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    Quando Boyak terminou seu treinamento e se tornou um ceifador, pensava que seus maiores inimigos eram as aberrações. 

    E, de fato, em sua primeira caçada, seu desafio contra uma quimera  foi a conclusão desse pensamento. 

    Após quase uma noite inteira de combate, voltou para a hospedaria ao ponto da exaustão, se segurando para não cair pelo caminho. No entanto, exatamente nesse percurso presenciou uma cena terrível.

    Trinta homens fardados com armaduras pratas marcadas no peito com a cara de um tigre, o símbolo dos protetores do reino, abusavam de uma mulher. 

    Dois a seguravam e um abafava seus gritos, os outros riam e falavam absurdos. Mas diante da calmaria noturna, o som de suas unhas rasgando a terra chegou aos ouvidos do ceifador como o estrondo de um terremoto.

    Seu mundo sempre fora rodeado de violência, injustiça e morte, mas de algum modo foi diferente daquela vez.

    Boyak sentiu as chamas do inconformismo incendiarem sua mente e sua capacidade de raciocinar. Não sabia se era pelo cansaço da luta com a quimera ou se pelo cansaço de ver tantas injustiças.

    E também, diferente das outras vezes, agora tinha poder para agir.

    — Deixem a mulher em paz! — bradou sentindo uma força emergindo dentro de si, o cansaço se escondendo atrás de sua determinação.

    Os homens paralisaram por um momento, assustados com o intruso. O braço da mulher se ergueu na direção do ceifador fazendo seu coração estremecer no peito.

    — Quem você pensa…

    O agressor não teve tempo de terminar a frase, pois o punho de Boyak alcançou sua mandíbula e a destruiu em um segundo.

    Os outros recuaram impressionados. Um deles desembainhou sua espada e alguns acompanharam o movimento.

    — Vocês… vocês… — A imagem de uma família inteira despedaçada pela quimera assaltou sua mente. — Vocês deveriam ser protetores do reino, mas agem como se fossem aberrações. Pestes enraizadas no mundo humano.

    — Você vai pagar por isso! Somos a lei aqui.

    Houve um tenso silêncio enquanto o homem com a mandíbula destruída caía no chão e seus companheiros se preparavam para o ataque.

    Seis oponentes cercaram o ceifador em posição de combate empunhando suas lâminas de forma coordenada.

    — Me ajuda! — o grito escapou dos lábios da vítima.

    O soldado próximo dela sacou uma adaga e cortou o seu pescoço.

    A mulher engasgou com o sangue enquanto levava a mão até a abertura na garganta. Seus olhos se voltaram para Boyak com uma vã esperança de que poderia ser salva.

    Foi o estopim.

    — Mandei deixarem a mulher em paz!

    Boyak atacou. O punho fechado carregando uma força esmagadora consigo atingiu o rosto de um homem em cheio. Seu rosto foi despedaçado como se um pedaço enorme de concreto tivesse caído em sua cabeça.

    O golpe intenso criou uma onda de vento que decepou a mão de um soldado.

    Todos ficaram assustados com tamanha façanha e se afastaram um pouco.

    — Ele é só um! Não pode nos vencer!

    E atacaram.

    Lâminas reluziram, braços quebraram e cabeças se partiram.

    E, no centro do pandemônio, um homem balançava os punhos poderosos. Cada golpe, uma morte.

    Cortes e estocadas não conseguiam detê-lo. Sua fúria explodia como uma tempestade no mar.

    Ao fim, todos os trinta soldados foram aniquilados. Sim, aquilo não fora simplesmente assassinato, fora aniquilação.

    Boyak caminhou cambaleando até a mulher morta. Banhado pelo sangue dos inimigos, encharcado de suor e suspirando alto como se cada suspiro fosse como carregar dez quilos de areia. Sua roupa se tornara um farrapo, exibindo diversos cortes e hematomas em seu corpo.

    Ele desabou ao lado dela fitando seu rosto sem vida. A lembrança de seus olhos buscando ajuda era um tormento em sua cabeça. 

    — Me desculpe.

    E então ele chorou copiosamente.

    Matar alguém com o poder recebido para derrotar aberrações é correto? Mas se havia uma pessoa em perigo, isso não torna legítima essa ação?

    Ele lutava para decidir se agira por impulso ou por uma boa causa.

    Não consegui conter minha força. Visualizou as mãos pintadas de vermelho. De fato, eles mereciam uma punição, mas eu passei dos limites? Não. Essa mulher não merecia esse destino, eles que ardam no inferno.

    Sentiu suas forças minguando.

    Porém, algo ainda incomodava. Durante o massacre, a sua mente estava tomada por apenas um sentimento: satisfação.

    Como se o fato de poder executar uma punição justa impulsionasse sua alma ao estágio da plenitude. Cada morte de um daqueles canalhas ecoava tal qual uma melodia tranquila e prazerosa em seus pensamentos.

    E era esse sentimento que deixava Boyak assustado.

    A mesma sensação voltou quando ele viu Anayê prestes a ser apunhalada.

    As pessoas ao seu redor eram seres humanos, porém, suas mentes jaziam dominadas pela maldição do lorde sombrio. Não sou assassino de humanos, ele disse a si mesmo. Mas não vou permitir que Anayê morra.

    — Isso eu não posso permitir!

    Seu grito soou como uma trombeta de guerra. Sua mão direita se encheu de luz, o Punho de Deus estava pronto.

    Dez pessoas saltaram sobre ele portando armas e cacos.

    E de dez pessoas centenas de pedaços misturados com sangue voaram pelo ar.

    O estrondo do golpe foi tão grande que os meninos prestes a apunhalar Anayê paralisaram. E quase ao mesmo tempo, um homem molhado de sangue apareceu diante deles. O ceifador estava irreconhecível.

    — Me perdoem — sussurrou.

    Desferiu um chute. 

    Corpos pequenos e desmembrados foram arremessados para longe.

    Os ferros, antes usados para ferir Anayê, fincaram no chão com um barulho surdo. E, embora silencioso, Boyak gritava por dentro.

    Mais indivíduos alucinados se aproximavam.

    Os ataques vieram de todos os lados e de todas as formas. Ferros, cacos e pedras eram lançados enquanto homens, mulheres e crianças tentavam agarrá-lo ou feri-lo.

    Seu punho balançava freneticamente, eliminando de maneira eficaz, seu corpo se enchia de restos mortais pintados de carmesim e sua respiração acelerava a cada movimento.

    Ele era uma máquina perfeita de assassinato impedindo qualquer um de alcançar o corpo de Anayê.

    Uma barreira de corpos começou a se formar ao seu redor e os novos atacantes precisavam pular por cima dos caídos.

    O ceifador só percebeu isso quando tropeçou e quase foi atingido por uma lança improvisada. Mas, girando os calcanhares, recuperou o equilíbrio.

    Preciso dar o fora daqui.

    Boyak se ajoelhou ao lado da moça e a colocou sobre os ombros, se levantou notando mais indivíduos se aproximando. 

    De repente, um pedaço de ferro perfurou seu braço direito. Ele gritou e desferiu um chute que abriu um buraco no estômago do agressor. Aproveitou o corpo caindo e usou como impulso para um salto grande deixando uma parte da multidão aglomerada para trás.

    Atrás dele, as ruas estavam adornadas de corpos multilados.

    O braço ferido ardeu com o movimento. Ainda antes de pousar, utilizou o fluido de oração correndo em seu corpo para se curar. A ferida cicatrizou instantaneamente.

    Mas bastou colocar os pés no chão para ser atacado outra vez. Cinco mulheres grandes e corpulentas desferiram o golpe ao mesmo tempo. Ferros enferrujados em sua direção como o bote de uma víbora.

    Boyak jogou o corpo de Anayê para cima. Em seguida, girou em torno do próprio corpo balançando os punhos rapidamente e criando um pequeno redemoinho que afastou as agressoras. A poeira e o vento paralisaram as mulheres tempo suficiente para que o ceifador atacasse.

    Ele arrancou um dos ferros da mão de uma delas, acertou a perna de outra e chutou a barriga da terceira. 

    Recuou, ergueu os braços e pegou Anayê. Mais lamentadores se juntaram às duas atacantes restantes.

    Segurou firme a garota, retesou o corpo e começou a correr.

    O peso do corpo da moça aumentou um pouco e suas pernas estavam perdendo velocidade.

    Mas a visão em seu caminho encheu seu coração de uma breve esperança. Cerca de quatrocentos metros à sua frente, as ruínas de uma muralha apareciam. Aquela devia ser a saída leste da cidade.

    Talvez fora dos muros, eles não me persigam

    Era uma aposta. Podia dar certo ou totalmente errado.

    Se desse certo, Anayê e ele poderiam suspirar aliviados e escapariam da morte.

    Porém, se seu palpite estivesse errado, seria o fim. Sua força não duraria para sempre e não poderia correr eternamente.

    Com tão pouco fluido de oração já não podia ir tão longe. Seria obrigado a lutar com todas as suas forças contra uma horda grande de amaldiçoados.

    Mas, ao refletir, Boyak percebeu que não tinha muita escolha. 

    Decidido, firmou os passos e retesou o corpo, mantendo Anayê presa aos ombros.

    Porém, foi obrigado a parar.

    Um grupo de cinquenta pessoas armadas com ferros, paus e pedras ocupava o caminho até os muros. 

    O ceifador estreitou os olhos. Seu peito subia e descia depressa buscando o ar para seus pulmões.

    Nenhum dos indivíduos demonstrava raiva ou irritação, mas fitavam os dois com uma atenção obcecada.

    Boyak analisou o restante de fluido de oração em seu corpo.

    Tenho a opção de usar o Punho de Deus mais uma vez.

    Porém, se fizesse isso, corria o risco de ficar totalmente exausto e sem fluido para usar. Seu mestre diria que era uma atitude imprudente.

    Bom, me tornei especialista em atitudes desse tipo.

    Esse ataque precisaria ser devastador para abrir uma chance de fuga.

    Em seu encalço, ele pôde ouvir mais pessoas chegando.

    Aquele era um cerco perfeito.

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