Capítulo 2 – A Escrava
Anayê havia acordado para mais um dia. Ao fitar a fila para a ração da manhã, ponderou se algum dia teria uma refeição gostosa. Eles serviam uma sopa com gosto de terra e ai de quem reclamasse.
Ela sentou-se numa das muitas rodas de escravos que se formavam no pátio da refeição, mas, como sempre, não conseguiu conversar com ninguém. Nenhum escravo queria se sujeitar a ser visto conversando e levar uma surra. Eles preferiam obedecer do que arriscar.
Muitas vezes, Anayê desejava ser como eles, apenas uma manada seguindo ordens, sendo uma escrava exemplar.
Se você se comportar poderá até conseguir ser uma escrava na torre principal, seu irmão sempre dizia. Um dia, poderá até ser um deles e governar ao invés de ser governada. Entretanto, se pudesse governar a própria vida já seria de bom tamanho para ela.
Após terminarem as refeições, eles entraram na fila para trabalhar. Anayê estava na categoria de carregadora, ajudava a levar uma parte da rocha minerada até uma carroça guiada até uma das torres para ser analisada.
O clima estava mais quente, embora imensas nuvens cinzas deixassem o céu borrado e uma leve garoa caísse. Era daquele jeito todo dia. Quando deitava para dormir e tinha tempo para pensar, Anayê tentava lembrar da cor do sol e do céu sem nuvens, mas suas recordações estavam retalhadas.
Com oito anos, Anayê vira o sol, céu e a liberdade pela última vez. Seu vilarejo foi invadido e destruído por uma aberração. Ela, o irmão e outras crianças sobreviventes foram levadas para serem escravas na fortaleza de Astaroth. Desde então, haviam se passado dez anos. Anayê e o irmão foram doutrinados a obedecer por meio do sofrimento e da violência. Eram obrigados a recitar um poema em honra a Astaroth todas as noites como um lembrete de que suas vidas pertenciam ao grande lorde. Já no segundo dia, suas testas foram marcadas com a runa de Astaroth. Ela recordava tão bem da dor que parecia senti-la de novo quando sucumbia a essa lembrança.
— Ei! Você! — Um dos maggs agarrou seu cabelo e lançou-a no chão. — Não temos tempo para contemplação do céu. Ao trabalho!
Ela ralou os braços na queda e sua camisa amarrotada ganhou um novo buraco.
Numa poça formada há pouco mais de um dia, Anayê vislumbrou rapidamente seu reflexo. Os cabelos encaracolados estavam embaraçados e imundos, o rosto magro tinha cicatrizes de cortes, mas os olhos púrpuras ainda se destacavam no meio daquela bagunça.
Levantou, limpou a palma das mãos e se preparou para voltar ao trabalho.
Entretanto, naquele momento, o som de uma explosão chegou aos seus ouvidos e fez todo o terreno estremecer. Olhando para o leste, ela assistiu à torre do maquinário desabar com um estrondo.
Por alguns momentos, todos apenas vislumbraram o espetáculo sem entender, mas não demorou muito para que cochichos e murmúrios começassem.
Anayê ponderou por apenas alguns instantes. Era uma oportunidade? Sua intuição respondeu afirmativamente. Agarrou um pedaço de rocha e atacou o magg a sua frente.
Pego de surpresa, o grande e rechonchudo vigia tonteou e quase caiu. Isso bastou para que ela ganhasse o terreno usando toda a sua energia para correr. O magg girou nos calcanhares para descobrir quem tivera tamanha ousadia, mas a atitude de Anayê acabou desencadeando um segundo ataque de outro escravo, seguido de uma sucessão de golpes que terminaram com a vida dele. Ela não chegou a ver o fim de seu algoz, pois já estava longe.
Depois de tanto tempo como escrava, já havia imaginado inúmeras formas de escapar da fortaleza, mas todas acabariam dando errado. Naquele dia, porém, com a fortaleza em polvorosa, tinha certeza de que um deles funcionaria. Usaria uma passagem subterrânea de esgoto como a estrada para a sua liberdade.
E assim foi. Enquanto outros escravos corriam para os portões ou muros, ela se esgueirou até a torre oeste e encontrou uma das entradas para o esgoto. No pandemônio, ninguém percebeu uma jovem adentrando a passagem.
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Anayê correu até seu pulmão suplicar por descanso. E, mesmo assim, prosseguiu devagar.
Mantinha em mente que não podia relaxar enquanto não cruzasse a fronteira. Qualquer descuido significava voltar a escravidão e isso era inaceitável. Nunca mais retornaria para fortaleza e para a vida de chicote e ordens. Preferia a morte.
O odor no esgoto era insuportável. Era tão difícil respirar ali embaixo que ela precisou rasgar um pedaço da manga da camisa para colocar no rosto.
Conforme avançava, mais o corredor se estreitava, chegando ao ponto em que foi obrigada a engatinhar. Refém da escuridão e do medo, ela continuou agarrada a um fio de esperança e expulsava qualquer pensamento que surgisse questionando se aquele túnel teria fim ou se o tamanho da passagem seria suficiente.
“Em frente, em frente”, repetia para si mesma.
A imagem de seu irmão com longos cabelos compridos e corpo magricelo assaltou sua mente de repente. O que está fazendo? Lembre-se, não cause problemas. Exatamente o que ele diria. Mas Anayê deu de ombros e continuou.
Quando eles te pegarem, você vai ser castigada e nunca terá uma chance de melhorar de cargo, novamente um resquício da voz dele.
Cale a boca!, ela repreendeu. E as vozes cessaram.
Finalmente, enxergou um pequeno facho de luz. E, mesmo pequenina, aquela fresta de claridade encheu seu coração de tão inestimável alegria que foi impossível conter as lágrimas. A moça acelerou evitando o choro e saiu próxima da borda de um rio.
De modo rápido, arrancou o pedaço de pano da boca e suspirou o ar profundamente. Nenhuma sensação parecia ser tão reconfortante quanto sentir o ar fora da fortaleza.
Olhou para trás e viu os muros a trezentos metros de distância ou mais. Eu… consegui, pensou ainda sem acreditar. Estava livre! Finalmente escapara daquele inferno e, mesmo com roupas fedendo, abriu um sorriso. Logo o riso se misturou com as lágrimas e ela chorou outra vez.
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A moça seguiu o rio por alguns metros até uma margem mais limpa e se lavou. Era como se o cheiro de esgoto estivesse impregnado em suas vestes. Se Anayê possuísse outras roupas, lançaria aquelas sujas no fogo.
Já era noite quando ela conseguiu sair do esgoto e, com as energias esgotadas, não restou outra alternativa se não escolher uma árvore para dormir. Era estranho como todas as árvores e plantas daquele local estavam mortas, porém, ainda assim, ela selecionou uma delas. Bastou se aconchegar no galho e o sono a derrubou como quem leva um nocaute em uma briga.
Anayê acordou na manhã seguinte com um susto e quase caiu do galho. Por um instante, achou ter sonhado com sua fuga, mas o barulho do rio e a leve brisa do vento confirmou que havia escapado. Realmente, deu certo, pensou.
Ela saltou da árvore em seguida e deu de cara com um casal de idosos que estavam enchendo seus jarros com água. A mulher gritou e o marido fitou assustado.
— Por favor, por favor! — suplicou Anayê. — Não vou fazer mal! Sou uma fugitiva da fortaleza de Astaroth. Não sou um perigo para ninguém.
O casal a olhava com desconfiança. No susto, a idosa deixara cair seu jarro no chão.
— Eu apenas desejo alcançar a fronteira rumo aos reinos livres — explicou. — Se puderem, me mostrem a direção. Mas se não, apenas deixem que vá embora, só peço que não gritem porque podem atrair a atenção de algum vigia.
O casal se entreolhou e a mulher cochichou no ouvido do marido.
É a primeira vez que falo tão alto com alguém em anos, pensou enquanto os idosos ponderavam. Os escravos só podiam falar baixo e, às vezes, apenas tinham o direito de ficarem calados.
— Perdoe nosso jeito, mas você apareceu de repente e nos deu um susto. Eu me chamo Bóris e essa é a minha esposa Arev.
— Eu sou Anayê.
— Você deve estar com fome — Bóris falou. — Temos um pequeno rancho aqui próximo da estrada principal. Venha, mostraremos o caminho.
O rosto da ex-escrava se iluminou com a notícia e ela seguiu o casal. Eles se direcionaram para o sul avançando por dentro da floresta morta e depois de andarem por alguns quilômetros, uma casa de pedra com uma cerca de madeira de frente para a estrada apareceu.
Uma vaca, um poço e uma horta ocupavam o terreno, além de uma carroça com um cavalo.
Anayê estava tão contente que esqueceu por um instante da canseira e da fome, e também ignorou o fato de que o casal tinha um poço.
Depois de um convite, ela entrou para comer. Seu estômago suplicava por qualquer alimento.
A casa possuía apenas dois cômodos simples com uma lareira, uma mesa de dois lugares e fogão a lenha.
— Bóris, vá ao mercado buscar algumas frutas para que nossa convidada possa levar na viagem. Ela parece fraquinha e precisa de energia. — Arev se voltou para Anayê. — A caminhada até a fronteira é longa, minha filha.
Bóris, um sujeito cheio de rugas e cabelos da cor da neve, obedeceu, enquanto Arev preparava um bolo de trigo e chá de camomila.
Assim que a refeição foi servida, Anayê devorou tudo em alguns instantes. Pensou ter comido a melhor refeição de sua vida.
Em seguida, Arev trouxe-lhe também uma calça e uma camisa.
— Minha filha esqueceu aqui da última vez, deve caber em você — a idosa explicou. — Melhor do que esse trapo fedido que você está vestindo.
Anayê ficou um pouco sem graça pelo comentário, mas depois riu. Arev apontou um quarto para a jovem se trocar.
— Eu nem sei o que dizer… — a moça falou se dirigindo ao quarto.
— Ora, não é nada. Vá, vá se vestir.
Para Anayê, trocar de roupa foi como trocar de pele. Sentiu as forças e esperanças renovadas, pronta para viajar até o fim do mundo se fosse preciso. Em todos os planos que imaginara em sua mente, nenhum havia sido tão inusitado quanto aquele.
Naquele momento, ouviu o som da porta de entrada da casa batendo. Bóris deve ter voltado, pensou.
— Serviu perfeitamente — ela disse abrindo a porta e saindo do quarto.
Então uma pancada acertou sua cabeça e a escuridão a abraçou.