça contendo um líquido azulado. Abriu o objeto e engoliu seu conteúdo num gole apenas. Ele saboreou o fluido, era gostoso como o cheiro de café pela manhã. Sentiu a energia percorrer seu corpo em um piscar de olhos e ficou mais certo de seu objetivo.
Uma mulher se afastou quando o viu tomando aquele líquido. Ela não queria ser acusada de cúmplice de uma revolta.
— Deixe sua força fluir através de mim — Boyak balbuciou.
Um pequeno facho de luz tão dourado quanto os raios de sol no crepúsculo começou a envolver sua mão. Ele se posicionou mirando um soco na direção da máquina.
Atraído pelo facho de luz, o magg distraído voltou sua atenção para o escravo. Primeiro, espantou-se por enxergar aquela luz naquele local. Depois, ficou estático por um momento sem saber exatamente o que deveria fazer. Em seus longos anos de vigia, nada como aquilo havia acontecido na torre. Que tipo de bruxaria era aquela?
Os escravos também se distraiam de suas tarefas admirados e assustados com o aumento da intensidade do brilho. Alguns começaram a murmurar e outros a se afastar. O guarda firmou a lança em sua mão e se aproximou gritando:
— Ei! O que pensa que está fazendo?!
Boyak se virou para os escravos e exclamou:
— Por que raios ainda estão parados aqui? Deem o fora!
A sua palavra pareceu ecoar em todos os ouvidos como uma ordem de urgência e acabou por iniciar o pandemônio. O magg tentou bradar outra ordem, mas a dispersão já estava iniciada e não havia ninguém capaz de parar tantos escravos correndo. Restava para ele, uma única alternativa: exterminar a raiz do problema.
Lá fora, os dois maggs que ainda conversavam sobre Tures foram pegos de surpresa quando um bando de escravos saiu correndo porta afora como uma manada de zebras descontroladas.
Os outros escravos na fila para entrada, tão confusos quanto os guardas, porém, mais acostumados com desgraças do que eles, não esperaram e acompanharam seus companheiros na corrida. Quando os maggs conseguiram olhar para trás, viram a torre preenchida por luz.
O guarda dentro da torre ergueu o braço para proteger seus olhos enquanto se aproximava de Boyak. No entanto, o fulgor da luz era tamanho que mesmo seu braço era incapaz de protegê-lo do brilho. Ao mesmo tempo, ele sentiu sua lança ficando pesada e lutou para segurá-la.
Mais um passo.
A lança começou a ser arrastada. O magg fechou os olhos e concentrou toda a sua força no braço para firmar a arma.
Mais um passo.
O guarda suava. Suas pernas pesavam e estava ficando difícil de respirar. Ele ousou dar mais um passo com muita dificuldade. Enfim, sua mão se rendeu e a lança caiu no chão. Apalpou seus olhos sentindo suas órbitas consumidas por aquela luz. Estafados, os joelhos dele cederam.
Boyak viu-o se dobrando até o chão e sorriu.
— Seu tolo! — Boyak gritou para ele. — Agora você vai conhecer o poder do Deus Sem Face!
E então o magg ouviu o nome. Seu corpo inteiro foi arrebatado na exclamação daquela técnica. Era como se o nome ecoasse por todos os seus sentidos nervosos numa explosão de fogo e medo. Seus dentes rangiam machucando a boca, seu coração galopava em furor. O PUNHO DE DEUS. Com certeza, o magg lembraria do nome do golpe por toda a sua vida.
Os guardas do lado de fora tiveram mais sorte. Tudo o que viram foi um de seus semelhantes ser expelido para fora antes da torre começar a desabar. Eles saíram correndo quando a explosão cuspiu pedras, líquido cinza e destroços para todos os lados, ferindo alguns.
O caos causado pela explosão da torre alcançou a fortaleza inteira e iniciou o maior pandemônio do lugar em décadas. Escravos fugiam por todos os lados e os soldados, sem entender exatamente o que tinha acontecido, levavam um tempo para reagir.
Na torre principal, no centro da fortaleza, ficava a sala do trono. Seis grandes colunas sustentavam o teto e um tapete marrom ocupava desde a entrada até a escadaria que levava ao trono. Várias tochas com fogo vermelho tinham o trabalho de iluminar o local junto com os grandes vitrais que retinham a luz acinzentada do dia.
Três generais estavam ajoelhados diante da escadaria que levava ao trono. Cabisbaixos, trajando armaduras reluzentes e chamativas, eles esperavam a oportunidade de explicar o que havia acontecido. Nenhum deles ousava olhar para aquele assentado no trono.
— Uz — uma voz suave e bondosa vinda do trono chamou. — Explique o que aconteceu na torre leste.
— Meu lorde, houve um… ataque — Uz explicou sem sequer levantar a cabeça raspada, ele se sentiu extremamente desconfortável dentro de sua armadura cinza como se ela estivesse muito apertada. — A torre leste foi destruída junto com a máquina de esmagar a rocha do verme.
— Como isso aconteceu?
Uz passou a mão pela cabeça careca. Percebeu que suava.
— Ainda não sabemos, mas a situação se alastrou mais rápido do que pudemos imaginar. Nossos soldados estão controlando os escravos.
— Olhe para mim.
Uz ergueu os olhos com hesitação. Acima dele, ossos de inúmeras raças e de tamanhos diversos formavam o trono, e dois chifres de dragão ocupavam os cantos superiores. Ali, sentado, havia uma criatura de compleição forte, imponente, de pele albina, cabelos longos e loiros, trajando túnicas púrpuras e escuras. Em seu rosto magro destacava-se o nariz comprido, os lábios pequenos e os olhos como rubis azulados.
Uz sempre contemplava Astaroth com admiração e adoração. Em seu íntimo, ponderava não haver um ser tão belo e especial quanto seu lorde em toda a Gluran. Era uma honra poder apenas vislumbrá-lo e fazer parte de seu reinado.
O lorde voltou a falar com tamanha calma e frieza que Uz foi tomado por uma sensação de tranquilidade.
— Eu quero que você descubra quem é o responsável pela confusão na minha fortaleza — ele disse.
— Sim, farei isso.
Entretanto, naquele momento, um dos vitrais se estilhaçou quando um sujeito avançou janela adentro. Ele pousou ajoelhado com o corpo reluzindo com faíscas e a capa vermelha balançando ao vento.
— Não precisa mais procurar, Astaroth! — o sujeito bradou. — Já está aqui o causador de confusão!
Os três generais já estavam em pé fitando o estranho invasor. Auras cinzentas pairavam por todo o corpo deles como se fossem fumaças.
— Quem é você que ousa invadir a sala do trono?! — berrou Uz com fervor religioso.
— Ah tá! Não me apresentei ainda — o invasor disse arrumando uma faixa vermelha em sua testa e a cabeleira branca que media até o ombro. — Sou Boyak — E levantou o polegar para si — Um ceifador de aberração.
Uz e outro dos generais riu, mas o terceiro ficou em silêncio. De seu trono, Astaroth não esboçava nenhuma reação.
— Não me faça rir. Um ceifador? Na fortaleza de Astaroth? Eles não teriam essa audácia — Uz zombou.
— Eu não sabia que a temporada de visitas estava proibida — ironizou Boyak. — Além disso, quem mais poderia ter colocado sua torre no chão?
Uz não respondeu, fitou o sujeito com desprezo. Por debaixo da capa, ele usava uma camisa preta, calça, botas, bracelete de pano na mão direita e faixas brancas nos braços.
— Bom, o lugar é aconchegante, mas a recepção é péssima — resmungou Boyak. — E você, Astaroth? Os bardos realmente exageram nas suas canções. Belo e temível? Bah! Está mais para sonolento e tedioso.
— Basta! — Uz gritou. — Eu vou fazer você engolir essa blasfêmia agora mesmo!
O general sacou um frasco com líquido cinzento e bebeu rapidamente. Boyak cuspiu em forma de provocação. Uz sentiu a fúria efervescendo suas veias, difícil definir se era pelo efeito do fluido ou se por causa das afrontas do invasor.
Uz se preparou para avançar, porém, um raio passou por ele repentinamente. O general levou alguns instantes para perceber o que realmente havia acontecido. Astaroth disparara um raio cinzento parecido com uma seta contra o ceifador. No entanto, Uz ficou ainda mais surpreso ao ver o intruso bloquear o raio com as mãos.
Mas o raio não se desfez diante da defesa e começou a empurrar Boyak para trás, demonstrando que sua força estava falhando. Uz observava tudo estático e impressionado com a força do estranho invasor.
— Droga… — Boyak rangeu os dentes.
O raio finalmente venceu a queda de braço e atingiu o invasor. Boyak foi arremessado contra a parede que cedeu diante do choque e desabou, enviando-o céu afora. Para quem estava do lado de fora da torre, o ceifador se pareceu com uma estrela cadente cruzando os céus a uma velocidade impressionante.
Dentro da torre, todas as tochas se apagaram e as seis colunas trincaram levemente. Os generais olharam para trás, mas seu lorde permanecia sentado.
— Que sujeito irritante — resmungou Astaroth.
Uz estremeceu. O ataque foi tão rápido que eu não consegui sequer acompanhar. Eu não senti sua aura e nem seu movimento, pensou. Se fosse eu no lugar daquele estranho, teria sido atingido de primeira. Como aquele blasfemador conseguiu ver e se defender tão depressa?
— Acabem com essa confusão e tragam meus escravos de volta — declarou Astaroth. — E peçam para alguém arrumar o buraco que ficou na parede.
Os três generais se ajoelharam. Dessa vez, com grande respeito e temor.
Uz suava mais do que nunca e sua armadura parecia menor.
Os três juraram que cumpririam as ordens de seu lorde.
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