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    Anayê finalmente soube o que era tomar um banho de verdade. A água era quente e limpa com sais naturais para relaxar, e também havia sabão e óleo para seu cabelo. Não foi somente lavar o corpo, foi como lavar a alma de toda aquela antiga vida.

    Thayala disse para que gastasse o tempo necessário e, logo depois de concluir o banho, ela trouxe roupas novas. 

    Uma camisa branca com uma gola em V enfeitada com um laço e presa na cintura por um cinto de couro, além de uma calça preta e chinelos confortáveis.

    Foi preparado um verdadeiro jantar para a convidada das Colinas Verdes e como Anayê nunca tinha participado de nada do tipo, considerou aquele um banquete maravilhoso.

    Frutas frescas, suco, carne e tortas foram servidas. Uma refeição atípica para uma escrava.

    As dez crianças estavam na mesa junto com Thayala, o mestre e a senhora Filley, uma idosa com belos cabelos brancos, aparentando ser mais nova do que era.

    Filley tinha sido a responsável pelo jantar com uma leve ajudinha de Thayala, muito embora, mais tarde, a senhora brincasse que a ceifadora não tinha as mãos leves para ser uma cozinheira.

    Talvez o objetivo do comentário fosse a brincadeira, porém, Thayala se sentiu elogiada.

    Anayê se sentou ao lado da ceifadora e antes de iniciarem, todos fizeram uma prece, mas a garota apenas acompanhou de olhos fechados e cabeça abaixada.

    Resumindo, o mestre agradeceu pela bela refeição e pela vida de todos os presentes, principalmente de Anayê, o qual ele reforçou como sendo a convidada de honra. Foram poucas e diretas palavras, mas aquilo mexeu na estrutura emocional da escrava mais uma vez.

    E então puderam comer. 

    Até então Anayê nunca tinha experimentado um jantar tão incrível.

    O sabor era delicioso. Nada era estragado, de má qualidade e nem mal feito.

    Os pães estavam quentinhos e as frutas doces. 

    Na fortaleza, quando os escravos pegavam pão, ele era de dois ou três dias, tão duro quanto uma parede de concreto. E quem conseguisse ainda se consideraria sortudo.

    Mesmo com tantas crianças na mesa, o barulho era controlado e podia se dizer comportado.

    Em certo momento, Anayê sussurrou para Thayala:

    — Onde está Boyak?

    Antes da resposta, o mestre falou:

    — Você quer saber como está Boyak, certo?

    Ela assentiu, levemente envergonhada.

    — Você não precisa ter vergonha das perguntas. Não estamos mais no reino do lorde sombrio para utilizar sussurros.

    — Vá devagar com a garota — a senhora Filley disse.

    O mestre balançou a cabeça.

    — Tem razão. Desculpe se fui imperativo demais, Anayê.

    Ela fez um gesto com a mão.

    — Boyak ficará bem no tempo certo — o mestre comentou de forma tranquila como sempre fazia. — Thayala deve ter explicado o quanto ele se esforçou.

    Anayê concordou.

    — Na verdade, ele usou o fluido de oração de forma irresponsável e agora seu corpo está padecendo por essas escolhas. Essa substância é muito poderosa, mas se for usada dessa maneira só vai prejudicar o ceifador.

    — Senhor, se eu puder falar algo… — a garota começou.

    O mestre pediu para ela continuar.

    — Entendo pouco dos efeitos desse tal fluido, mas a ação de Boyak na fortaleza me trouxe aqui. Não apenas isso, se não fosse por todo esse esforço da parte dele, eu não estaria aqui.

    Todos, inclusive as crianças, estavam calados.

    — Me perdoe se ofendi com as minhas palavras, não estou acostumada a falar o que penso, porém, discordo de você. Boyak nunca agiu de maneira irresponsável, ele agiu como um herói, como um irmão que dá a vida pelos outros.

    Anayê terminou a frase um pouco constrangida pelo silêncio. Seria expulsa do lugar depois daquilo? Ou talvez repreendida por bater de frente com o anfitrião?

    Entretanto, o comentário do mestre não veio com tom de zombaria, raiva ou repreensão, foi tão tranquilo quanto os anteriores.

    — Vindo de alguém salvo pelo Boyak, isso é, no mínimo, diferente.

    — A menina sabe falar bem — a senhora Filley comentou. — Eu te disse para pegar mais leve com o garoto Boyak.

    O mestre assentiu.

    — Fico feliz pelo apreço com ele — o velho falou. — Há tempos não vemos alguém de fora que tenha tanto fervor em defender um ceifador. — Uma pausa rápida. — Muitos já sentaram nessa mesa como convidados de honra, mas hoje você se tornou um dos poucos que realmente merece.

    — Se me permite mais uma vez — Anayê disse e foi encorajada a continuar. — Ninguém merece mais honra do que Thayala e Boyak, afinal, nenhum fugitivo teria chegado aos reinos livres sem a ajuda deles.

    A ceifadora ao lado dela ficou constrangida com o comentário e se ajeitou na cadeira.

    O semblante sereno mantido pelo mestre desde o início da refeição se abriu para uma satisfação e um sorriso.

    Filley já estava com os dentes a mostra antes mesmo do fim do comentário dela.

    — Verdadeiramente, eu não errei na minha menção anterior — o mestre tomou a palavra. — Você é uma das pessoas mais honradas que já sentou nessa mesa.

    Dessa vez, Anayê também sorriu.

    Mais tarde, após o término do jantar, Anayê visitou o desmaiado ceifador, prezando pelo seu bem-estar. 

    E, poucos instantes depois, Thayala apareceu no quarto.

    — Você sabia que eu estaria aqui, né? — Anayê falou primeiro.

    Thayala assentiu, encostada no parapente da porta.

    — Sobre aquilo que você falou no jantar… — a ceifadora comentou, sem jeito.

    Anayê nunca tinha visto Thayala daquela maneira, meio constrangida e com um tom de voz mais baixo.

    — Obrigada.

    — Você não me deve agradecimentos, eu e todos os libertados em Skell devemos.

    — Mesmo assim, aquilo foi muito bom.

    Anayê meneou a cabeça.

    As duas deixaram o silêncio permanecer por alguns instantes, cientes dessa gratidão permeando o ambiente.

    Em seguida, Anayê resolveu perguntar sobre uma curiosidade.

    — Bom… e todas essas crianças? — Anayê perguntou.

    — O mestre adotou a todas.

    A garota ficou impressionada com a resposta.

    — Algumas perderam os pais para aberrações ou em incidentes, outras foram resgatadas de piratas e escravagistas — Thayala explicou.

    A resposta animou Anayê. Sim, aquele era um trabalho que gostaria de fazer parte.

    — Um dia, Boyak foi uma dessas crianças — a ceifadora revelou.

    Anayê franziu a testa.

    — Ele era um garoto de sete anos trabalhando em um barco de mercenários. Então, o mestre comprou-o por algumas moedas de ouro. Boyak foi um dos primeiros.

    A informação ajudou a garota a entender mais sobre seu companheiro de viagem.

    — O mestre treina todas as crianças de acordo com o código dos ceifadores, mas não obriga nenhuma a se tornar um.

    Do ponto de vista da liberdade, fazia muito sentido ensinar sua crença e depois deixar a pessoa encontrar seu caminho, ou assim pensava Anayê.

    — Agora seria bom você ir dormir — disse Thayala se espreguiçando — Amanhã o mestre vai te levar ao Sinai para a remoção da sua runa.

    Mais uma vez, Anayê foi surpreendida.

    — Remoção…?

    Tocou a runa na sua testa. Finalmente se veria livre daquela marca e das consequências de possuí-la?

    Preenchida por um sentimento de gratidão intenso, Anayê concluiu o quão bom era estar ali.

    Quanto havia sido prazeroso desfrutar da companhia daquelas pessoas e da calma daquele lugar. Ela sequer imaginara poder experimentar tal sentimento, nem mesmo nessa intensidade.

    — Você não vai querer estar cansada justo nesse dia — a ceifadora falou.

    Anayê concordou e se levantou para ir ao seu quarto.

    Quando deitou, pensou que demoraria a pegar no sono por causa da ansiedade pelo dia seguinte. Porém, bastou debruçar a cabeça no travesseiro para perceber como estava cansada.

    E poucos momentos depois, ela já havia adormecido.

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