Capítulo 10 - O General e o Irmão
Os raios daquela chuva violenta deixavam a Anayê de apenas dez anos muito assustada. Não porque ela tivesse medo da chuva, mas porque na fortaleza as chuvas eram extremamente violentas e barulhentas.
Os gigantes e vastos relâmpagos davam a impressão de que iriam partir o céu ao meio e a chuva com gotas marrons como lama deixavam seu corpo mais melado e pegajoso do que molhado.
A única coisa que fazia Anayê ficar mais tranquila era fitar o rosto de seu irmão, Zafael. O garoto era quatro anos mais velho, mas isso não fazia muita diferença. Quando colocados lado a lado, quase pareciam gêmeos por tantas semelhanças. Cabelos cacheados, rostos brancos, olhos púrpuras, estaturas medianas.
Talvez o único fato que os diferenciasse estivesse na personalidade.
Zafael não se dava ao luxo com questionamentos ou imaginações.
Quando Anayê contava-lhe sobre sua vontade de escapar, ele repreendia: “Não nutra sonhos que não podem se realizar, irmã”.
Quando lembrava de casa, ele pedia para esquecer: “Nossa casa é aqui agora”.
Quando ria, ele ficava sério: “Não fique mostrando felicidade ou vão achar que está zombando deles”.
Zafael não falava além do necessário e nunca reclamava. Na vida de escravo, sua única intenção era obedecer.
“Obedeça e não teremos problemas”, vivia falando para Anayê. E sua postura indissolúvel provocava um sentimento de responsabilidade na garota.
No fundo, Anayê o admirava por ser tão forte e determinado, sem um pingo de dúvida e nenhuma mancha de falha. Ela se achava indigna de ter um irmão como aquele. Zafael era o tipo de irmão que se responsabilizava pelo erro da irmã e levava o castigo sozinho.
Por isso, em dias chuvosos como aquele, ela o fitava maravilhada com a calma que seus olhos transmitiam.
Mas então seus olhos se voltaram para ela e trocaram a tranquilidade por pena. Quando Zafael mudava assim, Anayê se sentia como comida regurgitada.
Imprestável, inútil, indigna.
O poder dos olhos de seu irmão era terrivelmente penitente. Lembrava-lhe de certa noite quando haviam acabado de chegar na fortaleza e Anayê chorava sentindo falta dos pais e de sua casa, do cheiro dos morangos plantados no quintal e da chuva pacífica que caía ao fim da tarde. Desejava ardentemente sentir qualquer um desses odores ou sensações novamente.
— Irmã, não desperdice lágrimas com lembranças — Zafael falava em seu ouvido enquanto ela tentava conter as lágrimas. — Elas não vão trazer nossos pais de volta. Você precisa ser mais forte do que isso.
E então um magg entrara no dormitório acordando todos os escravos e procurando o responsável pelo choro. Com aquele corpo rechonchudo e sua bocarra grande, como de costume de sua espécie, ele intimidava qualquer um. Anayê nunca tinha visto um magg antes, mas isso havia mudado naquele dia.
— Quem é o maldito que está chorando?!
Sem hesitar, Zafael tomou a culpa para si e foi levado para ser chicoteado e passar três dias na solitária. Antes de deixar o dormitório, ele lançou um olhar para Anayê, o da pena. Era como dizer que ela era muito fraca e, se continuasse assim, não sobreviveria muito tempo.
Sempre quando acontecia algo errado ou inesperado, o olhar retornava. E era incrível como tinha poder sobre ela.
Naquela noite chuvosa, os olhos de Zafael, cheios de pena e certo desprezo, julgaram-na como nunca fazendo seu coração estremecer.
— Preciso te dizer uma coisa — os cachos caíam sobre o rosto pálido dele e sua voz estava baixa. — O capitão dos maggs notou meu empenho e obediência, e fui selecionado para me tornar um soldado de Astaroth.
— O que isso significa? Você vai me deixar?
— Isso significa o que eu sempre te falei sobre obedecer, sobre sair do mundo dos sonhos e enfrentar a realidade.
— Você vai me deixar, não é mesmo?
Ele assentiu.
— Vou precisar passar por um árduo treinamento e me tornar digno de ser um soldado de Astaroth. Só assim vamos sair dessa vida de escravos. Como soldado, vou ter um salário e algumas regalias, e em breve, posso tirar você daqui.
— Você não pode me deixar sozinha aqui.
— Esse é o único jeito, Anayê. Quer continuar apanhando, dormindo no chão e comendo porcaria pelo resto da sua vida?
Era a primeira vez que via aquela chama de indignação no rosto dele.
— Vou me tornar um general. Isso vai mudar tudo — ele garantiu. — Volto para te ver quando puder.
Zafael se virou para dormir. Aquilo significava o fim da discussão.
Anayê não sabia como ia se virar sozinha, mas após ver a indignação no irmão, apenas aceitara a decisão. Levou algum tempo acordada imaginando coisas ruins que poderiam acontecer agora que não tinha a proteção de Zafael e acabou adormecendo muito depois. Quando abriu os olhos, o irmão já havia saído.
O primeiro dia sem Zafael foi horrível. Anayê se sentia observada por todo mundo como um animal indefeso. Ela comeu sozinha e procurou não conversar com ninguém. Trabalhou sem questionar, fazendo de tudo para não ser notada. E, à noite, ela chorou baixinho, afinal, não tinha mais Zafael para salvá-la se o magg escutasse. Depois de adormecer, qualquer barulho era motivo para que despertasse assustada.
Durante a noite, acordava imaginando que o irmão ainda estava lá e que a notícia era uma mentira. Entretanto, a realidade acertava sua mente e seu coração logo em seguida.
O segundo dia foi igualmente terrível. Os escravos pareciam falar dela o tempo todo, os olhos notando sua carne. Até mesmo os maggs percebiam a ausência de Zafael.
Durante a noite, choro baixinho e acordar com qualquer barulho.
No fim da primeira semana, Anayê implorava pelo retorno do irmão. Mesmo que fosse para olhá-la com pena e desprezo, mesmo que fosse para dizer que ela era uma fraca, mesmo que fosse para ficar apenas calado ao seu lado ou repreendê-la por fazer uma coisa errada. Só precisava da presença dele. Naquela noite, Anayê conseguiu conter o choro e dormiu mais tranquilamente.
Durante a segunda semana, roubaram sua refeição duas vezes, levando-a à beira do desmaio, mas ela resistiu firme porque não tinha mais Zafael para salvá-la.
Não havia justiça entre os escravos, era a lei do mais esperto e mais forte.
Na terceira semana, tentaram roubar sua refeição de novo, mas não conseguiram porque ela estava mais atenta. Feriu um dos ladrões deixando a marca de seu soco no rosto dele. Sim, ela tinha mais força do que pensava e se surpreendeu com sua habilidade de se defender.
Infelizmente, dois deles voltaram de madrugada e a encheram de pancada.
Outros ouviram seu grito, mas não fizeram nada.
Durante o segundo mês sozinha, Anayê pensou no irmão todos os dias. Entretanto, seus pensamentos estavam cheios de inconformismo e raiva. De vez em quando, inconformismo por ter sido abandonada, e outras vezes raiva de si mesma por ser tão dependente.
Dois anos depois, Anayê havia adquirido mais entendimento sobre o que era feito dos escravos dentro da fortaleza e isso criou um sentimento de aversão aos servos de Astaroth.
Ela nunca mais tinha visto o irmão, mas em seu íntimo, torcia para que ele tivesse morrido. Era mais fácil vê-lo morto do que servindo ao lorde sombrio.
De vez em quando, se lembrava do semblante tranquilo e determinado de Zafael, e tentava replicar esse sentimento dentro de si, mas em favor de sua fuga. Anayê não queria servir aos ditadores para sempre e não achava que fugir era um sonho impossível. Estava determinada a encontrar outro caminho, diferente de seu irmão.
Quase três anos depois, Anayê e os escravos tiveram que participar do ritual mensal de adoração a Astaroth. Nesse dia, ninguém na fortaleza trabalhava e todos se reuniam para um culto que consistia em repetir as frases do mensageiro nos palanques espalhados pelo local.
Dos próprios palanques, os mensageiros escolhiam um escravo que era beneficiado com um dia de comida, roupas novas e banho.
Foi nesse dia, enquanto recitavam as frases de adoração a Astaroth que Anayê achou ter visto seu irmão em cima de um dos palanques. Mas, trajado com túnicas elegantes, cheio de pulseiras e colares, foi difícil ter certeza.
Quando o momento chocante passou, ela se consolou na crença de que havia confundido aquele general com Zafael. Não conseguia conceber a ideia de seu irmão ser apoiador daquele reino maldito, e muito menos, que ele a havia esquecido.
Porém, a cada dia ficava impossível não fazer ligações, pois escutava dos escravos e maggs que um jovem general de poder incrível se juntara às forças de Astaroth, rivalizando com os outros generais mais velhos.
Os maggs acreditavam que essa era a grande adição para o anúncio da guerra contra Belzebull.
Alguns escravos haviam encontrado esse novo general e ressaltavam seu olhar profundo, soturno e atemorizador. Sua presença imponente e serena transparecia por onde passava.
No entanto, Anayê sufocou até mesmo os relatos. Preferia continuar com a sua verdade.
E foi assim, pois ela jamais cruzou o caminho desse jovem general, ao menos até aquele momento no círculo de oração com os gors, a mulher, o menino e Boyak.
E, para piorar, seus medos eram realmente realidade, seu irmão tinha se tornado um assecla de Astaroth.
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