Capítulo 28 - Engano
Enquanto Boyak e Thayala conversavam, Ziron acordou o dono da estalagem. Com algumas moedas de ouro, comprou o silêncio do homem e também encontrou um garoto para levar uma mensagem até Skell, diretamente para Oscari.
O garoto saiu apressado num cavalo rumo a cidade neutra e só depois disso Ziron voltou para o quarto e dormiu.
***
A manhã chegou e um novo dia de viagem sucedeu.
Anayê estava por fora dos acontecimentos da noite anterior e os dois ceifadores combinaram de deixar assim por enquanto.
O segundo dia estava incrivelmente maravilhoso para Anayê e terrivelmente tedioso para Boyak.
Para a surpresa deles, uma roda da carruagem se quebrou no caminho.
Ziron tentou um conserto, mas a gambiarra não durou e o veículo voltou a parar.
O cocheiro precisou retornar à estalagem para ver se encontrava ferramentas para consertar a roda enquanto Anayê, Thayala e Boyak ficaram esperando.
Os ceifadores se olharam desconfiados quando o homem gordo partiu.
Os três estavam deitados na grama aproveitando o vento fresco quando a voz da ex-escrava soou.
— Huum… é… posso perguntar uma coisa?
Os dois ceifadores olharam para a moça com a mão levantada.
— Sim, eu sou solteiro — Boyak falou, zombeteiro.
— Patético — bufou Thayala.
Ignorando, Anayê continuou:
— Deveria ter perguntado antes, mas como se faz para virar um ceifador?
— Achei que não fosse perguntar — Thayala disse, endireitando-se.
No momento da decisão, ela não havia sequer ponderado essas questões.
— Primeiro, todos os seus ossos serão quebrados — Boyak explicou. — Para que a sua estrutura consiga suportar o fluido de oração.
Anayê mirou-o um pouco surpresa.
— Depois vai carregar uma pedra em cada parte do corpo para aumentar a sua resistência e, por fim, uma leve operação nos olhos, nos ouvidos e nas narinas, para enxergar, ouvir e sentir o cheiro das aberrações.
Thayala deu-lhe uma cotovelada logo em seguida.
— Cala essa boca, vai assustar a garota.
Boyak sorriu.
Anayê soltou um suspiro. Julgou-se uma boba por ter acreditado no ceifador. Não era típico dele ser assim?
— O mestre poderá te explicar os pormenores, mas a princípio, irá treinar seu corpo e sua mente para torná-los uma só coisa.
— Essa parte é bem chata — Boyak comentou.
— O fluido de oração potencializa as capacidades do seu corpo e da sua mente, mas uma mente fraca sabota um corpo e um corpo despreparado atrapalha a mente — Thayala apontou para a cabeça.
Anayê se sentou, levando toda a sua concentração para as palavras da ceifadora.
— Você precisa estar decidida — Boyak disse. — Coloque o seu objetivo em mente e não deixe-o escapar. Só assim a sua mente se tornará tão firme que não se quebrará com nada.
Os olhos púrpuras da ex-escrava se fixaram nele como se tivesse acabado de dizer algo do qual sua vida dependia. E, na verdade, realmente havia.
— Não se torna um ceifador da noite para o dia. É preciso ser lapidado aos poucos, mas quando menos esperar, você será uma de nós — explicou Thayala.
— E onde ficarei durante esse tempo?
— Isso não será um problema. O mestre encontrará um jeito de acomodá-la, hospitalidade nunca foi dificuldade para ele — a ceifadora falou.
— Esse mestre de quem tanto falam. Como o conheceram?
Thayala colocou as mãos atrás da cabeça enchendo-as dos cabelos cacheados, mas foi Boyak quem tomou a palavra primeiro:
— O mestre me comprou de um grupo de piratas no porto da Fenda Profunda quando eu tinha apenas dez anos.
Anayê estreitou os olhos.
— O que você fazia com um grupo de piratas?
— Eu era um escravo do capitão. Limpava o convés e ajudava a levar bagagens. Não me recordo de nada antes disso. A lembrança do dia em que o mestre me comprou é clara porque ele fez questão de não me deixar esquecer.
— Então você cresceu sem saber quem são seus pais?
Boyak deu de ombros.
— Isso nunca fez falta. Eu dei meu jeito.
— O mestre deu um jeito, cabeça-oca.
O ceifador mostrou a língua para ela.
— E você? — Anayê apontou para Thayala.
Pela primeira vez, ela enxergou uma ponta de desconforto na ceifadora.
— Sou a segunda filha do rei das Planícies de Aço — revelou.
— Filha… de… um rei?
Ela assentiu.
— Devemos nos curvar, majestade? — Boyak ironizou.
Thayala continuou sem dar atenção:
— De acordo com a nossa tradição, era meu dever ser guardiã da minha irmã. Por isso, meu pai me enviou para treinar com o mestre das Colinas Verdes com a intenção de que eu fosse uma guardiã e ceifadora particular.
— O povo dela considera o primogênito muito especial, então toda a vida dos outros irmãos gira em torno do primeiro filho — Boyak comentou com mais especificidade.
— Isso é estranho — comentou Anayê, mas olhou para a ceifadora. — Me desculpe.
— Esqueça.
Um silêncio repentino se instaurou por poucos momentos até Anayê tomar a palavra.
— Então você deixou a guarda da sua irmã para nos resgatar?
— Não.
Uma dúvida transparente pairou sob o rosto da ex-escrava.
— Quando minha irmã se casou e assumiu o trono das Planícies de Aço, ela me libertou dessa obrigação. Ela queria me ver seguindo meu próprio caminho — havia certa culpa no tom de voz de Thayala, mas apenas Boyak notou. — Então eu voltei para as Colinas Verdes em busca de orientação.
— A sua irmã… ela foi muito boa com você.
De alguma forma, Anayê desejava que seu irmão tivesse agido do mesmo jeito.
— Se nosso pai estivesse vivo, não aprovaria — Thayala retrucou rapidamente. — Treinei a minha vida inteira para proteger a vida dela. Eu realmente não sei fazer outra coisa.
— Certo, você é um pouco incompetente, mas não precisa se desvalorizar tanto — Boyak disse com a voz possuída de zombaria.
Antes que Thayala pudesse responder, Anayê assumiu a fala:
— Isso não é verdade.
Os dois ceifadores olharam para ela. Havia autoridade em sua voz.
— Você guiou aquele pessoal sozinha e veio ao nosso encontro no momento exato. Depois conseguiu um trato com o rei Berull e arrumou um caminho para toda aquela gente. Não percebe o quanto isso é valioso?
Thayala abriu um sorriso tímido e assentiu.
— Ok, ela vai nos fazer chorar — Boyak falou.
— E você sempre estraga tudo!
Pam! A cabeça do ceifador foi atingida por um cascudo vindo da ceifadora.
— Ai! Ei, eu estou me recuperando.
***
Esperaram durante o dia inteiro.
Quando a tarde despontava, começaram a discutir se deveriam voltar para a estalagem à procura de Ziron. Thayala tinha certeza de que era uma armadilha e Boyak concordava, mas mesmo assim, desejava entrar na confusão.
Depois ele foi convencido de sua condição ainda debilitada. Decidiram prosseguir para as Colinas Verdes. Na caminhada, alcançariam o destino em um dia e meio.
Anayê não compreendia como alguém poderia querer a morte de Boyak. Parecia a coisa mais absurda do mundo todo. Mesmo com a explicação de Thayala sobre a ameaça de uma retaliação de Astaroth, ela não concebia a ideia de uma tentativa de assassinato de um ceifador.
Assim prosseguiram até a lua encher os céus ao lado das estrelas. Pararam e fizeram uma pequena fogueira. Alguns alimentos ainda haviam ficado com eles, porém, a maioria tinha sido levado por Ziron, por isso, precisaram racionar.
No dia seguinte, prosseguiram na jornada. O terreno era bom de caminhar com locais planos e cheio de uma brisa reconfortante.
Quando pararam para comer ao meio-dia, Thayala soltou uma praga enquanto vasculhava a sacola de comidas. Boyak e Anayê olharam-na com espanto.
A ceifadora segurou um objeto redondo, verde, do tamanho da palma de sua mão, repleto de inscrições esculpidas.
— Um objeto profano? — Boyak indagou cerrando os olhos.
— Aquele maldito cocheiro!
Thayala lançou o item no chão e o esmagou com uma pisada.
Anayê assistia a tudo cheia de dúvidas, aguardando o momento das perguntas.
— Se eu colocar as mãos nele… — Thayala grunhiu.
Boyak se ajoelhou ao lado do objeto destruído e analisou por alguns momentos antes de voltar e sentar ao redor da fogueira de novo.
— O que é isso? — finalmente a moça perguntou.
— Um objeto profano é usado para atrair aberrações. Geralmente, utilizamos na caça a algumas bestas mais complicadas de encontrar. A energia no objeto é como néctar para várias das feras, elas não conseguem resistir.
Anayê não ficou muito feliz com a informação.
— Ziron colocou o item na sacola de alimentos para confundir a percepção de Thayala — ele explicou. — Dessa forma, uma aberração poderia vir até nós sem percebermos.
— Ah, agora entendo porque ela está zangada.
Thayala estava vasculhando o restante da sacola para verificar se o cocheiro não deixara mais nenhum truque.
— Será que atraímos alguma aberração? — Anayê perguntou.
— Isso é difícil de saber, mas se havia alguma delas por perto, é fato que virá em nosso encalço.
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