Índice de Capítulo

    Anayê seguia Boyak a certa distância. Observava de forma desconfiada enquanto ele cantarolava uma melodia suave.

    Ele pode estar me levando para outra armadilha, pensou analisando o seu perfil. Cabelos brancos, capa vermelha e botas, nunca vi alguém vestido assim. Nem mesmo os generais de Astaroth. Ela só continuava em seu encalço por causa disso. Ele também não tem insígnia de subordinação, nem a runa de propriedade ou a marca de servo. Então quem é esse cara?

    Na fortaleza, ela ouvira falar de mercenários errantes e piratas gananciosos, indivíduos em busca de glória e riqueza a qualquer custo. Mas, segundo as escassas informações obtidas, essas pessoas se vestiam de formas extravagantes com chapéus, brincos, pulseiras e tapa-olhos, e adoravam ser conhecidos.

    Na festa anual de adoração, um comboio de piratas trouxera uma dúzia de escravos como presente para Astaroth. Em troca, ganharam a permissão de navegar pelo mar dos demônios e uma insígnia de subordinação. 

    Malditos urubus! A maioria daqueles escravos pertencia ao continente vizinho e morreram por diversos motivos.

    Não parece ser o tipo desse cara. Sim, ele tinha certa extravagância com a capa e as faixas brancas nos braços, porém, era um sujeito mais sutil.

    Além disso, ele conseguiu matar aquele guarda sozinho. Ela não tinha visto nenhuma arma. Ele enfrentou um magg apenas com as mãos? Quem é capaz de tal coisa?

    Sua memória não falhava. Morriam todos os que desafiavam um soldado, mesmo portando uma espada ou lança.

    Isso não faz o menor sentido! Até mesmo com uma espada é difícil feri-los! Então, como esse cara conseguiu? Ele nem parece tão forte assim. Será que ele está mentindo?

    Boyak continuava cantarolando alegremente.

    Ele tem algum segredo. Talvez um poder oculto. Você foi um general de Astaroth no passado e se revoltou contra as atitudes do grande lorde? Não! Isso não é verdade. Nunca ouvimos falar de uma pessoa do alto escalão se rebelando.

    Só então ela notou o rancho. A imagem fez seu estômago embrulhar. Por que ele está indo nessa direção? É outra armadilha?

    — O que estamos fazendo indo na direção deste rancho? — Anayê indagou.

    — A caminhada até a fronteira é longa — Boyak explicou. — A carroça deles vai nos poupar muito tempo.

    A sua frente, Anayê reconhecia o rancho dos idosos Arev e Bóris. Traidores infelizes, ela murmurou consigo. Seu pescoço ainda estava dolorido pela pancada. 

    A horta, a vaca e a carroça pareciam estar nos mesmos lugares como peças da encenação de um teatro. Dessa vez, ela viu o poço.

    — Se eles têm poço, então por que estavam pegando água no rio? — indagou.

    — Hã? — Boyak olhou para ela. — Você conhece o pessoal daqui?

    — Foram os donos daqui que me entregaram para os maggs — ela revelou.

    — Que ótimo! Mais um motivo para pegarmos a carroça deles.

    — E você espera que eles simplesmente te emprestem?

    — Quem falou em emprestar?

    Ele saltou a cerca de madeira deixando Anayê sem entender direito. Caminhou diretamente até a carroça e puxou o cavalo devagar para a estrada.

    Neste momento, Arev, a idosa, saiu pela porta na direção do invasor.

    — Ei! O que pensa que está fazendo?

    — Estou levando a sua carroça — o ceifador falou.

    — Como é?

    Bóris também apareceu com o semblante incrédulo diante da situação.

    — Você não pode fazer isso, temos a permissão dos maggs para morar aqui — o idoso declarou. — Se pegar qualquer uma de nossas propriedades vai se ver com o lorde Astaroth.

    Anayê sentiu o sangue ferver. Um casal aparentemente inofensivo de idosos vivendo em uma casa simples no meio do campo que, na verdade, era fachada para um bando de traidores. Como puderam entregá-la tão facilmente para os maggs? Decidida, caminhou a passos largos na direção deles.

    — Para o azar de vocês, eu não tenho medo de aberração — Boyak desdenhou.

    — Você vai pagar por isso — Arev ameaçou. — Todas as forças do inferno estarão em seu encalço.

    Boyak encenou suas pernas tremendo.

    — Espere, querida, esse não é aquele causador de confusão que derrubou a torre do maquinário? — Bóris indagou segurando sua esposa pelos ombros.

    — Em carne e osso — o ceifador se prontificou a responder. — Se tiverem tinta e papel, posso dar meu autógrafo.

    — Você tem noção de quantas pessoas morreram por sua causa? — a idosa reclamou. — Agora toda a terra está em angústia e o grande lorde ficou aborrecido. 

    — O meu plano era deixá-lo em pedaços e não apenas aborrecido.

    — E por qual razão? 

    — Olhe ao seu redor. — Mostrou toda a devastação. — Isso não é suficiente?

    — É assim que escolhemos viver. Você não pode respeitar o nosso estilo de vida? — foi o idoso quem retrucou.

    — Enquanto seu estilo de vida estiver conectado com escravidão, ditadura e exploração de inocentes, eu me recuso.

    — Você é o destruidor aqui! — Arev exclamou. —  Por que você não deixa nossa terra em paz, seu desgraçado? Volte para os reinos livres e seja feliz. Não pode só fazer isso?

    — Olha aqui, vovó, é melhor ficar com a boca calada. — Ele se aproximou com o dedo indicador apontado para seu rosto. —  Só vou permitir que continuem vivos porque não costumo agredir velhos tolos. Mas, se abusarem da minha benevolência, vocês terão o destino merecido — seu tom de voz aumentava. —  E não, não pretendo deixar sua terra em paz. Enquanto respirar, vou atacar e atacar até que o reino das aberrações não passe de cinzas no chão…

    Entretanto, sua ameaça foi interrompida pela voz amedrontadora e feroz de Anayê.

    — Então é isso que vocês são de verdade? — a moça bradou.

    Arev deu um grito de susto quando a viu e Bóris arregalou os olhos.

    — Como puderam fazer isso? Eu pedi que me deixassem em paz, mas ao invés disso, vocês me enganaram com comidas e roupas enquanto me entregavam de volta para os guardas! Como puderam?!

    — Eles são o pior tipo de raça que existe — falou Boyak mais calmo. — São escravos voluntários de Astaroth e, em troca, ele concede algumas regalias.

    — Isso quer dizer que vocês entregam fugitivos para viverem bem? Vocês sabem o que acontece com os escravos dentro daqueles muros? — indagou Anayê apontando na direção da fortaleza.

    Acuado, o casal recuou um pouco.

    — Eu fiquei dez anos sofrendo e fazendo a vontade daqueles demônios. — Lágrimas brotavam nos olhos dela. — Dia após dia, dia após dia, sem descanso, sem pausa para bolos, chás ou passeios na floresta. Quando finalmente a minha chance de viver uma vida livre surgiu, vocês apareceram com sua conversa mole, me enganaram e me devolveram ao tormento! Se não fosse por ele, eu estaria sendo castigada agora. 

    Ela suspirou para recuperar o fôlego. As palavras estavam saindo mais rápido do que podia pensar.

    — Provavelmente, morreria sem nunca entender o que é liberdade enquanto vocês estariam relaxando, comendo bolo de trigo e chá quente! — Anayê expulsou as lágrimas com as mãos.

    Ninguém falou nada.

    Ela fitou o casal de idosos. Não conseguia enxergar arrependimento nos olhos deles, apenas medo. Não estavam em silêncio porque sentiam remorso, mas simplesmente por receio.

    — Devemos ir — o ceifador disse de cima da carroça. — Acredite em mim, eles não valem o discurso.

    Anayê cuspiu no chão e subiu na carroça. 

    — Vocês ainda vão ouvir falar de mim — disse Boyak aos idosos.

    Bastou um leve puxão na corda e o cavalo avançou.

    — Eles são a escória, Anayê. Não se aflija por isso.

    — Eu não deveria chorar… Devia torcer o pescoço deles com minhas próprias mãos… — ela revelou.

    — Sei como se sente, mas eles não são os primeiros e nem os últimos com essa mentalidade. São tão cegos em sua visão de mundo que nem mesmo a realidade pode mudá-los.

    Ele prosseguiu em silêncio observando como os braços dela tremiam.

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