Capítulo 24 – O Desabafo do Ceifador
por NaorEsperaram até a tarde pelo retorno de Thayala.
De início, continuaram fazendo suas atividades rotineiras de acampamento, limpar, caçar alguma comida e conversar a respeito de seus planos.
Porém, conforme o tempo avançou, suas atividades foram substituídas por uma pequena preocupação, pois Thayala ainda não voltara.
E, quanto mais o tempo passava, mais eles eram dominados pela sensação de inquietação.
O pandemônio se iniciou com uma ou duas pessoas compartilhando seus medos. E depois um grupo se uniu ao outro e novos se foram se formando.
De repente, compartilhar anseios se tornou uma discussão sobre qual atitude tomar. Vozes tomadas de razão aumentavam o volume conforme o conflito surgia. A conversa havia virado uma desavença.
Alguns queriam arrumar suas coisas e partir, pois acreditavam estar sendo alvos de uma armadilha. Outros pensavam que Thayala fora presa por ajudá-los e um terceiro grupo queria esperar para ver.
Erlik fizera tudo a seu alcance para acalmar o povo. Ele nunca tinha imaginado que controlar vinte pessoas fosse tão complicado e difícil. E, mesmo não querendo admitir, com o avanço da confusão, ele previa uma briga a qualquer momento, mas pedir calma ou falar de modo controlado não funcionava.
Por anos, a linguagem daqueles pessoas tinha sido a ignorância, agora elas pareciam ter incorporado seus algozes. Gritando e procurando impor suas vontades aos outros.
Anayê se reservou ao direito de permanecer calada junto à barraca de Boyak. O ceifador parecia ter esgotado toda a sua energia na conversa da manhã e havia dormido durante toda a tarde. Ela estava feliz de vê-lo se recuperando, ainda mais depois de saber da verdade. Não gostava nada de pensar no esforço de Boyak na cidade dos portões de ferro, mas se sentia extremamente feliz por ter se encontrado com ele. No fim, parecia muita sorte ter escapado da fortaleza e se deparado justo com um ceifador.
Contudo, observar como as pessoas estavam lembrando os maggs na fortaleza de Astaroth, fez um sentimento de tristeza tomar seu coração. Uma nova percepção de sua realidade a atingiu, a escravidão não era apenas uma tortura, era um estilo de vida. Os costumes impregnavam e se agarravam às suas atitudes sem nem perceberem.
Não agiam como maggs por querer, mas porque viveram tanto tempo naquela realidade que agora replicavam-na.
Anayê imaginou quais eram suas atitudes e vontades de verdade e quais eram frutos da vida na fortaleza. Parecia uma questão complicada de resolver. Uma pessoa era feita apenas de suas experiências e realidade de vida? Se fosse, então eles estavam fadados a replicar os erros de seus algozes.
Esse pensamento fez sua alma congelar. Seria possível agir como um magg mesmo repudiando suas atitudes?
Ela lembrou de quando colocara uma faca no pescoço de uma criança. De certa forma, agira por impulso, mas também havia replicado o típico método violento de resolver as coisas, assim como os maggs faziam. Ela não gostou de se ver dessa forma, porém, não rejeitou totalmente essa percepção.
Enquanto pensava, ela não viu Boyak se aproximar com dificuldade e quase cair sem o apoio da barraca.
— O que está fazendo? — ela indagou, ajudando-o a ficar de pé.
— Ele vai precisar de uma mãozinha. — Apontou para Erlik.
Anayê estreitou os olhos.
— Se essas pessoas se dispersarem agora, muitas vão morrer por aí — Boyak explicou ao perceber a dúvida da moça. — A melhor escolha para elas agora é ficar na cidade neutra. Trabalhar um pouco, entender o mundo a sua volta e só depois disso procurar seu próprio lugar.
— Você deveria ficar repousando.
— Os problemas não descansam, Anayê. É meu dever ajudar as pessoas, mesmo que seja pouco.
— Você não vai poder ajudar se estiver morto — ela repetiu a frase.
— Eu vou ficar bem, só me ajude a chegar lá.
Inconformada, ela passou o braço dele pelo seu pescoço e começou a dar passos curtos na direção de Erlik.
— Thayala vai te matar quando souber — ele brincou.
Ela fez uma cara de cínica e continuou auxiliando o teimoso ceifador.
Uma mulher debatia com Erlik quando eles se aproximaram. Ela repetia várias vezes que Thayala não ia voltar enquanto outra mulher dizia para lembrarem das ações anteriores da ceifadora e do quanto ela era poderosa.
— Calem a boca, seus tolos! — Boyak vociferou com um timbre de voz que surpreendeu Anayê.
Todo mundo olhou-o com assombro ou raiva.
— Quem é você? — a primeira mulher, alta e magricela, perguntou.
— Esse é o destruidor da torre do maquinário — Erlik falou com entusiasmo.
Seu semblante denunciou o quanto ele havia ficado aliviado por Boyak ter aparecido.
Mas os outros fitavam o ceifador com desconfiança e desdém.
— Esse homem derrubou a torre? — a mulher desnutrida questionou, incrédula.
— Ele também é um ceifador — Anayê anunciou.
— Eu nunca vi um ceifador nessa situação — alguém na multidão falou.
— Você nem tinha visto um ceifador até alguns dias atrás — replicou Erlik.
Mais pessoas se juntaram à discussão como urubus em volta de uma carcaça.
— E só porque você falou eu devo acreditar?
Boyak soltou uma gargalhada chamando a atenção de todos. Sua risada de zombaria se transformou em uma tosse aguda calando até mesmo os burburinhos.
— Vocês são mesmo uns idiotas. — Tossiu outra vez. — Acabaram de conquistar a liberdade e o que estão fazendo? Discutindo uns com os outros.
Alguns abaixaram a cabeça envergonhados. Boyak se esforçou para apontar o dedo e disse:
— Foi essa atitude que os manteve escravos por tanto tempo. As suas divisões patéticas fortalecem o governo dos tiranos. Enquanto nos dividimos, eles ficam mais fortes.
Baixou o dedo. Poucos ainda tinham a ousadia de encará-lo.
— A nossa divisão é por conta de… — alguém começou a dizer, mas foi interrompida por um grito do ceifador.
— Cale a boca! Cale a maldita boca!
Boyak deu dois passos se desvencilhando dos braços de Anayê. Sustentou os pés com toda a pouca força.
— Nós lutamos, fizemos escolhas e sacrifícios para poder garantir alguma liberdade para vocês. E não é assim que vocês vão agradecer! Thayala não merece. Não pensem nem por um momento que teriam conseguido sozinhos… Vocês sabem a verdade, sabem de sua incapacidade — ele suspirou por um instante considerando suas palavras. — E estão provando isso agora. Ao invés de esperarem juntos, de manterem a esperança… Nós, os ceifadores, estamos carregando a tocha da esperança por muito tempo, mas chegou a hora de vocês também assumirem esse fardo.
Olhou cada um demoradamente. Ninguém ousou tomar a palavra e nem sustentavam o olhar.
— Eu não fui até a torre do maquinário para libertar alguns idiotas. Fiz isso por pessoas que querem acreditar em esperança, em dias melhores. Que há uma saída mesmo no inferno. Se estão aqui agora, vocês precisam ser essas pessoas. Porque estou cansado dos idiotas.
E cessou seu discurso. Anayê ajudou-o a voltar para sua tenda tão abalada com as palavras quanto os outros. Sentia a frágil respiração dele e o quanto se esforçara para falar daquela maneira.
E, depois deles, um a um, todos retornaram para suas barracas e esperaram.
#3#
Boyak dormiu.
Anayê ainda achava estranho como ele podia ser tão autoritário às vezes, como podia assumir o comando de repente, sem dificuldade. E, ao mesmo tempo, era aquele descontraído e engraçado sujeito.
Tentava imaginar quais as situações que haviam moldado a sua personalidade. Suspeitava que a alegria dele era apenas um disfarce para um trauma mais profundo. Porém, guardou aquilo para si.
Finalmente, ouviu um burburinho lá fora e correu para verificar.
Thayala tinha retornado. Ela viera montada no cavalo, mas sem ser escoltada pelos soldados. Também trouxera alguns sacos de frutas e jarros de água na montaria.
Contudo, a multidão se aproximou dela com mais respeito e temor, aliviados pela sua volta.
— Aqui nos reinos livres é costume presentear os convidados com comida — a ceifadora comentou. — Celebrem, recém libertos, o rei Berull irá aceitá-los em sua cidade.
O semblante de todos se iluminou com a notícia.
— Ele prometeu acolhê-los e dar-lhes terra para plantarem e viverem, caso queiram.
Os burburinhos de alegria se espalharam pelo acampamento. Até mesmo Anayê se permitiu sorrir com um misto de curiosidade e satisfação invadindo seu ser.
— Para isso, vocês deverão se registrar como cidadãos da cidade neutra e reconhecer Berull de Skell, como seu rei e soberano. — Thayala desmontou do animal. — Amanhã eu mostrarei o local onde devem se registrar, mas por hoje, comemorem.
Então ela distribuiu a comida e a água, e todos compartilharam uma tarde tranquila comentando suas expectativas e planos.