Primeiro Boyak achou estar sonhando. 

    Grama sob os pés descalços, raios tranquilos de sol sob a cabeça, a vista do povoado de cima da colina. 

    Mas o cheiro de hortelã foi quem denunciou a lembrança. 

    Ele estava sentado no chão com as pernas cruzadas, as calças dobradas até o joelho e uma camisa de mangas curtas. Ao seu lado, repousado em uma cadeira de balanço de madeira, um velho com grandes sobrancelhas mastigava uma folha de hortelã.

    — Você não tem noção do que está enfrentando — o velho advertiu. — Astaroth não é como as aberrações que você enfrentou em Gluran, nenhum ceifador jamais chegou perto dele. Enfrentar seus generais e sair vivo já seria um grande feito para qualquer ceifador, mas enfrentar um dos lordes das terras sombrias e sobreviver seria um milagre.

    — Mestre, se ninguém tentar, ninguém vai conseguir — Boyak retrucou. — Deixamos Astaroth achar que é muito poderoso e, por isso, ele não se sente ameaçado. Precisamos dar um susto nele.

    — Astaroth não precisa se achar poderoso, ele é. Há mais de uma década, ninguém desafia sua soberania. Nem mesmo as outras aberrações se atreveram a desafiá-lo. E agora, você, um ceifador estúpido, quer derrotá-lo? Bah! Não me faça rir.

    — Se não puder vencê-lo, pelo menos vou assustá-lo. Astaroth vai saber que ainda existem ceifadores nesse mundo e, alguns loucos o bastante para enfrentá-lo em sua própria fortaleza.

     — Você é mesmo um cabeça-dura! — o mestre acertou a cabeça dele com uma bengala.

    — Ai! — o jovem ceifador passou a mão no local atingido.

    — Eu não te treinei para morrer dessa forma tola, nem em uma missão suicida por causa desse orgulho teimoso. Essa sempre foi sua principal qualidade e seu defeito primordial, achar que pode fazer qualquer coisa.

    Outra bengalada.

    — E você não pode, seu idiota!

    — Ei, isso dói!

    — Talvez coloque um pouco de juízo nessa sua cabeça oca.

    Eles ficaram em silêncio. O barulho da cadeira se mexendo lentamente se juntou ao som de passarinhos cantando. Era uma combinação estranha que fazia todo sentido naquele momento.

    Ali, em cima da colina, tudo parecia tranquilo. Nem parece que tem gente sofrendo lá embaixo, Boyak ponderou. As aberrações só precisam disso, fazer a gente acreditar que o mundo está bem.

    — Você não precisa fazer isso por causa deles — o velho falou tirando o jovem ceifador de seus pensamentos. — Não precisa provar nada para ninguém, nem tomar uma atitude estúpida para se justificar. Aquilo não foi culpa sua.

    — Não é só por eles — retrucou, determinado. — É por causa de cada pessoa que já sofreu nas mãos dessas aberrações. Vou esfregar a minha mensagem na cara do grande lorde.  — Ele desenhou a frase seguinte no ar com o braço. — Ainda existe um ceifador idiota o bastante para desafiá-lo.

    Boyak despertou da lembrança de repente. Seus olhos se abriram com dificuldade enquanto sentia o pescoço dolorido. Os dedos estavam dormentes e a palma da mão machucada. 

    Sentou-se e olhou para o horizonte. Visualizou a fortaleza de Astaroth a quilômetros de distância. A torre principal quase se perdia de vista. 

    Aquele ataque foi tão poderoso assim? Analisando o seu redor, percebeu que o lugar onde caíra tinha criado uma pequena cratera no chão. Parece que sim.

    Ele se levantou sacudindo o pó da roupa e saiu do buraco que tinha se formado. Voltou-se para um dos bolsos da capa e contabilizou o último frasco com líquido azulado. 

    Eu me precipitei, concluiu. O mestre estava certo. Havia recebido os conselhos do mestre como quem recebia um presente ruim. No fundo, sabia que ele estava certo, mas também precisava provar que era possível chegar perto de Astaroth. Certo em partes.

    Inspirou lentamente e percebeu dois maggs se aproximando. Um deles levava uma garota em seus ombros grandes.

    — Ei, você! — um dos monstros chamou.

    E vamos começar outra vez.

    — Onde está a sua insígnia de submissão? — a criatura resmungou exibindo seus enormes dentes.

    — Espere um instante — Boyak levantou o dedo indicador e começou a vasculhar seus bolsos.

    — Quem fez este buraco no meio da estrada? — indagou o magg que carregava a garota.

    — Receio que tenha sido eu — confessou.

    Os soldados olharam-no com descrença enquanto continuava revirando os bolsos.

    — Droga… — disse se voltando para eles. — Agora que me lembrei.

    — Você esqueceu em casa — interrompeu o magg.

    — Pra falar a verdade, eu não tenho uma insígnia.

    — Espere — disse o outro guarda coçando a barriga. — Ele não se enquadra nas descrições que nos deram do suspeito pelo ataque na torre?

    — Eu?

    — Um magrelo de cabelos brancos vestindo uma capa vermelha com calças e botas — o magg recitou.

    — Ora, até parece que entrei disfarçado de escravo na torre e destruí o maquinário dos estúpidos asseclas de Astaroth — ironizou Boyak.

    — É ele mesmo!

    Mas já era tarde demais. O ceifador acertou em cheio a barriga da criatura deixando um buraco no lugar. A estrada ficou manchada de sangue verde e depois o magg caiu morto. Boyak segurou a garota e a repousou com cuidado no chão.

    Quando se voltou para o outro magg, percebeu que ele havia fugido.

    — Já não se fazem mais soldados como antigamente — o jovem lamentou.

    Enquanto esperava a garota acordar, Boyak encontrou um alforje junto com o guarda morto e começou a vasculhá-lo. De repente, ouviu um gemido ao seu lado. A garota amordaçada havia acordado e tentava gritar.

    — Calma, calma, fique tranquila — ele falou. — Não vou machucá-la.

    O ceifador aproximou sua mão da mordaça devagar e a retirou com cuidado. O rosto da jovem estava cheio de cicatrizes e o pescoço exibia um enorme hematoma. Ele notou também que a runa de Astaroth estava na testa dela.

    — Por favor, apenas me deixe ir. Me deixe ir, por favor — ela suplicou.

    — Está tudo bem, os maggs se foram. Eu vou soltar você agora.

    — Por favor, eu só quero dar o fora daqui — ela murmurava quase chorando.

    Boyak desamarrou as cordas dos braços e pés. Imediatamente após a soltura, ela se arrastou para longe dele.

    — Cuidado aí atrás — ele falou.

    A moça soltou um grito quando acabou tocando no corpo retalhado do magg morto.

    — Eu avisei.

    Boyak jogou as cordas para longe.

    — Você matou esse guarda? — ela perguntou.

    — Ele não parecia do tipo amigável.

    A jovem engoliu a saliva. Levou a mão ao pescoço dolorido tentando se lembrar exatamente do que havia acontecido.

    — Esse seu pescoço está feio, hein. — Boyak retirou seu frasco do bolso e se aproximou. — Tome um pouquinho disso. — Estendeu para ela.

    — O que é isso? — inconscientemente ela se afastou um pouco.

    — Um fluido de oração — ele respondeu. — Apenas uma pequena gota e você vai se sentir melhor.

    Ela hesitou.

    — Está bem — ele recuou. — Entendo que esteja assustada. Talvez isso fique para outro momento. — Guardou o frasco, caminhou até o magg e retirou o alforje da cintura da criatura. — A propósito, me chamo Boyak. Como se chama? — Vasculhava o alforje de costas para ela. — Você não tem nome?

    A moça apenas observava em silêncio. Conseguiu enxergar uma casa a alguns quilômetros e se lembrou de Arev e Bóris, o casal de idosos. Então… eles me entregaram?, indagou consigo.

    — Humm, isso é bom — Boyak falou. — Pegue! — E lançou uma maçã para ela.

    Com a pouca força que ainda tinha, ela capturou a maçã. Desconfiada, levou alguns instantes antes de dar a primeira mordida. 

    O ceifador também encontrou um odre com água. Bebeu um gole e ofereceu para a prisioneira que aceitou com mais facilidade. Em seguida, ajeitou o alforje na cintura e vislumbrou o horizonte em todas direções.

    — Bom, eu preciso voltar para os reinos livres, tenho assuntos para tratar lá — Boyak declarou. — Se quiser um conselho, evite as estradas, pois estão cheias de maggs. Ontem, uma das torres da fortaleza de Astaroth foi derrubada e muitos escravos fugiram, então os soldados estão em alerta. Não fique desatenta ou vai ser capturada de novo.

    Ela permaneceu calada e afastada.

    — Bem, a gente se vê — ele ergueu a mão se despedindo e começou a caminhar na direção da casa de Bóris e Arev.

    — Você sabe como chegar aos reinos livres? — a garota indagou reunindo toda a coragem que tinha.

    Ele apenas assentiu.

    — Por favor, me deixe te seguir até lá.

    Boyak parou e se virou para ela.

    — Com uma condição.

    A moça se levantou.

    — Que me diga seu nome porque não vou viajar com alguém sem saber o seu nome — ele resmungou.

    — Anayê. Meu nome é Anayê.

    Nota