Capítulo 20 - O Sonho e a Realidade
Anayê acordou com um susto, sufocando um berro da garganta. Se tivesse ouvido, veria que tinha gritado o nome do irmão. Sua cabeça latejou por um instante e os lábios estremeceram enquanto se localizava.
Estava em uma tenda deitada em uma espécie de cama improvisada com palha e trapos. Passou a mão pelo rosto notando que sua roupa também havia sido trocada. Agora trajava uma camisa preta e uma calça marrom. Percebeu também seu cabelo embaçado e sujo de poeira, tomando uma cor quase cinza.
Passeou por sua mente à procura de informações para ajudá-la a desvendar o lugar onde se encontrava. Lembrava de estar com Boyak e Grekz na carroça conversando sobre uma cidade. De repente, num lapso, sua mente voltou. Recordou da dor na cabeça e da runa queimando e de se ver caindo da carroça em movimento. Depois disso tudo tinha ficado escuro.
O que teria acontecido? Onde estavam Boyak e Grekz? Em que confusão estaria metida dessa vez?
Sentiu um pouco de fome, se levantou e saiu da tenda.
Lá fora havia um pequeno acampamento montado com tendas temporárias, fáceis de desmontar, e cerca de vinte pessoas em volta de fogueiras. Gente de gêneros, cores e tamanhos diferentes, trajando roupas velhas, barbudos, cabeludos, carecas, magros e gordos.
Diante da visão, Anayê demorou um pouco para prosseguir, observando aquele grupo com curiosidade e desconfiança. Mas, um fator em comum, fez com que ela se aproximasse de alguns próximos de uma fogueira: a runa de Astaroth em suas testas.
Com os olhos roxos arregalados e prontos para identificar qualquer reação, a moça se achegou até ser percebida pelas pessoas. Um homem grandalhão, de rosto quadrado, com uma cicatriz do queixo ao olho esquerdo, ficou surpreso ao vê-la.
— Seja bem vinda, garota violeta — ele disse. — É bom te ver em pé. Faz um dia e meio que você está adormecida, viajando entre o mundo desperto e o dos sonhos.
Ela encenou um sorriso tímido.
— O remédio da mulher ventania realmente te curou.
— Quem são vocês? Que lugar é esse?
— Eu sou Erlik, um fugitivo da fortaleza de Astaroth. Estamos no acampamento provisório de refugiados.
— Você…
— Sim, aqui somos todos escravos como você — falou uma mulher apontando para a runa na testa dela.
Inconscientemente, Anayê puxou uma mecha de cabelo para esconder a marca.
— Não precisa ter vergonha, não precisamos mais esconder quem somos — o grandalhão comentou. — Você, assim como nós, deve ter fugido da fortaleza quando a torre caiu, certo?
Ela não respondeu.
— Deve ter passado por muitas coisas ruins. Nós passamos por um bocado até encontrarmos Thayala. Mas agora, podemos suspirar aliviados, pois estamos livres do domínio de Astaroth.
A moça estreitou os olhos.
— O que disse?
— É isso mesmo. Nós estamos nos reinos livres.
Foi difícil conceber aquela frase. Dentro de sua mente, ela ficou reverberando várias vezes como se isso tornasse mais fácil digeri-la.
— Reinos… Livres?
Fitou o seu redor, percebeu como as árvores eram verdes, o ar limpo e a grama sob os pés macia.
Imediatamente, os olhos de Anayê se encheram de lágrimas. O peito palpitou cheio de gratidão, as mãos estremeceram de emoção. Ela se debruçou sobre os joelhos e chorou. Sim, se permitiu chorar copiosamente. Chorou como há muito não fazia. Chorou como uma criança. Um choro alto e livre de amarras. O choro de liberdade.
Enquanto as lágrimas passeavam por seu rosto, seu coração se enchia de alegria e gratidão. Realizar aquele sonho que parecia tão distante e tão irreal dias atrás era um sentimento sem palavras.
Mas uma certeza surgia dentro de si, a convicção de que tinha valido a pena. Cada dia pensando em uma maneira de escapar, cada dia mantendo viva a pequenina chama da esperança, cada dia esperando uma oportunidade. Sua força de vontade, sua insistência, sua resiliência. Valera a pena tentar.
Ela sentiu alguém acolhendo-a em um abraço. Porém, ao invés de se deixar acomodar, levantou a cabeça e perguntou:
— Havia um homem comigo. — Enxugou as lágrimas e fungou. — Cabelos brancos, camisa vermelha, com faixas nos braços.
Erlik assentiu.
— Ah! O destruidor da torre do maquinário.
— Sim, esse mesmo. Cadê ele? — perguntou de forma quase desesperada.
O grandalhão hesitou por um momento, baixou os olhos e falou:
— Ele estava muito exausto quando nos encontramos. Nunca vi um homem naquela situação horrível conseguir sequer ficar de pé — sua voz carregava um tom penoso. — Ele te carregava no colo e só parou quando Thayala te pegou. Então, exibiu um sorriso cansado e caiu no chão. Essa imagem jamais esquecerei.
Anayê ficou parada ouvindo tudo atentamente.
— Depois Thayala nos contou que ele era o responsável pelo ataque à torre do maquinário e isso nos fez torcer ainda mais por sua vida.
Anayê se levantou sentindo a emoção da gratidão ser substituída repentinamente pelo desespero e medo.
— Cadê o Boyak?!
— Ele está na tenda — disse uma voz forte e autoritária.
Em pé, atrás de Anayê, chegara uma mulher negra com cabelos cacheados e caramelos, trajando uma camisa azul presa na cintura por um largo cinto de couro. Seu rosto emitia um ar de poder e vitalidade.
Anayê franziu o cenho.
— Quem é você?
— Me chamo Thayala, sou uma ceifadora de aberrações. Eu estou conduzindo esse grupo de pessoas de volta para os reinos livres.
Uma ceifadora de aberrações? Igual ao Boyak? Isso é possível? Analisou a mulher de cima a baixo notando seu atlético e curvas definidas, mas de sua baixa estatura. Nunca passara por sua cabeça uma mulher se tornando uma ceifadora.
— Você nem disfarça para julgar alguém com esses olhos chamativos — Thayala resmungou.
— Me desculpe — Anayê baixou os olhos.
Se repreendeu por não controlar os velhos costumes.
— E você? Quem é?
— Eu? — suspirou. — Não sou ninguém importante.
— Típico do Boyak arriscar a vida por plebeus desconhecidos. — Ela revirou os olhos. — Mas você tem um nome, não tem?
— Anayê.
— E você pode nos contar o que aconteceu? Consegue se lembrar de algo antes de desmaiar?
— Fomos guiados por um gor até as ruínas da lamentação, mas chegando lá, a minha runa começou a arder e perdi a consciência.
— Foram guiados por um gor?
Anayê assentiu.
— Isso é novidade, nada típico do Boyak. Como acabaram guiados por um gor? Ou melhor, como Boyak se associou a uma aberração?
— Foi tudo muito rápido, uma sucessão de situações inesperadas, assim como foi meu encontro com ele. Nos desviamos do caminho normal porque um general estava em nosso encalço.
Ela ocultou o detalhe de que o general era seu irmão, pois não sabia muito bem como lidar com essa informação e como as pessoas reagiriam se descobrissem.
Dessa vez, Thayala encarou Anayê. Os olhos predadores e desconfiados analisando a garota. Incomodada, a moça desviou o olhar para a fogueira.
— Ele está bem? — perguntou.
— Ele vai ficar, mas pagará caro por sua teimosia. Levou seu corpo ao último estágio e abusou do uso do fluido de oração, então não poderá andar por um bom tempo. Também ficará longe do fluido até seu corpo se recuperar.
— Posso vê-lo?
Thayala segurou a resposta por um momento, mas depois fez um gesto e Anayê a seguiu até uma tenda azul.
Lá dentro, iluminado por uma vela e deitado sobre cobertores e palha, Boyak descansava. O rosto e os braços cheios de marcas e hematomas.
— Não podemos fazer nada para ajudar na recuperação dele?
Thayala negou com a cabeça fazendo Anayê se sentir responsável pela situação.
— Acredito que ele esteja assim por minha causa — lamentou.
— Isso é verdade — a ceifadora falou rispidamente. — Mas não ouse ficar triste, esse cabeça oca odiaria. Boyak não é uma criança. Ele sabia o que estava fazendo. Então não seja tão dramática.
Anayê não moveu a cabeça, porém aceitou o conselho. Lembrou-se vagamente do sorriso que o ceifador carregava e como seu semblante despreocupado transmitia tranquilidade. Talvez devesse seguir esse exemplo. Ficar feliz era um termo bastante forte, entretanto, por enquanto, exerceria a gratidão e a tranquilidade de seu libertador.
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