Uma carruagem com dois cavalos, um cocheiro gordo e o estandarte da cidade neutra veio buscá-los. E, embora Boyak dissesse para Thayala ficar, a ceifadora estava obstinada em entregá-lo diretamente ao mestre nas Colinas Verdes.

    Além disso, o rei Berull enviara comida atendendo ao pedido do ceifador. Vieram torta, pão, queijo, frutas e doce de abóbora, uma receita típica da região.

    E assim, partiram os dois ceifadores e a ex-escrava.

    Se tudo corresse bem, a viagem duraria dois dias e meio, e estariam ao pé das Colinas Verdes ao fim do segundo dia.

    A decisão de Anayê de se tornar uma ceifadora não tinha sido questionada ou discutida. Boyak apenas ressaltara que ela encontraria uma forma de se livrar da runa de Astaroth lá.

    Já para Thayala, a escolha da escrava fora uma surpresa. Ela não conhecera ninguém até então que, após passar por um inferno, gostaria de voltar para ele. As pessoas geralmente queriam pouco ou nenhum contato com aberrações depois de se verem livres delas. Mesmo assim, a ceifadora guardou aquelas conjecturas para si e fez um meneio de cabeça para a jovem.

    Anayê não pensava muito sobre a decisão, apenas aceitara o fato de odiar ficar de braços cruzados quando algo acontecia. Depois de ver Boyak e Thayala, tão poderosos e independentes, seu desejo por se tornar uma ceifadora havia florescido na terra fértil de sua fraqueza.

    Naquele momento, ela ainda não considerava o quanto aquilo era perigoso, e nem que poderia acabar morta por uma aberração.

    Partiram de manhã. O sol refulgia forte e claro tornando a vista das florestas do reinos livres, um deleite. Dentro da carruagem, Boyak estava impaciente. Cruzava as pernas e braços, olhava pela janela, bebia água, cochilava e acordava, de vez em quando beliscava o braço de Thayala na intenção de provocá-la e ela acertava-lhe uma cotovelada.

    A ceifadora voltou a lembrar-lhe do repouso e ele deu de ombros.

    Anayê vislumbrava a paisagem com atenção maravilhada. Tanto verde, tanto azul, tantas cores. Conseguiu ver animais pequenos, répteis, cavalos e aves. Aquele lugar exalava vida.

    Como era bom respirar o ar limpo, estar com roupas novas e desfrutar da companhia de pessoas tranquilas. 

    Thayala ou Boyak apontavam as direções onde se localizavam vilarejos ou pequenas cidades. Para eles, a experiência era comum, contudo, enxergavam nos olhos púrpuras da jovem ex-escrava como o cotidiano importava para aqueles que viviam no inferno.

    O ceifador também contou sobre uma luta contra uma aberração com a cabeça de touro e corpo de humano. Tal confronto se desenrolara nas planícies coloridas, lugar ocupado por plantas e gramas multicoloridas.

    Às vezes, cruzavam com andarilhos, viajantes e soldados na estrada. E não era tratados de forma desdenhosa como aconteceu antes, mas todos viam o estandarte da cidade neutra e logo os cumprimentavam.

    Boyak descobriu que o cocheiro gordo e careca se chamava Ziron, e aquela era sua primeira viagem a serviço do rei Berull.

    Pararam ao meio dia para uma refeição e descanso do cocheiro. Próximo deles, havia uma clareira com um altar de pedra ao lado de uma estátua com rosto de mulher, grandes asas de águia nas costas, clava na mão direita e garras nos dedos dos pés.

    — Malvínia, a senhora da guerra dos aldeões do rio Estreito — Boyak explicou percebendo a curiosidade no rosto de Anayê. — Eles dizem que ter uma representação dela na estrada dá boa sorte.

    — É verdade? — ela perguntou.

    — Mera superstição.

    — Entendo… Mesmo assim, é um belo trabalho. — disse admirando a escultura.

    Eles voltaram para terminar a refeição.

    Anayê riu ao ver Boyak roubando um pedaço de pão da mão de Thayala quando ela estava distraída. Por essa atitude, ele levou um soco que deixou o olho inchado e roxo.

    E então continuaram.

    Na metade da tarde, estavam cansados, tanto pelo chacoalhar da carruagem quanto pelo calor.

    Então, finalmente, encontraram uma estalagem que ficava na bifurcação das estradas para a cidade de Zovig e Brakivad.

    A estalagem era feita de pedra, iluminada por lampiões e velas, com o andar térreo dedicado a um bar loteado por mesas, cadeiras e cheiro de óleo, cerveja e feijão. Uma miniatura da estátua de Malvínia ocupava o fundo do estabelecimento.

    Eles jantaram. O dono do local havia separado dois quartos no andar de cima onde poderiam dormir.

    Boyak e Ziron, o cocheiro, ficaram em um, Thayala e Anayê em outro.

    *****

    Na calada da noite, um grupo de seis ladinos entrou na estalagem. Os homens usavam capuz, calças e camisas pretas.

    A porta fora aberta por Ziron que também apontou o quarto aonde seu companheiro dormia.

    — Silenciosos e rápidos — sussurrou.

    Eles deixaram as adagas à mostra e entraram sorrateiramente no quarto. Se posicionaram três de um lado e três do outro lado da cama.

    Porém, só então notaram a falta do alvo. Boyak não estava deitado.

    Voltaram-se rapidamente para o corredor e fizeram um sinal para Ziron. O cocheiro lançou um olhar de desentendimento e entrou no quarto. Percebeu a janela aberta e olhou através dela.

    Atrás da estalagem, o ceifador fazia flexões com dificuldade, suando picos e respirando alto.

    Ziron apontou o alvo para os ladinos. O plano era pegá-lo dormindo, assim não teria chance de reação. Porém, agora notava a fraqueza e cansaço do ceifador, e tinha certeza de que ele não seria forte para enfrentar seis homens de uma vez.

    Talvez antes das ruínas sim, mas Ziron obtivera a informação das restrições recentes do ceifador. Nada de fluido de oração. Isso seria o bastante. Contudo, Boyak estava fraco, se recuperando da sua batalha árdua na cidade dos portões de ferro. Era a oportunidade perfeita para acabar com ele.

    Os assassinos desceram com passos apressados e macios, saíram pela porta e alcançaram os fundos do estabelecimento num instante.

    Boyak estava secando a testa com as costas das mãos quando os viu chegando. Ele franziu o cenho.

    Os homens pararam a poucos metros dele.

    — Ora, ora, ora, companhia para o treinamento? — ironizou.

    O bando nada disse. Se preparou para atacar.

    A lua, tímida entre as nuvens, reluziu uma das lâminas.

    — Belas adagas — o ceifador elogiou. — Afiadas recentemente?

    Nenhuma resposta.

    — O que disseram para vocês? Ele está fraco, essa é a hora de matá-lo — fez uma voz mais grossa, teatral.

    Eles hesitaram. O desdém na voz e na postura do ceifador fez uma dúvida se aninhar em suas mentes.

    Eram assassinos treinados para matar humanos. Reis, rainhas, princesas, chefes de vilas, fugitivos e até crianças. Mas nada sobrenatural e nem desumano, ainda mais ceifadores. Porém, haviam sido assegurados de que seu inimigo estava debilitado e não poderia causar-lhes nenhum mal.

    No entanto, o ceifador parecia bem e muito confiante. Seus olhos refletiam uma confiança avassaladora.

    — Acho que vocês foram feitos de tolos — Boyak se limpou a roupa e deu um passo à frente.

    Os assassinos recuaram por instinto. Percebendo a situação, o ceifador levantou os braços e sorriu.

    — Calma, pessoal, não vou fazer nada com vocês. Basta me dizer quem é o mandante desse ataque sorrateiro.

    Eles hesitaram.

    — Ou então eu posso obrigar vocês a me contarem. Que tal?

    Os ladinos não se moveram, as adagas firmes nas mãos, as pernas afastadas, a respiração num suspirar constante.

    Boyak sustentou o olhar e a pose. Naquele momento, precisava contar com sua autoconfiança para se livrar da armadilha.

    Era verdade que não tinha forças, debilitado, longe de sua principal fonte de poder. 

    Só podia contar com sua astúcia e orgulho, e torcer pelo poder do nome dos ceifadores.

    — E então — ele apressou. — Qual é a decisão de vocês?

    Não poderia se sustentar por mais tempo. Todos os músculos do seu corpo doíam.

    — Oscari — um deles falou. — O conselheiro do rei.

    Boyak ficou surpreso, mas tentou da melhor maneira não deixar isso transparecer.

    — Vão — ele falou.

    E todos desapareceram na estrada como sombras vivas.

    Num canto, escondido pelas sombras, Ziron praguejou em silêncio e voltou para seu quarto.

    O ceifador se segurou por mais alguns instantes antes de sentar no chão. As pernas doloridas queimando, os ombros protestando de dor.

    De repente, o som de palmas. Ele olhou para cima e viu Thayala na janela.

    — Nunca assisti um ceifador atuar tão bem — ela zombou.

    Ele quase não tinha fôlego para conversar. Ficou satisfeito por serem inimigos racionais ao invés de aberrações animalescas. Não era possível enganar os demônios tão facilmente.

    Thayala saltou da janela até o chão e veio em sua direção.

    — Onde está Anayê? — ele perguntou entre suspiros.

    — Dormindo tranquilamente.

    Boyak assentiu.

    — Quer dizer que Oscari vendeu a sua cabeça? — a ceifadora falou. — Eu não tinha gostado daquele sujeito mesmo.

    — Não é a primeira vez que um conselheiro pede a minha morte — Boyak conseguiu falar devagar.

    — Mas é a primeira vez que vejo alguém escapar da morte apenas com pose e lábia.

    — É porque você não anda muito comigo — ele riu.

    Sentiu uma dor forte no pulmão e fez uma careta.

    — Você precisa parar de fazer as coisas de modo improvisado.

    — Desse jeito é mais divertido.

    — Vai acabar morto.

    Ele soltou um longo e demorado suspiro.

    — Só depois de completar minha missão.

    Ficaram algum tempo em silêncio sob o brilho da lua.

    — Oscari enviará outros — foi Thayala quem falou primeiro.

    Boyak deu de ombros.

    — Por que ele deseja sua morte?

    — Não sei. E não me interessa. A política nunca me empolgou.

    — Tá achando que ele quer te matar por causa da política?

    — Com certeza, a política da boa vizinhança com Astaroth. A mesma diplomacia que fez o rei Berull me expulsar de Skell.

    Thayala colocou a mão no queixo e seguiu o raciocínio em voz alta:

    — Enviando a cabeça do ceifador responsável pelos problemas recentes na fortaleza, ele teria a boa vontade do lorde sombrio.

    Boyak concordou.

    — Eles estão tão acomodados em seu mundinho “feliz” — a palavra feliz saiu de seus lábios carregada de ironia. — Que não se importam de fazer aliança com o autor das barbáries fora de sua cidade.

    — E o que você vai fazer a respeito disso?

    Ele se levantou, esticando as costas.

    — A política não me interessa. Meu objetivo é destruir Astaroth. Se isso abala o mundinho feliz desses hipócritas, então vou continuar batendo até seu mundo de mentira se tornar um punhado de cinzas.

    Nota