Pouco antes do pôr-do-sol, Anayê já enxergou um conjunto de três colinas altas e largas se sobressaindo na paisagem plana. Lá estava seu destino. Sentiu um leve frio na barriga pensando nos desafios à frente. Não conseguiu conter um sorriso no rosto.

    Fizeram a parada novamente. Não haviam tocado no assunto do objeto profano, embora seus semblantes demonstrassem um pouco de preocupação às vezes. 

    Anayê também havia entendido que apenas portar o objeto não era um problema, pois seu efeito real estava em quebrá-lo ou trincá-lo, assim um cheiro captado pelas aberrações se espalharia e poderia atrair alguma próxima.

    Anayê também percebera a movimentação mais atenta de Thayala. A ceifadora olhava para os lados com mais frequência.

    Thayala caçou um pequeno coelho e fizeram um jantar improvisado na fogueira.

    — Não consigo acreditar que aquele safado do cocheiro estava envolvido nessa trama — a ceifadora reclamou mastigando um pedaço da carne do animal. — Oscari é um diplomata, então você já espera o pior deles.

    — Esqueça isso — disse Boyak. — Não podemos mudar o passado. Pensar nessa situação não trará nenhum benefício.

    — Disse a pessoa que arrebentou um ladrão na porrada.

    — Aquilo foi um caso diferente. Ele havia roubado uma família depois de terem perdido tudo para uma tempestade.

    — Então estarei livre para bater no Ziron se uma aberração nos atacar?

    Boyak lançou-lhe um olhar de ironia.

    — Não me olhe assim. Essa não é a sua lógica?

    — A minha lógica é nunca negar uma boa surra a um ladrão.

    Thayala soltou uma risada sarcástica.

    — Então um ceifador pode bater em um civil? — Anayê perguntou, se intrometendo na conversa.

    — Segundo Boyak sim.

    — Eu nunca disse isso.

    — Vamos ver — ela começou a contar nos dedos — Surrou um comerciante que enganou uma cega, um homem que agrediu a esposa, um diplomata que humilhou um mendigo, bem esse último até concordo. Huumm… Quer que eu continue?

    — Todos esses casos são exceção — ele se defendeu erguendo os braços.

    — E todos as outras centenas de situações também, não é? Admita, Boyak, para você o ditado a ocasião faz o ladrão se encaixa perfeitamente. Por que esperar pela justiça do reino? Deixe-me aplicar um pouco da minha própria justiça. E ainda reclama porque não é bem vindo em algumas cidades dos reinos livres.

    — O lado ofendido nunca reclamou do modo como faço as coisas, apenas os diplomatas engomados.

    — Você não é bem vindo em algumas cidades? — Anayê quis saber, surpresa.

    — Inacreditável, né? — ele respondeu. — Infelizmente, nem todo mundo tem bom senso.

    — As suas contradições são inacreditáveis — Thayala falou.

    — Por que mesmo estamos discutindo isso? — ele indagou.

    Uma dúvida assomou-se no rosto de Thayala.

    — Eu sei lá — ela disse.

    — Então é melhor continuar comendo.

    — Não tente mudar de assunto, espertinho. Você estava perdendo a discussão.

    Boyak ignorou e permaneceu arrancando um pedaço da carne em sua mão.

    Entretanto, de repente, Thayala deu um pulo e ficou em pé. Exceto pela luz da fogueira, não havia iluminação em local algum, tornando impossível ver além de dez metros a frente.

    — O que foi? — Boyak estreitou os olhos.

    — Depois da batalha, vou encontrar Ziron e enchê-lo de porrada — ela falou.

    — Batalha? — Anayê repetiu. Mais para si mesma do que para os outros.

    No mesmo instante, um grito ensurdecedor preencheu todo o ar em volta deles. Imediatamente, Anayê largou sua comida e levou as mãos aos ouvidos e fechou os olhos. Mesmo assim, o som não parecia sumir ou baixar. Estava dentro de sua cabeça agudo, firme e contínuo. Ela não era capaz de se pensar em outra coisa e nem de se mover. Seu único propósito era se livrar do barulho.

    Seu corpo cedeu e ela caiu no chão, segurando os ouvidos com toda a força. Se ninguém fizesse aquele barulho cessar, seus tímpanos explodiriam. 

    Então sentiu duas mãos agarrando sua cintura. Seu corpo foi elevado e carregado para o outro lado da clareira.

    O barulho findou tão repentinamente quanto havia começado.

    Anayê abriu os olhos e enxergou Boyak.

    — Você está bem?

    Ela assentiu, embora estivesse com um zumbido no ouvido.

    Após ser devolvida ao chão, Anayê viu Thayala parada diante de uma criatura muito estranha. Tinha pele esverdeada com pintas redondas e pretas por todo o corpo, costas e joelhos curvados, braços curtos mas mãos grandes com garras.

    — É um gritador — Boyak comentou. — Eu sei, o nome não é dos mais criativos, mas é bem explicativo.

    A aberração moveu a cabeça redonda e Anayê conseguiu enxergar um corte para a abertura da boca extremamente largo, de orelha a orelha.

    — Acho bom você observar como Thayala elimina a criatura. Vai servir de aula.

    Se Anayê prestava atenção antes, dessa vez, ela ficou ainda mais atenta.

    A criatura se preparou para gritar, mas então Thayala balançou os braços e uma rajada de vento começou a se formar ao redor de suas mãos. Anayê esfregou os olhos diante da cena. O vento se moldou em seus dedos e se assemelhou a pequenas adagas.

    A ceifadora direcionou os dedos para a aberração. As adagas de vento voaram contra o gritador atingindo-o em cinco lugares. A criatura foi lançada para trás enquanto sangue brotava de seus ferimentos recentes.

    Thayala não esperou pelo contra-ataque. Girou as mãos outra vez e disparou mais adagas de vento. A aberração, entretanto, também reagiu, ignorando seu sangramento. Abriu a bocarra e emitiu um incrível grito. A potência de seu poder foi tão surpreendente que desfez as adagas de vento da ceifadora.

    Rapidamente, Thayala desviou do caminho do grito, evitando ser atingida pelo ataque.

    — O grito dessa aberração é direcional — Boyak explicou para Anayê. — Só acerta quem estiver no seu trajeto. A criatura aproveita o atordoamento de sua vítima para atacar.

    Anayê assentiu sem tirar os olhos da luta.

    Thayala usou seu golpe com as adagas de vento, mas foi frustrada pelo contra-ataque do monstro. 

    Boyak também explicou que o estilo de luta de Thayala consistia em distâncias médias, o que dificultava se a aberração continuasse repelindo seu ataque. Aberrações não costumavam se cansar facilmente, já a ceifadora tinha prazo de resistência.

    Diferente do que acontecia com Boyak, os frascos de oração não potencializavam o corpo de Thayala. Nela, o fluido funcionava de outra forma: acordava o poder de manipular um elemento da natureza, neste caso, o vento.

    E, muito embora, sua força e velocidade fossem acima de um humano comum, não eram nada comparadas à velocidade de um ceifador potencializado.

    — Ela não pode usar o Punho de Deus, por exemplo.

    — Punho de Deus?

    Boyak recordou que Anayê estava desmaiada quando precisou usar o golpe nas ruínas da lamentação.

    — Depois explico — ele respondeu.

    Ela não questionou, apenas continuou como uma espectadora atenta.

    Nenhum deles percebeu uma sombra se movendo poucos metros atrás. A silhueta estava coberta por uma capa. Era Ziron. 

    Pronto para colocar a segunda parte de seu plano em ação, o cocheiro retirou outro objeto profano do casaco e quebrou-o. Aguardou outro grito da aberração para jogar o item o mais próximo que conseguiu do grupo.

    Então cobriu a cabeça com sua capa e saiu correndo.

    Nota