A viagem prosseguiu por mais dois dias, com paradas esporádicas para descanso ou alimentação. À noite, eles paravam para dormir, pois Thayala não gostava de viajar durante esse período. Mas pouco depois do nascer do sol, todos estavam de pé para a jornada.

    Na metade do segundo dia, alguns homens e mulheres se aproximavam de Thayala enquanto sentada à beira de um lago, ela se refrescava molhando o rosto, o pescoço e os cabelos. Eles queriam montar um vilarejo ali próximo porque achavam o local muito bom e consideravam uma ótima oportunidade de recomeçar.

    No entanto, a ceifadora se recusou dizendo que eles deveriam primeiro se apresentar na cidade neutra e depois da bênção do rei poderiam escolher um espaço para viver.

    — Essa região já pertence ao rei da cidade neutra e se vocês ficarem aqui sem permissão podem acabar em encrenca — ela explicou. — Além disso, com a bênção do rei também podem obter proteção e justiça.

    Alguns não gostaram da resposta, mas ninguém protestou. Uns e outros sussurravam entre si sobre a suposta liberdade se assemelhar a escravidão com senhorio diferente.

    Quando as pessoas se afastaram, Anayê se aproximou de Thayala.

    — Eles não gostaram tanto da sua resposta — ela falou.

    — Eu disse a você. Agora que não precisam mais de mim, começam a questionar as minhas ordens. Mas não importa, já estamos bem próximos de Skell.

    Ouvir aquilo deixava Anayê um pouco eufórica. Finalmente conheceria uma cidade de pessoas livres, almas desprendidas de uma vida de serviço ou obrigações. Provavelmente, seria o momento mais importante da sua vida.

    — Está empolgada para ver a cidade, não é?

    — Ficou tão na cara assim?

    — Esses seus olhos grandes não sabem disfarçar por nem um momento — Thayala molhou o pescoço com um pouco de água.

    O sol ainda estava quente, mas já havia passado de seu ponto mais árduo.

    — Vivi minha vida inteira dentro daquela fortaleza, é difícil não se empolgar por estar tão longe daquela realidade.

    — Entendo sua euforia, também estaria assim se tivesse passado pelo mesmo. A alegria da liberdade é um sentimento genuíno. — A ceifadora despiu os sapatos e levantou a barra da calça. — Mas não podemos deixar a alegria nos tornar ingênuos. Por isso, preciso te dizer, os reinos livres não são tudo de bom.

    Ela fez uma careta de satisfação quando a água morna tocou seus dedos. Em seguida, continuou:

    — Sim, as pessoas são mais livres e não precisam necessariamente trabalhar para um tirano como Astaroth, porém, também temos nossas tristezas e complicações desse lado.

    Anayê duvidava de qualquer adversidade do reino livre. Nada podia se comparar ao inferno da fortaleza do lorde sombrio.

    — Aberrações também atacam, pessoas morrem, mercenários capturam inocentes, ladrões roubam e pilham, piratas destroem quando menos se espera. Os reinos livres não estão livres de maldades e desgraças.

    — Mas nada disso se compara com ser escrava de um tirano.

    Thayala assentiu.

    — Você tem razão de estar alegre, garota violeta, só não deixe essa alegria te cegar ao ponto de não perceber a verdade. Assim como existe uma propaganda exagerada sobre a maldade de Astaroth, também existe uma a respeito da liberdade nos reinos livres.

    — Vou… tomar cuidado.

    — Para o seu próprio bem, é bom que sim.

    Thayala secou os pés, calçou os sapatos e deixou Anayê contemplando o lago quieto diante dos raios do sol.

    Ao fim da tarde, encontraram uma estrada pavimentada e cruzaram com uma família em uma carroça. Os membros dela olharam para eles como se fossem uma peste e nem se dignaram a dirigir a palavra.

    Acamparam fora da estrada naquela noite. Segundo Thayala, era perigoso acampar nas estradas. Por causa dessa desconfiança, mantiveram os turnos de guarda durante a noite.

    Anayê sempre ficava algum tempo com Boyak antes de ir dormir. De certa forma, ele era a única pessoa com quem tivera uma relação normal, sem obrigações, regras ou hierarquias. Boyak não a tratava como escrava, não a olhava de cima ou com desdém. E, mesmo sendo um desconhecido, fora a primeira pessoa a tratá-la como humana. Por isso, ela se sentava ao seu lado e desejava sua rápida recuperação.

    Anayê não era uma pessoa religiosa porque a única religião durante a escravidão era Astaroth. Na fortaleza, ninguém podia orar ou fazer preces para outro senão o lorde sombrio. Toda a adoração e devoção pertenciam a ele. Devido a essa obrigação, a moça nunca pensou direito sobre divindades ou qualquer coisa do tipo.

    Entretanto, ao ouvir Boyak anunciando que seu poder era emprestado de um Deus, uma fagulha de curiosidade se acendeu nela. Trabalhar em nome de uma divindade para ajudar os outros parecia uma boa causa e parecia um bom Deus para se ter ao lado.

    Enquanto observava o ceifador deitado e inconsciente, sussurrava uma prece em sua mente pedindo que o Deus de Boyak cuidasse dele. Não tinha nenhuma noção se aquela entidade ouvia orações ou se precisava ter algum requisito para pedidos, ela só pedia e esperava ser atendida.

    — Isso é difícil, sabia?

    Anayê levou um susto e se virou para trás encontrando a figura esbelta de Thayala na porta da tenda  com uma pêra nas mãos.

    — Ah! É você? Eu levei um susto.

    A ceifadora pareceu se divertir com a situação dela. Entrou e se sentou ao seu lado. Anayê segurou as pernas com as mãos aproximando o queixo dos joelhos.

    — Não quis assustar — disse.

    — Tudo bem.

    As duas fitaram o corpo de Boyak iluminado por uma vela.

    — O que você disse quando chegou? — Anayê perguntou.

    — Alguém se preocupar com um ceifador — respondeu. — É difícil de acontecer.

    Anayê franziu o cenho, incrédula, e Thayala continuou como se adivinhasse seu pensamento:

    — Na maioria das vezes, as pessoas acham que nós somos invencíveis e soberanos. Nunca cogitam em nos ajudar ou auxiliar, quanto mais se preocupar com nosso bem-estar.

    — Hã… do modo como conheci Boyak, nunca passou pela minha mente vê-lo nesse estado.

    — Faz sentido — a ceifadora concordou. — Talvez uma parte da culpa seja nossa também, na forma como nos apresentamos. Se a gente se mostrasse mais humano, provavelmente as pessoas se preocupariam mais conosco.

    Anayê assentiu devagar.

    — Mas existem aqueles que nos odeiam, nos rejeitam e nos veem como aberrações — confessou Thayala. — Há lugares, até mesmo aqui nos reinos livres, em que não somos aceitos ou bem-vindos.

    — Por quê?

    Thayala deu de ombros.

    — Diversos motivos. Às vezes, políticos e reis agem em prol de si mesmos e não de outros. E, às vezes, os interesses deles se chocam com os nossos.

    Anayê entendia um pouco disso, afinal viera de um sistema de governo onde um imperador mandava e desmandava. Apenas os interesses de Astaroth eram válidos.

    — Em outras situações, as batalhas contra aberrações saem do controle, destroem vilarejos e pessoas morrem. Então, mesmo promovendo a destruição das criaturas, somos culpados pela bagunça.

    — Isso não parece justo.

    — Geralmente, as coisas não são. A linha entre a justiça, a paz e a liberdade são muito tênues. Nem tudo que é justo gera uma paz imediata, nem toda a paz gera liberdade e nem toda a liberdade é justa.

    Anayê permaneceu calada, sorvendo aquelas palavras em sua mente.

    — Mas, às vezes, basta ter alguém que se preocupe — Thayala disse e tocou o ombro da garota. — No caso desse cabeça oca, isso é suficiente.

    A ceifadora se levantou, comeu um pedaço da pêra e abriu a porta da tenda. Porém, sua saída foi interrompida por um questionamento.

    — Thayala, posso te perguntar uma coisa?

    — Sim.

    — Por que você foi para o reino de Astaroth?

    — Boyak e eu fomos treinados pelo mesmo mestre — ela explicou. — Quando nosso mestre ficou sabendo da viagem de Boyak ao reino maldito, mandou me chamar para trazer o cabeça oca de volta.

    A ceifadora pausou como se pensasse em algo, depois falou novamente:

    — Eu deveria ter vindo logo, porém, não queria ser mais a ama de leite do Boyak. Eu só vim realmente porque o mestre exigiu… — o tom se encheu de pesar. — Talvez se eu tivesse vindo antes… Não sei se sinto pena desse tolo ou se deixo a raiva me tomar. Se ele ouvisse o mestre, nada disso teria acontecido.

    — Se ele ouvisse seu mestre, eu não estaria aqui — Anayê falou com uma firmeza que surpreendeu até a si mesma.

    Thayala também ficou admirada com a resposta.

    — Nem eu e nem todas essas pessoas — a moça terminou.

    A ceifadora esboçou um sorriso tímido e então saiu da barraca.

    Nota