Ficaram mais dois dias acampados naquele lugar.

    Thayala começou a ensiná-los a caçar alguns animais como coelhos e esquilos para cozinhar no fogo. Também usou galhos, paus e pedra para criar lanças improvisadas e mostrou como manejá-las na arte da caça. E embora não estivesse dizendo de modo explícito, aquilo poderia servir de defesa contra algum ladrão ou animal selvagem, e talvez contra uma aberração menor.

    A beleza e as cores do local deixaram Anayê impressionada e deslumbrada. Todo o fim de tarde, ela subia em uma parte mais alta do terreno para assistir o pôr-do-sol. Na fortaleza, por causa dos dias sempre nublados, era difícil ter uma noção do espetáculo, mas agora podia contemplá-lo moldado pelo céu alaranjado.

    Ao mesmo tempo, descobriu um lago próximo onde pôde tomar banho. Sentiu como se todo o corpo e a alma estivessem sendo lavados e purificados de uma vida de tormentos e dores. Aquela água tão límpida e azul carregava a poderosa força de fazê-la se sentir melhor. Mais do que isso, Anayê tinha resquícios de lembrança do lugar onde morava com sua família e, estar nos reinos livres, parecia trazer a tona esse tipo de conexão com seu lar. As árvores, o cheiro do mato e da comida, o gosto das frutas, todos esses elementos remetiam a sua infância e, por consequência, aos seus pais.

    Boyak permanecia inconsciente, sendo alimentado por Thayala ou Anayê. De vez em quando, geralmente à noite, sussurrava um nome desconhecido e o tom de sua voz era tão intenso que fazia o corpo de qualquer um estremecer.

    — Ele vai acordar em breve — Thayala dizia quando via a angústia estampada no rosto de Anayê — Esse cabeça oca é duro de morrer.

    A frase, de certa forma, confortava o coração aflito da moça. Ainda era difícil compreender esse mundo dos ceifadores onde fatos impossíveis se tornavam realidade, e as leis naturais podiam ser desafiadas.

    Thayala era um pouco diferente de Boyak, mais centrada em sua missão e, raramente, falava de si mesma ou perguntava sobre a vida alheia. Às vezes, ela parecia evitar contato para não criar laços com aquelas pessoas, assim pensava Anayê.

    Já os recém-libertados estavam eufóricos com essa nova realidade. Compartilhavam como cada um vira a queda da torre do maquinário e como suas jornadas haviam sido árduas até chegarem ali. Alguns tinham perdido amigos no caminho, outros precisaram deixar parentes que se recusaram a tentar uma fuga. Para muitos, era impossível escapar das mãos de Astaroth.

    Mas todos partilhavam algo em comum: perseguidos por farejadores, aquelas bizarras aberrações, e salvos por um ceifador. No caso deles, Thayala.

    Entretanto, nenhum grupo foi caçado por um general, isso ainda era exclusividade de Anayê.

    Outro ponto em que ela se pegava pensando de vez em quando era em Grekz. O que havia acontecido com o gor? Teria ele sucumbido nas ruínas? 

    De acordo com Thayala, o corpo de Boyak apresentava diversas marcas de batalha, então possivelmente, ele havia enfrentado uma criatura bastante poderosa na cidade dos portões de ferro.

    Anayê se perguntava se o gor morrera naquele local amaldiçoado, ou pior, se ele se tornara um daqueles lamentadores sem perspectiva de vida. Sim, esse destino era bem mais terrível do que a morte para ela. Porém, Boyak seria incapaz de deixar alguém para trás, disso tinha certeza, e essa convicção desafiava a crença da morte de Grekz.

    No fundo, desejava o bem para o gor.

    Na manhã do terceiro dia, levantaram acampamento. Thayala separou o pessoal em dois grupos de quinze pessoas.

    Boyak foi colocado em uma maca improvisada e carregado por dois homens fortes.

    — Embora a gente esteja nos reinos livres, ainda não estamos totalmente seguros — Thayala falou antes de partirem — A fronteira é cheia de bandidos, mercenários e algumas aberrações, então não fiquem de bobeira e não deixem o grupo. Vamos caminhar para o norte na direção de Skell, a cidade neutra — ela apontou a direção. — Será uma viagem de dois ou três dias, dependendo da disposição de vocês. Mas isso é o de menos, podemos parar para descansar quantas vezes for necessário, o importante é ficarem juntos.

    Todos concordaram com a cabeça.

    — Separei nossa caravana em dois grupos. Vou liderar esse primeiro de quinze e Erlik vai liderar o segundo. Ele vai repetir as minhas ordens, então se ouvirem dizer parem, vocês devem parar tudo que estão fazendo e ficarem paralisados como se as suas vidas dependessem disso.

    Muitos olhos arregalados e preocupados se voltavam para ela.

    — Não me olhem como esses olhos de piedade! Vocês não vão morrer se me obedecerem. Agora vamos, sua liberdade está mais próxima do que nunca!

    Anayê sentiu a autoridade das palavras. Thayala conseguia se impor como ela nunca vira uma mulher fazer. A própria aura dela exalava confiança e determinação, qualidades indecifráveis para alguém na posição de escrava.

    Assim que se puseram a caminhar, Anayê se aproximou devagar dela. Thayala tinha amarrado o cabelo cacheado com uma fita preta ressaltando o rosto fino.

    — Você está me olhando daquele jeito esquisito de novo — Thayala falou sem olhar para ela.

    — Me desculpe.

    — O que quer perguntar dessa vez?

    Era tão fácil assim decifrá-la? Anayê não entendia como seus olhos transmitiam seus sentimentos de modo tão aberto. Mesmo assim, tomou coragem e perguntou:

    — Como você faz para ser assim?

    — Assim como?

    — Assim como você. Uma pessoa que fala e as pessoas escutam.

    — Ah! Isso? — a ceifadora riu. — É fácil ser ouvida por pessoas desesperadas e sem escolha. Elas não estão me ouvindo de fato. Na verdade, sou a única pessoa poderosa o suficiente para ajudá-las, por isso, elas me escutam. Mas quando esse tempo passar e não precisarem mais de mim, elas não me ouvirão mais.

    — Não é só isso — Anayê retrucou. — É o seu jeito. Tem firmeza e confiança no modo como você fala, como você age.

    Thayala se virou para Anayê e fitou bem no fundo dos olhos.

    — Você viveu uma vida diferente da minha. Não precisa cobrar tanto de si mesma. Apenas deixe as coisas acontecerem com calma, você vai encontrar sua voz e seu caminho. Eu não sou admirada pelo fato de as pessoas me ouvirem, mas porque eu sei quem sou. E meus admiradores verdadeiros sabem quem eu sou.

    Anayê engoliu seco e ponderou um pouco sobre aquilo. Era uma estranha visão de mundo, pois todo o seu mundo estava ligado a poder e autoridade. Quem detinha o poder, também possuía a autoridade. Ela pensava que poderia ser ouvida se pudesse ser como Thayala.

    Porém, absorvendo a frase da ceifadora, uma nova perspectiva se abria em sua mente. Haveria um caminho próprio para encontrar a confiança em si mesma? As suas experiências e cicatrizes poderiam se tornar o motor de sua força e personalidade?

    — Pense bem, Anayê, pense nas situações que precisou passar para abrir caminho até aqui. O seu poder é mais evidente do que parece. Talvez você deva olhar para si de modo diferente.

    Anayê se sentiu reconfortada de uma forma especial tal qual uma fogueira quentinha aquecia o corpo em dias frios.

    — A sua força não era pequena, os desafios eram muito grandes — Thayala continuou. — E, mesmo assim, você está aqui.

    Anayê assentiu.

    — Obrigada.

    Elas caminharam juntas aproveitando a calmaria do dia nascente e compartilhando o prenúncio da esperança por vir.

    Nota