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    O lamentador não prestava atenção em nada, sequer percebia a sombra do corpo de Anayê se agigantando enquanto se aproximava.

    O tecido da blusa dela tocou a ponta dos dedos do ceifador. Não, não vai dar, Boyak pensou.

    Seria impossível até mesmo para ele naquelas condições conseguir agarrá-la. Eu ia precisar torcer a gravidade. E, até onde sabia, apenas com um estoque de fluido de oração muito grande no corpo isso foi possível, e só um ceifador fizera tal feito uma única vez. 

    Então me resta uma opção. Desculpe, Anayê.

    Boyak concentrou todo o fluido de oração em seu corpo nos dedos rapidamente. Em seguida, deu um peteleco no braço dela.

    Foi como se o corpo de Anayê recebesse um empurrão. Girou por cima do lamentador no último momento, praticamente raspando nos fios de cabelo dele, caiu do outro lado e rolou mais duas vezes no chão.

    Para Grekz, tudo não passou de um piscar de olhos. 

    Em um instante, ele viu Anayê caindo no lamentador e, dentro de si, aquilo era fato. No instante seguinte, a moça estava caída atrás do homem como se houvesse se teletransportado.

    O gor coçou os olhos enquanto parava a carroça.

    Boyak deu uma cambalhota ao alcançar o chão e correu na direção de Anayê. Essa foi por muito pouco, ele pensou analisando o homem em seu contínuo lamento. Mas também sentiu que o estoque de fluido de oração dentro de si havia acabado.

    A situação de Anayê não tinha melhorado. Ela se debatia de um lado para o outro gemendo.

    — Argh!

    O ceifador segurou seu ombro para que parasse de se mexer.

    — Fica calma! Calma! 

    Embora tivesse parado, a mão dela se mantinha presa à testa.

    — O que está acontecendo?

    — Tá queimando! Minha testa tá queimando!

    Grekz deixou a carroça com os olhos fixos nos dois sem perceber que, pela primeira vez desde que chegara, era observado.

    — Me deixa ver — Boyak pediu.

    Ela retirou a mão e o ceifador notou a runa de Astaroth reluzir em vermelho como se tivesse sido marcada há pouco.

    Lágrimas brotavam e Anayê rangia os dentes. A dor parecia estar invadindo pelos poros dos cabelos e se entranhando em cada nervo de seu cérebro.

    — Isso tá… doendo.

    — Boyak, o que está… — Grekz paralisou no meio da frase, pois, finalmente olhara para os lados.

    Os gemidos cessavam, os gritos terminavam, os lamentos pausavam. Essa não, o gor pensou, esse é o pior momento para isso acontecer!

    Na verdade, em seu mente, ele nunca imaginou que aquilo ia acontecer. Sempre passava por ali e jamais tivera problemas. Basta deixar as pessoas lamentarem em paz, era o que todos os gors repetiam.

    Será que é por causa dele? Visualizou o ceifador abaixado e amparando Anayê. Com certeza, ele poderia provocar esse tipo de reação.

    — Boyak… — chamou. — Nós precisamos ir.

    O ceifador olhou para os lados e ficou estático. 

    Todas as pessoas estavam voltadas na direção de Anayê. Imóveis como religiosos diante de um ídolo e silenciosas como tigres caçando uma presa.

    — Parece que todo mundo quer te dar as boas vindas — ironizou.

    Ela resistiu a dor por um momento apenas para ver os espectadores fitando paralisados. O que há com essa gente?

    — Vamos voltar para a carroça bem devagar — Grekz falou procurando manter o tom de voz calmo.

    Anayê levou a mão à testa novamente, sentindo todo o corpo lutando contra a dor.

    — Consegue se mover?

    Ela negou com a cabeça.

    — Isso tá doendo, tá doendo demais.

    O gor recuou um passo de cada vez. Se todos começarem a atacar, não teremos a menor chance. Espero que o ceifador tenha realmente algum truque. Os olhos observando e atentos a qualquer movimento.

    — Acho que a marca na sua testa reagiu a maldição deste lugar — Boyak comentou.

    — Só me faltava isso agora… — ela rangeu os dentes.

    — E também mexeu com os habitantes da cidade. — Movimentou um braço lentamente pelas costas dela e o outro entre as pernas. — Vou carregar você até a carroça bem devagar, vamos tentar manter nossos amigos paralisados.

    Ela assentiu, mordendo os lábios.

    — Tenho um pedido idiota, tente segurar os gritos o quanto puder.

    — Tem razão. Esse é o pedido… Cof! Cof! Mais estúpido que você já fez mesmo. — Colocou os braços em volta do pescoço dele.

    Grekz subiu na carroça e tomou as rédeas. Um fio de suor desceu por suas costas.

    Os olhos dos presentes acompanharam Boyak erguer Anayê, sequer piscavam.

    O ceifador sentiu a temperatura quente do corpo de sua colega. Isso não é bom, tenho que tirá-la daqui depressa.

    Vislumbrou os espectadores. Seus rostos não expressavam nada, era a sensação estranha de olhar para um morto. Por favor, fiquem onde estão.

    Parou por um instante para analisar a reação deles, segurando até mesmo a respiração.

    Era incrível e assustador como o silêncio imperava em um local onde poucos momentos antes havia gritos e lamentações. Se um algodão caísse no chão faria tanto barulho quanto um trovão.

    Poderia utilizar o pouco de oração no frasco para me movimentar rapidamente até a carroça. Só restava saber quanto tempo os cidadãos amaldiçoados demorariam para entender o acontecido e como reagiriam em seguida.

    Mesmo se a reação de Grekz for rápida, não vamos conseguir escapar a tempo na carroça.

    Estava na hora de usar uma estratégia mais pacífica.

    Sentiu o coração de Anayê batendo barulhento e inquieto como as ondas do mar.

    Por favor, não se mexam. O pé direito do ceifador se moveu devagar em um movimento suave. Seus olhos não abandonavam os presentes e seus ouvidos se atentavam a qualquer mudança.

    Boyak não saberia o que fazer se eles atacassem. Eu não posso matá-los. Assassinar aquela pobre gente controlada por uma força abominável não era opção, mas sacrificar Anayê e Grekz também não era.

    Que escolhas restam quando apenas o poder de combate não basta?

    Na carroça, o gor apertava as rédeas transformando em roxo os nós de seus dedos verdes. Se eles atacarem… eu devo fugir? 

    Sua espécie não era ensinada a lutar. Fugir sempre fora a chave da sobrevivência.

    — Se vir um magg, fuja — seu avô ensinara. — Se vir um general, fuja. Não tente bancar o herói. Histórias fantásticas, lembranças e lápides de cemitérios, esses são os lugares dos heróis.

    Mexa-se, seu idiota. Por que está preocupado com esses estranhos?

    Com a carroça, poderia ter uma chance. 

    Mas e eles? Fui salvo por ele. 

    A questão de verdade era se valia a pena se arriscar tanto por um humano. São apenas humanos. Eu deveria me sacrificar por outra espécie?

    Fora isso, havia o seu povo. Não tinha ninguém forte o bastante para mantê-los unidos. Se qualquer um dos seus ajudantes assumisse, por mais habilidoso, acabaria dividindo o grupo. Grekz sabia bem, pois, quase fizera isso. A sua sorte foi ter seu avô como conselheiro e mentor, uma âncora firme que manteve seus pés e a sua cabeça no lugar.

    Você não é herói, sequer sabe balançar essa adaga na cintura, era a voz de seu avô brigando com sua consciência. O ceifador vai entender, eu não tenho escolha.

    Mas dizer aquilo para si mesmo não aliava o peso da dívida que possuía com Boyak.

    Nós, gors, apenas fugimos porque fomos ensinados assim. E assim sobrevivemos até aqui.

    Quantas vezes ele e seu bando precisaram abandonar alguns para salvar muitos? Crianças, jovens e fêmeas eram a prioridade. Logo sobrava para os doentes e velhos a terrível tarefa de se sacrificar, por vontade própria ou falta de opção.

    Os gors só atacavam pessoas fracas e sempre usavam armadilhas para tornar a sua empreitada vitoriosa em quase todas as vezes.

    Nós, gors, apenas fugimos porque fomos ensinados assim.

    Ele baixou o olhar para os pés sujos e esverdeados. Mexa-se, você não tem escolha. Quer morrer junto com eles?

    O corpo de Anayê se contorceu quando o ceifador deu o segundo passo. Suas mãos se firmaram ainda mais para garantir que ela não escaparia.

    Mais um passo.

    Nenhum movimento.

    Ótimo! Continuem parados.

    O quarto e o quinto passo foram executados quase juntos.

    — Grihhhhh!

    O relincho do cavalo chamou imediatamente sua atenção.

    A carroça estava partindo.

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