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    Anayê estava sonhando com seu vilarejo. 

    Era incrível como nos sonhos o local se tornava tão vívido. As casas simples de madeira pintadas de amarelo, verde ou castanho, cores consideradas abençoadas por seu povo.

    Todo ano, durante a festa do solstício de verão, eles pintavam o rosto com essas cores.

    — Celebramos a vida com essas cores — seu pai explicara várias vezes — Morte, vida, sonhos, desilusões, transcendência, bem, mal. Embora desconexos, são esses fatores que fazem a vida como ela é. Nessa existência, apreciamos a vida porque existe morte, valorizamos os sonhos porque existem desilusões.

    Em seu sonho, tinha oito anos e participava de sua última festa antes do ataque dos maggs. 

    Enfeites feitos de bambu adornavam as portas e colares de ostra eram deixados nas janelas.

    Todos no vilarejo usavam muitas jóias, pulseiras e pinturas, e as mulheres trajavam vestidos longos e coloridos.

    Naquele ano, Anayê fizera questão de pintar o rosto sozinha e, por questões óbvias, deu tudo errado. Sua pintura acabou borrada. 

    No fim, ela recebeu o socorro de sua mãe.

    — Você deveria ter me esperado, Anayê. Nós chegaremos atrasadas na cerimônia.

    — Desculpa, mãe.

    Ver os cabelos volumosos, os olhos pequenos e profundos, e o rosto moreno de sua mãe brilhando diante de seus olhos era infinitamente significativo. Há dez anos não a vejo assim. 

    De alguma forma, dentro do sonho, tinha consciência de que sua mãe estava morta. Na verdade, quando se deu conta disso, lembrou da tragédia prevista para o fim daquela semana. Eles vão matá-la. 

    Os maggs atacariam durante a madrugada porque o povo estava embriagado e cansado demais para revidar. Arrancariam a cabeça de todos os homens mais velhos do vilarejo, inclusive de seu pai, e fariam coisas terríveis com as mulheres antes de matá-las.

    E um destino sinistro aguardava os jovens, a escravidão.

    Todo o vilarejo saqueado e queimado pelos maggs. Os sobreviventes destinados a um destino tão amargo quanto a morte. Preciso avisá-la antes que seja tarde. 

    Anayê tentou agarrar sua mãe, mas de repente, estava segurando um punhado de cinzas. O quê? Mãe? Mãe, cadê você? 

    Ao erguer os olhos, vislumbrou as casas sendo incendiadas. Risos sarcásticos, gritos desesperados. As cores desvanecendo em vermelho alaranjado e preto. Não, não pode ser

    Voltou ao punhado de cinzas. Eu… não consegui… não consegui avisá-la a tempo. Eu não consegui! Soltou um grito de profunda angústia e segurou as cinzas de sua mãe como se ainda restasse alguma vida ali. Me perdoa, eu não consegui!

    — Mãe!

    Ela despertou com o chacoalhar da carroça e quase caiu para fora, mas Boyak segurou seu braço. Levou alguns segundos para processar tudo o que estava acontecendo. 

    Limpou a testa molhada de suor e fitou Boyak e Grekz ao seu lado. Os rostos de ambos variando entre a dúvida e a preocupação.

    O cenário ainda era a devastação, mas o dia prestes a raiar espalhava pequenos fachos de luz pelo terreno.

    Suspirou angustiada. Foi tão real. Ela estava a meu alcance.

    — Pesadelo? — Boyak perguntou.

    Ela assentiu colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. Ainda podia sentir o peso do punhado de cinzas em suas mãos. Suas entranhas queimavam de dor. A dor da perda e do fracasso.

    — Você chamava por sua mãe — Grekz apontou.

    Anayê não soube como responder. Na verdade, não desejava comentar sobre o sonho, não tinha intenção de dividir suas emoções com eles, não agora.

    Entretanto, ter tal companhia era novidade e ela sentia uma espécie de dívida para com Boyak. 

    Mesmo assim, só o fato de pensar em sua mãe fazia todo seu corpo estremecer. Sua mãe virou um punhado de cinzas, menina fraca, disse a voz inconsciente de seu irmão em sua mente. 

    — E pelos céus! Você ronca mais alto do que o maquinário de Astaroth — Boyak ironizou.

    Novamente seu comentário a surpreendeu. Era como se virasse uma chave em sua cabeça e conseguisse sair daquela zona amargurada para uma visão mais clara a respeito do mundo e das pessoas.

    Ele piscou para ela e outra vez notou a sutileza do comentário do ceifador. Percebeu que eu não queria falar sobre isso e mudou de assunto. 

    — Oh, ela ronca mais do que qualquer gor, e somos conhecidos por roncar — Grekz entrou na brincadeira. — Na verdade, não roncar pode trazer má sorte. Assim nós acreditamos.

    — Viu só? — Boyak deu uma cotovelada leve no braço dela. — Você já é bem vista pelos gors. Nunca pensou que um ronco proporcionaria isso, hein!

    Ela abriu um sorriso tímido.

    — Você devia estar honrado, Boyak — Grekz falou. — Ter alguém roncando em seu ombro é uma grande honra.

    Anayê enrubesceu e baixou a cabeça. Dormi no ombro dele? Meu Deus!

    — Uma honra com gosto de saliva — seu tom jocoso não ofendeu.

    — Me desculpe — ela disse.

    — Sem essa! Você estava merecendo um descanso e sabemos como meu ombro musculoso se parece com um travesseiro — o ceifador flexionou os braços em exibição.

    — É sério que você falou isso? — Grekz perguntou fazendo cara de nojo.

    — Ora, não fique com inveja, posso te passar a receita do fortalecimento dos músculos.

    O gor deu de ombros, mas depois de alguns instantes disse:

    — Está bem, você venceu — pausou dramaticamente. — Qual é a receita?

    O rosto transpirava curiosidade e sua careta quase fez Anayê começar a rir.

    — Anote — Boyak esticou o braço e virou a manga da camisa. — Sempre use roupas com a marca do senhor Touji!

    Na barra da camisa havia um kanji marcando a autoria da roupa. Grekzi quase perdeu o controle da carroça com aquela declaração aleatória enquanto Anayê franzia a testa para ler o nome.

    — São feitas com material colhido ao pé do Sinai e tem um efeito maravilhoso no corpo.

    — Está me dizendo que o segredo para ter braços malhados é comprar uma roupa? — o gor perguntou boquiaberto.

    — Comprar e usar uma roupa — disse o ceifador como se aquele fato fosse a coisa mais importante do mundo.

    Grekz agarrou um pedaço da camisa para sentir o tecido.

    — É de boa qualidade mesmo. 

    Anayê procurava compreender como a conversa havia tomado aquele rumo.

    De repente, Grekz ficou um pouco acanhado e suas orelhas baixaram. 

    — Vou revelar um fato sobre mim — engoliu a saliva. — Eu… adoro costurar.

    Boyak e Anayê ficaram sem reação com a revelação.

    — Tecidos e agulhas são tão bons! — sua voz tomou um tom animado. — Já viu a textura e complexidade de um tapete ornamentado? É tão lindo!

    — Isso é uma coisa que nunca imaginei ver — o ceifador cochichou para sua colega.

    — Hoje estamos vendo muitas situações estranhas…

    No mesmo momento, o semblante do gor assumiu o aspecto sério e astuto de sempre.

    — Se contarem isso para alguém…

    — Tudo bem, seu segredo está seguro com a gente — Boyak garantiu.

    Grekz balançou a cabeça.

    — Mas isso foi bem esquisito — o ceifador acrescentou.

    O gor não respondeu, porém, esfregou o tecido entre os dedos uma última vez rapidamente.

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