Rom ficou paralisado sem acreditar no que estava vendo e depois começou a gargalhar.

    Então Anayê avançou.

    Usou toda força no braço para desferir um golpe com o pedaço de madeira e mirou a cabeça do invocador. Entretanto, pouco antes do golpe acertá-lo, Rom ergueu o braço e segurou a madeira.

    — Não me faça rir, sua garota estúpida! — ele bradou.

    O invocador tentou tomar-lhe o pedaço de pau, porém, Anayê segurou-o firme. Rom cerrou os dentes e começou a se levantar. Entretanto, a garota ergueu o pé e atingiu-lhe com um chute bem no rosto jogando o invocador de bruços no chão.

    Ao mesmo tempo em que estava impressionada com sua própria força, ela sentia suas pernas e braços tremerem. Ouviu a voz de seu irmão em sua cabeça questionando o que estava fazendo, mas ignorou aquilo.

    Rom se levantou e vislumbrou a garota de cabelos negros e olhos violeta posicionada em frente ao corpo do ceifador desmaiado.

    — Quem diabos é você? — indagou.

    — Anayê, uma recém-liberta da fortaleza de Astaroth e futura ceifadora.

    — Huumm… futura ceifadora? Então quer dizer que você é aprendiz desse trapo aí?

    — Boyak me libertou e vai me levar até o lugar onde vou me livrar dessa runa e serei treinada.

    — Te levar? Olhe para ele — Rom apontou. — Só será levado daqui para o cemitério.

    Anayê desviou o olhar para o ceifador. O rosto estava inchado e sujo de sangue, e sua roupa havia se tornado uma imundície.

    E esse foi o erro da escrava.

    Rom saltou sobre ela acertando um soco em seu rosto e derrubando-a. Anayê perdeu a madeira quando caiu e bateu a cabeça com força no chão.

    O invocador se debruçou sobre ela, agarrou seus cabelos e puxou seu rosto para perto dele.

    Ela sentiu seu hálito gelado e imundo.

    — Você não será nada! Vai morrer junto com esse pedaço de cão!

    E bateu a cabeça dela outra vez na terra. A garota sentiu seu mundo girar, perdendo a noção de espaço e tempo. Por instinto, suas mãos tentaram se desvencilhar do agressor, mas foi um esforço inútil. Rom tinha muito mais peso do que ela.

    — Ou prefere ser levada de volta para a fortaleza?

    Mais uma pancada.

    — Que tal eu deixá-la assistir a morte de seu salvador e depois te levar para seu lugar de escrava? Ah, com certeza, o lorde sombrio vai apreciar a minha atitude.

    De repente, Anayê foi capturada por uma vontade de pedir desculpas, de se render, de ajoelhar e implorar para que não fosse punida. Será que Rom a deixaria ir?

    Percebeu o erro de atacar alguém mais forte ao invés de ficar em seu lugar ou apenas fugir como sempre fazia na fortaleza. 

    Mas e Boyak? Lembrou-se do sacrifício que ele fizera nas ruínas da lamentação, do seu esforço para salvá-la. Se ele estava naquele estado, incapaz se enfrentar Rom e a aberração, era por causa dela. A determinação dele a trouxera até os reinos livres e não a covardia ou rendição. Quando se tratava de vidas humanas era tudo ou nada, assim ela aprendera com o ceifador.

    E assim ela ia agir dali em diante.

    As mãos de Anayê tatearam o chão e seus dedos encontraram o pedaço de pau, outrora foragido dela.

    — O que acha da minha ideia, hein?

    Ele agarrou o cabelo dela com tanta força que ela pensou sentir os pêlos sendo arrancados pela raiz.

    Sua mão direita finalmente alcançou a madeira e, imediatamente, ela desferiu um golpe. No entanto, outra vez, o invocador conseguiu segurá-lo.

    — Patética.

    Porém, Rom não previu o que veio a seguir. A cabeça da garota avançou contra a sua com velocidade e força atingindo em cheio e deixando-o desnorteado por alguns instantes, tempo suficiente para Anayê conseguir retomar o pedaço de pau e acertá-lo no rosto do invocador.

    Rom caiu para trás. A garota emendou o golpe com a madeira a um chute que também pegou no rosto dele. Recuperando toda a liberdade e controle do seu corpo, Anayê se levantou de posse da arma e, em fúria cega ou uma determinação implacável, começou a bater no invocador.

    Rom tentou erguer o braço na defensiva e teve sua mão retorcida em um ângulo diferente.

    Os músculos criados pela vida de escrava se contraíam e se soltavam para contribuir num ataque mais efetivo. Rom soltou um grito de dor quando uma pancada atingiu suas costas.

    Anayê não ouviu. Sentia levemente sua respiração ofegante e o choque dos golpes passando da madeira para os seus braços.

    Tudo o que entendia naquele momento era que precisava proteger Boyak, precisava ser determinada como ele, precisava ser capaz de qualquer coisa para defender as pessoas. Era isso o que tinha aprendido com o ceifador.

    Mas, além disso, havia ali uma espécie de retribuição. Depois de anos com esses sentimentos aprisionados, Anayê tinha diante de si uma chance de descontar.

    Os gritos, as chicotadas, as zombarias, a comida ruim e as humilhações voltaram para sua mente.

    Oh sim! Como era boa a sensação de despejar frustrações e de descarregar as energias naquele verme que instantes atrás estava prestes a matar uma das poucas pessoas a se importar com ela.

    O poder de revidar era maravilhoso. Isso jamais passara por sua mente enquanto morava na fortaleza. A sensação era a de que se revidasse, um destino terrível estaria esperando. E, na verdade, era a realidade. Se houvesse revidado contra os maggs, provavelmente encontraria a morte.

    O que mudara era a situação. Por isso, ela conseguira fazer alguma coisa. Tanto por causa de Boyak, quanto por causa de toda a sua jornada.

    — Anayê!

    Alguém segurou a mão da garota.

    Anayê se virou com um grunhido na garganta como um animal feroz descontrolado e livre, mas então cruzou com os olhos calmos de Thayala.

    Foi como acordar de um pesadelo ruim. Ver o rosto da ceifadora era como vislumbrar o fim de uma tempestade terrível no mar.

    — Está tudo bem — a ceifadora falou.

    As mãos da garota tremiam e os dedos estavam esfolados por causa da força de seus golpes.

    Thayala aproximou sua mão do pedaço de madeira, mas Anayê hesitou por um instante.

    — Está tudo bem — a ceifadora repetiu.

    E conseguiu pegar o pedaço de madeira da mão da garota e jogá-lo para longe.

    Aos pés delas, um corpo debruçado sob uma poça de sangue, sem sinais de respiração.

    Então as lágrimas vieram e Anayê se lançou nos braços de Thayala. A ceifadora a acolheu em um abraço caloroso. E a garota chorou em alto som, tal qual havia feito depois de sua fuga da fortaleza.

    A ceifadora já vira demonstrações de raiva, mas aquele descontrole era típico de quem passara por muita coisa.

    — Ninguém vai te machucar — Thayala sussurrou de modo tranquilo. — Você vai ficar bem.

    Nota