Após o aperto de mãos, Grekz, o líder dos gors, apresentou formalmente seu grupo. A mulher se chamava Ziray, o menino Airen, e seus três companheiros, Marv, Terelk e Rodd. Além deles, havia Yorlg, o gor atropelado que havia sobrevivido, mesmo estando muito ferido. Boyak deu-lhe uma gota do fluido para ajudar na recuperação.

    Anayê e Ziray se entreolharam desconfiadas. A mulher ainda não conseguia dosar a ameaça à vida do seu filho e a salvação vinda dos próprios rivais, mas Grekz era um bom líder e ela respeitava isso.

    Do outro lado, a mesma coisa acontecia de uma forma menos agressiva. Anayê não confiava plenamente nos gors, porém, agora compreendia suas motivações e isso mudara um pouco a percepção. Mesmo assim, seguindo seus instintos, ela sempre mantinha um pé atrás quando o assunto era confiança.

    — O que vocês pretendem fazer agora? Não podem ir pelo mesmo caminho do general, isso seria perigoso — disse Grekz.

    — Eu não temo o general, mas seria bom não encontrá-lo por enquanto — o ceifador declarou e deu uma leve espiada em Anayê.

    Está com muito pouco daquele fluido de oração, por isso não deseja encontrar meu irmão. Porém, ela também havia captado uma nuance dessa frase no olhar dele. Também não quer encontrá-lo… por minha causa. Novamente ela se sentiu abraçada pelo sentimento de cuidado. 

    Ele realmente se preocupava com seu bem-estar nesse nível? Não seja boba. Você interpretou tudo errado. É óbvio que ele não quis dizer isso. Mas agora era tarde, o ceifador já tinha se voltado ao gor e ela nunca teria a coragem de perguntar aquilo.

    — De qualquer jeito, terei que continuar, vai ser mais fácil despistá-los enquanto está escuro — o ceifador falou.

    — Posso te mostrar uma rota alternativa? É um caminho que usamos para fugir dos maggs e generais. Seria uma grande honra poder ajudá-lo.

    — Você sabe como bajular, hein — Boyak ironizou. — E eu adoro ser bajulado. Há! Há! Vamos lá.

    — Terelk, leve os outros para casa. Voltarei assim que mostrar a trilha da montanha para eles.

    Terelk assentiu.

    — Quando Yorlg acordar, peçam desculpas a ele por mim — o ceifador falou. — Se cuidem, pessoal.

    Anayê e Ziray lançaram olhares mais uma vez. Era uma mistura de desconfiança com desculpas. Muito embora, caso o acontecimento se repetisse, ambas tomariam as mesmas decisões.

    Boyak, Anayê e Grekz subiram na carroça e o gor mostrou o caminho.


    Não havia estrada por onde Grezk os guiava. O terreno era pedregoso e irregular, e até mesmo as árvores se tornaram escassas. Devido a isso, a velocidade da carroça foi reduzida para evitar quebrar uma das rodas.

    — Meu pai disse que antigamente um rio passava aqui — o gor contou. — Mas Astaroth e Belzebu acabaram com ele sugando todo o recurso para fazerem seus experimentos em busca de poder.

    — É a mesma história em todo lugar por onde eles passam. Houve algo parecido com as cidades de Frinh e Teurã — contou Boyak.

    — Uma boa parte dos meus ancestrais perdeu a vida nesse local.

    — Sinto muito.

    Boyak estava impressionado com a capacidade do gor de enxergar na penumbra, sempre desviando de pedras grandes ou buracos.

    O sono vencia Anayê aos poucos. Para ela, não existia nada além do bréu e do balançar da carroça. Além disso, dormir sempre fora uma válvula de escape dos seus pensamentos e, naquele dia, tudo o que ela mais desejava era esquecer de Zafael.

    — Você enxerga bem no escuro —  Boyak elogiou.

    — Você também, eu sei. Nós, gors, nascemos e crescemos nos recantos mais profundos, por isso, adquirimos a habilidade natural de enxergar bem no escuro. Mas somos presas fáceis do frio.

    — Faz sentido.

    — E você? Como enxerga no escuro? Nunca vi um humano conseguir. Ouvi você dizer mais cedo que é um ceifador, isso é verdade?

    Ele assentiu e respondeu:

    — Nós, ceifadores, combatemos todo o tipo de aberração, então precisamos estar à altura desses desafios. Digamos que treinei por bastante tempo com um fluido especial dentro do corpo.

    — Ah… achei que vocês tivessem um dom natural. 

    — Nossa habilidade é emprestada. Os fluidos canalizam uma parte do poder do Deus sem face, assim, quando bebemos somos capazes de usá-lo. É dessa maneira que esmagamos as aberrações.

    Grekz se sentiu incomodado com a última frase, afinal, ele estava incluído na categoria aberração dos ceifadores.

    — Às vezes, também usamos para assustar alguns humanos imbecis, mas deixa isso em segredo. He! He! — coçou a cabeleira branca.

    — Então você injeta esses experimentos como os generais de Astaroth?

    Boyak parou de sorrir imediatamente.

    — Não somos iguais — a afirmação soou com tom de ameaça. — Astaroth corrompe a natureza para conseguir seu poder, manipula as motivações das pessoas para usar seu poder. Ele é o oposto de nós.

    — Me desculpe se ofendi — Grezk falou percebendo a mudança no semblante do ceifador. — Mas tente ver a situação pelos meus olhos… apenas por um momento.

    Boyak ficou calado por um instante. Em seus olhos por um instante? Um exercício inesperado. Se colocar na mente de uma aberração era o tipo de coisa que não sonharia nunca. Essas criaturas apenas destroem, não tem sentimentos. 

    Porém, por causa do pedido, ele resolveu pensar um pouco na situação deles.

    — O processo pode parecer o mesmo, mas o resultado é diferente — disse, finalmente.

    — Não vejo muita diferença. Vocês são escravos de suas causas e esmagam quem fica no meio delas.

    O ceifador ficou surpreso pela sinceridade e pelas palavras. 

    — Não é assim com todos.

    De repente, sentiu uma cabeça encostando em seu ombro. Era Anayê. O sono a vencera. E aquela foi a resposta perfeita.

    — Diga isso para ela — Boyak apontou.

    Grekz olhou sem entender direito.

    — Anayê é uma fugitiva da fortaleza de Astaroth. Foi capturada com oito anos e forçada a trabalhar naquele inferno. Logo depois, abandonada pelo irmão que resolveu se juntar ao inimigo e ajudar esse reino de escravidão. Nesse meio tempo, ela teve que se virar sozinha. Sobrevivendo um dia de cada vez. Ontem, quando ataquei a torre do maquinário, ela teve a sua primeira chance em dez anos.

    O gor fitava a garota com admiração. Sequer imaginava que ela passara por tudo aquilo para chegar ali.

    — Na primeira vez que me viu, ela me julgou como servo de Astaroth. A primeira vez que ofereci alimento, julgou ser veneno. Até o fim do dia, Anayê nem confiava em mim completamente. Mas consegui oferecer para ela, uma coisa simples na visão da maioria dos seres desses continentes, liberdade.

    Grekz permanecia encantado com a história, os olhos escuros presos entre a estrada e o rosto adormecido de Anayê.

    — Atacar a torre foi uma atitude rejeitada por todos os meus conhecidos. E, realmente, não consegui meu principal objetivo que era derrotar Astaroth. Porém, se eu puder ter dado a outros uma chance pequena de escapar, estarei satisfeito. 

    O gor assentiu levemente.

    — Essa noite me fez entender um pouco mais dos efeitos colaterais das nossas atitudes, mas não venha me dizer que somos iguais ou parecidos com Astaroth, nem com qualquer aberração fomentadora desse regime de sofrimento — sua voz foi firme outra vez, no entanto, o tom era de determinação.

    — Você está certo, Boyak — fez uma pausa. — Creio que nenhum de nós dois vai sair da mesma forma depois desse encontro.

    — Nisso você acertou.

    Nota