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    Eles seguiram por muito tempo em silêncio. Até ali, Anayê só tinha visto devastação. Árvores, solo e plantas mortas. Nenhum animal ou réptil. Nenhum sinal de vida.

    Os galhos de algumas árvores lembravam garras afiadas e foices curvadas.

    — Toda essa devastação foi causada por Astaroth e seus seguidores — Boyak finalmente quebrou o silêncio vendo o seu olhar perdido. — Os asseclas de Astaroth não sabem quando parar. Continuam sugando os recursos da natureza até que tudo se torna uma imensidão vazia.

    — Eles são assim mesmo. Lá na fortaleza, exploravam nossa força, destruíam nossos sonhos e se alimentavam de nossa vil esperança de liberdade.

    — A esperança não é vil. Mas depende em quem está a sua esperança. Se estiver em alguém como Astaroth, bem… é isso que vai receber. Enquanto ele dá tudo para seus seguidores, destrói tudo de quem não o segue. Mas as coisas são um pouco diferentes nos reinos livres, você vai ver.

    A moça fitou-o. Seu rosto transmitia uma tranquilidade que inquietava, uma calma que nunca vira em ninguém. Os maggs só demonstravam raiva e desprezo, os escravos só ofereciam medo e desespero, e os generais expressavam apenas obediência e religiosidade cega. Porém, ele era diferente. Mesmo ali, diante de tamanha devastação e crueldade, contemplava uma paz imperturbável em seu semblante. Como ele consegue ficar tão… despreocupado?.

    — Eu sei que tenho uma beleza extraordinária, mas você poderia não me encarar desse jeito? — ele falou repentinamente.

    Beleza… extraordinária?!, ela quase pensou em voz alta, cerrou os olhos e sorriu. Só pode estar brincando. Tinha de admitir, o comentário a pegara desprevenida.

    — Certo, exagerei com ‘beleza extraordinária’, né? Talvez deva usar apenas charme irresistível.

    Anayê não aguentou e riu baixinho. Por um pequeno instante, quase se censurou por rir, mesmo baixo, mas se lembrou de que não estava mais na fortaleza de Astaroth.

    — Não ria de assuntos sérios, as pessoas têm muitos problemas com beleza — Boyak ironizou.

    — Mas você não parece ser uma delas.

    — Acredito que não. Mas a culpa não é minha por ser tão perfeito.

    O cavalo relinchou por um momento, e os dois acabaram rindo. Dessa vez, ela se permitiu rir alto. E como era gostosa a sensação de ouvir sua própria risada.

    Boyak retirou do alforje uma pêra, ofereceu e Anayê começou a comer. Após a primeira mordida, ela falou.

    — Posso fazer uma pergunta?

    — Vá em frente.

    — De onde você é?

    — Não sei se pertenço a algum lugar — ele respondeu pensativo. — Mas, no momento, moro nas Colinas Alegres com meu mestre.

    — Colinas Alegres… parece um bom lugar para morar — ela recitou com um tom sonhador.

    — É tudo de bom tirando o resmungão do meu mestre.

    — Mas então, se existe um lugar tão belo, o que você está fazendo aqui?

    Pela primeira vez, sentiu o ar dele ficar mais sério.

    — É uma longa história. Mas para encurtar, sou um ceifador de aberrações, um dos poucos que restou.

    — O que é ser um ceifador de aberrações?

    — Significava exatamente isso, ceifar aberrações — o tom de sarcasmo retornara. — Nunca ouviu falar de nós?

    — Sim, mas na fortaleza muitas informações são usadas para nos manter com medo. Os ceifadores são tratados como lendas lá. Em todos os meus dez anos, nunca tinha visto nenhum e outros escravos com bem mais tempo do que eu naquele inferno, juravam ser uma história inventada para criar uma falsa esperança. Poderosos o bastante para confrontar um general? Eu realmente não acho que haja ninguém capaz de enfrentar esses demônios.

    — É compreensível — Boyak coçou a cabeça, seu tom era de desculpas. — Não temos um comando ou guilda, nem somos muito unidos. Cada ceifador faz o seu próprio caminho. E as lendas e canções costumam realmente exagerar bastante, embora ajudem a espalhar a fama de que existe um grupo capaz de confrontar as aberrações.

    — Eu teria que ver para crer.

    — Você viu a torre do maquinário cair, não viu?

    — Aquilo… foi você?

    — Mais ou menos — ele respondeu. — Foi uma junção de poder e desorganização. O fato de todos acharem que a fortaleza de Astaroth nunca vai ser atacada facilitou o processo.

    — Então, de todos os ceifadores, você deve ser o mais louco.

    — Digamos que sim.

    Anayê sentia uma aura de orgulho que pairava sobre Boyak.

    — Mesmo assim, acho que te devo um obrigado. Afinal, se você não tivesse feito essa loucura, eu não teria conseguido escapar da fortaleza.

    — Agradeça quando estivermos nos reinos livres.

    — Então que assim seja.

    Prosseguiram até entardecer, mas Boyak achou bom encontrarem um local para acampar. Escolheram um pequeno platô onde poderiam ter uma visão melhor do ambiente. 

    Os dois começaram a procurar pequenos galhos para fazer uma fogueira.

    — Pelo menos a madeira seca será melhor para fazer a fogueira — ele argumentou recolhendo alguns pedaços.

    Anayê ainda não tinha tirado suas conclusões sobre Boyak e não estava totalmente convencida dessa história de ceifador, mas era o que tinha por enquanto. Contudo, ele me tratou com dignidade. Ninguém me tratou assim nos últimos dez anos.

    — Você está me encarando daquele jeito esquisito de novo.

    Ela desviou o olhar rapidamente por causa do comentário repentino e continuou recolhendo os galhos.

    — Não considere isso como pessoal — ele explicou. — Mas é que você tem olhos bem grandes e expressivos, então quando olha para alguém parece que está julgando toda a sua vida.

    — Desculpe, é difícil não fazer isso quando se vem de onde eu vim.

    — Não precisa se desculpar, mas ao invés de ficar encarando, você poderia compartilhar o que está pensando. Vai por mim, é menos intimidador do que esse seu olhar de julgamento. — Ele fez uma pausa fitando-a dramaticamente. — Vou compreender se estiver apaixonada por mim.

    Ela não conseguiu evitar a risada.

    — Qual é? Outras pessoas também já se apaixonaram por mim em um dia.

    — Quer saber o que estou pensando? — Ela segurou seu punhado de madeiras debaixo do braço. — Nunca conheci alguém tão convencido de si quanto você.

    Por um pequeno instante, Anayê sentiu uma pontada de ressentimento por dizer aquilo daquele jeito. Não estava acostumada a falar o que pensava.

    — Você não é a primeira a dizer isso — Boyak sorriu. — Lembra do que eu te disse sobre o charme? Bom, isso faz parte.

    — Você não fica por baixo, né?

    Ela abriu um sorriso se sentindo inteiramente bem por dizer o que pensava. Não se saíra tão mal quanto achava. Na verdade, aquele dia estava sendo totalmente satisfatório simplesmente por poder conversar com alguém de igual para igual.

    — Me diga uma coisa — falou encorajada pelos comentários dele. — Os ceifadores podem fazer fogo com as mãos?

    Boyak deu uma risadinha.

    — Não é assim que funciona.

    — E como funciona?

    — Quer mesmo saber?

    Ela assentiu. Ele pareceu satisfeito com a resposta e prosseguiu:

    — Os ceifadores são divididos em quatro classes: manipuladores de elementos, evocadores de objetos, usuários de armas de sagradas e potencializadores. Acredito que os nomes falam por si mesmos.

    — E você está em qual categoria?

    — Potencializador. Basicamente, recebemos nossos poderes através de fluidos e usamos isso para potencializar uma ou mais partes do corpo.

    — Quanto o corpo fica mais forte?

    — Bem, seu soco se torna capaz de abrir uma fenda em uma montanha e seu pulo pode alcançar o topo de uma torre de cinco metros.

    — Tá me dizendo que o soco de um ceifador pode explodir a minha cabeça?

    — Deixe-me ver… — ele comparou o tamanho de sua mão com o tamanho da cabeça dela. — Ficaria como uma laranja esbagaçada.

    — Eca! Muito obrigada pela imagem mental — ela reclamou.

    — Foi você quem falou em explosões.

    — É, mas não precisava ser tão…

    — Cuidado!

    Boyak avançou na direção dela abandonando os galhos que recolhera e bastou um leve empurrão para que o seu corpo saísse rolando pelo chão. Anayê bateu as costas em um tronco e soltou um gemido de dor. Seus olhos aflitos e cheios de confusão se direcionaram rapidamente para verem o ceifador em posição de ataque.

    A frente dele, poeira e galhos para todos os lados, e do meio daquela fumaça, uma criatura de dois metros se ergueu. 

    O que é aquilo?, pensou sentindo as pernas estremecerem.

    O monstro era magro, curvado, de joelhos tortos e dedos compridos, e parte dos ossos do torso estavam à mostra. Cabelo misturado com pele envolvia seu corpo como um manto esfarrapado e retalhado. A cabeça oval se assemelhava a um grande e disforme cérebro, com três olhos imensos ocupando toda a parte frontal. Sem boca, sem nariz e sem ouvidos. 

    Anayê nunca estivera diante de tamanho horror. Apenas olhá-lo fazia seu corpo inteiro arrepiar.

    Era uma aberração.

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