As ruas das ruínas das lamentações eram palco de um massacre. Corpos multilados, sangue, escombros, ferros e paus denunciavam a terrível situação que terminara finalmente com a maldição daquele lugar.

    Porém, para o ceifador, ainda restavam três vidas para alcançar o fim da batalha. Então, quem sabe, poderia cair no chão e se render à exaustão.

    Suas pernas estremeciam e sua visão se alternava entre embaçada e limpa. Ainda assim, ele retesou o peito e fechou a mão em um punho. Havia realizado a prece, agora não tinha mais nada para fazer, exceto confiar que poderia invocar mais um Punho de Deus, mesmo sem fluido de oração no corpo. 

    Segundo os ensinamentos de seu mestre era impossível realizar tal feito, ainda mais estando no território inimigo.

    Os três inimigos já estavam ao seu alcance. 

    Ele olhou para o corpo de Anayê. A agonia dela tinha desaparecido completamente e agora descansava, tranquila. Relembrou de seu desespero quando a encontrara pela primeira vez, como parecia assustada e perturbada. Quantos infernos aquela garota passara? Quantos ainda teria que passar? Desejou ardoroso proporcionar um pouco de liberdade para ela, um resquício de esperança que pudesse brotar e se transformar em realidade.

    Boyak se concentrou. Mas não sentiu nada. Nenhuma sensação de poder fluindo em seu corpo, nenhuma mudança de seu estado cansado e fracassado. Olhou para o punho. Não estava cercado por luz e nem demonstrava sinais de ficar iluminado.

    Não havia mais tempo para esperar, pois um brutamontes avançou em sua direção.

    Ele atacou com o corpo desengonçado pela falta de força como uma criança aprendendo a andar. Seu soco perdeu a intensidade e acertou o rosto do grandalhão sem gerar reação por parte do indivíduo que contra atacou mergulhando seu punho no rosto de Boyak. 

    O ceifador foi lançado quatro passos para trás. Ergueu o braço para se defender de um segundo soco, mas foi lento demais e recebeu a pancada no abdômen. 

    Seus músculos se contraíram e seu fôlego vazou fazendo um apagão repentino atordoar sua mente.

    O homenzarrão agarrou a cabeça do ceifador com as duas mãos e balançou-o como se fosse um boneco de pano. Boyak foi incapaz de conter o movimento do próprio corpo, pois só conseguia sentir o cérebro ficando apertado e sua capacidade de raciocínio diminuindo.

    Entretanto, repentinamente, o brutamontes paralisou e arregalou os olhos. Em seguida, largou o ceifador e segurou a própria cabeça. 

    E, num piscar de olhos, Boyak assistiu a cabeça dele explodir em mil pedaços.

    O ceifador recuou, assustado, recuperando o fôlego.

    Que diabos foi isso? O que… aconteceu?

    Não teve tempo para pensar muito, pois os últimos dois lamentadores investiram contra ele. 

    Esquivou de modo desajeitado de um golpe e acertou um soco na costela do agressor. Girou os calcanhares, repeliu o braço do segundo sujeito com as mãos e atingiu-o com uma cabeçada. 

    O estrondo fez parecer que seus miolos haviam trocado de lugar dentro do cérebro, mas o golpe foi eficaz, pois o atacante caiu desmaiado.

    Ainda faltava um adversário.

    Ele se preparou e deu dois passos na direção do ceifador, porém, a lateral do seu corpo explodiu enquanto se movimentava, pegando até mesmo o lamentador de surpresa. Sua expressão de terror durou apenas o tempo que levou para alcançar o chão, e então estava morto.

    Boyak ficou estagnado com a situação. Como havia provocado aquela reação violenta?

    Mas seu espanto durou apenas um segundo, pois foi substituído pelo esgotamento.

    O ceifador suspirou. Piscar os olhos era uma tarefa de imensa dificuldade naquele momento, mas ele não se permitiu cair.

    Retornou para Anayê, se abaixou e a colocou no colo. Cerrou os dentes, tremeu os braços e firmou os pés na medida do possível.

    Então deu um passo.

    O peso do corpo dela quase fez os dois caírem, porém, o ceifador conseguiu se equilibrar.

    Ele não pensava. Seus olhos fitavam os muros de maneira obcecada. Um objetivo tão longe para alguém com aquele estado.

    Mais um passo.

    Pisou em uma poça de sangue e só soube disso pelo som que seu sapato fez ao atingir o líquido.

    Dois passos.

    Anayê se movimentou em seus braços e se tivesse forças ele mandaria que ela ficasse parada. Entretanto, apenas continuou, um pé atrás do outro, passo após passo, como a tarefa mais complicada de sua vida.

    Se pudesse calcular, perceberia que a conclusão de sua jornada estava a meros três passos de distância. Ele persistiu mantendo toda a dor e toda a canseira trancafiadas no corpo, perseverando na base do instinto, unicamente por um objetivo.

    Quando criança, Boyak encontrou um pássaro machucado na floresta. Algumas de suas penas azuis estavam feridas e, por isso, o bicho não conseguia alçar voo. 

    Comovido, o garoto levou o animal até seu mestre e pediu para ajudá-lo. Não era costume de seu professor atender petições de um menino de dez anos, mas fez uma exceção naquele dia.

    Depositou algumas gotas do fluido de oração nos locais feridos e pouco depois o pássaro já estava piando alegremente.

    Alguns instantes após a cura, a ave começou a experimentar as asas e, quando se sentiu firme, galgou os céus.

    O menino acompanhou todo o processo com curiosidade e correu atrás do pássaro ao vê-lo voar. Avançou pelo campo aberto desviando de troncos e galhos com os olhos fixos na ave. Entretanto, por mais energia que tivesse, não foi capaz de alcançá-lo e perdeu o bicho de vista.

    Agora, quinze anos depois, Boyak se sentia da mesma maneira, como se as muralhas arruinadas fossem um objetivo inalcançável e distante tal qual aquele passarinho. Mas ele prosseguia, um pé após o outro, dando tudo de si e além do seu limite.

    Finalmente, seus pés cruzaram a linha que definia o perímetro pertencente à cidade dos portões de ferro. 

    Estava fora. 

    Deixando para trás uma pilha de morte e violência. 

    Se sentia incompleto e corrompido por usar seu poder para ferir pessoas reféns de uma maldição. Sua principal obrigação sempre fora livrar as pessoas desse tipo de situação e só usar a violência contra aberrações – ou com alguns de seus aliados idiotas.

    Mesmo assim, ele não parou. De passo em passo se afastando do lugar amaldiçoado como se estivesse deixando a maior carga de sua vida para trás. 

    Uma parte de si ficou lá e uma parte do lugar se impregnou nele. Os gritos, os sons de ossos quebrados, os rostos sem expressão, tudo isso ficaria marcado para sempre em sua cabeça.

    Boyak prosseguiu assim sem perceber o sol subindo e ganhando os céus. Caminhava a esmo, basicamente por instinto de sobrevivência. Em dado momento da caminhada, a sola de seu sapato rasgou e ficou para trás. Ele sequer notou.

    O terreno pedregoso e disforme começou a dar lugar para um pouco de grama e, muitos passos depois, algumas árvores ainda vivas apareceram como resquícios da aparência antiga do lugar.

    Um vento sereno soprou balançando os cabelos do ceifador que a essa altura tinham mudado de branco para vermelho escuro.

    Está tudo bem, garoto. A ajuda está a caminho, foi como se uma voz trazida pelo vento tivesse falado.

    De repente, os olhos de Boyak enxergaram algumas silhuetas humanas no horizonte. A princípio, a imagem despertou um sinal em seu cérebro, mas ele estava tão alucinado que ignorou.

    Porém, quanto mais andava, mais as silhuetas ficavam definidas, até conseguir reconhecer uma humana na frente do bando. Seus cabelos cacheados eram da mesma cor de seus olhos caramelos, sua pele era escura como óleo e sua maneira de andar imponente e decidida.

    Um nome surgiu na mente do ceifador: Thayala.

    A expressão no rosto dela era um misto de preocupação com raiva. Mesmo assim, ela apenas tomou Anayê de suas mãos e a depositou no chão com cuidado.

    Boyak continuou com os braços estendidos, incapaz de se mover. Fitou Anayê por um momento e abriu um sorriso.

    — Consegui — murmurou para si.

    Então a escuridão veio e ele desabou.

    Nota