O platô estava ficando para trás.

    A carroça avançava acompanhada do som dos cascos e da respiração do animal.

    — Esse troço não anda mais rápido? — indagou Anayê.

    A sua frente, a estrada era como o piche tirado de algumas rochas. Ao seu redor, as árvores haviam se transformado em pescoços compridos e garras afiadas, e de vez em quando, pensava ter visto alguns olhos pequeninos espiando.

    — O cavalo está cansado — Boyak respondeu. — Andamos o dia inteiro e ele não teve tempo para descansar. Não vai dar para exigir muito.

    Ela olhou para trás de relance com a intenção de visualizar algum sinal da bandeira da oitava legião. Porém, assim como antes no platô, não conseguia enxergar absolutamente nada naquela escuridão.

    Será que ele enxergou a bandeira mesmo ou só pensou ter visto algo? Não havia resposta. Sua alternativa era confiar.

    E se ele estiver mentindo? A voz de sua desconfiança era como um pernilongo zumbindo em sua orelha. Não tenho motivos para desconfiar. Ele me salvou dos maggs e do farejador. Era como se justificasse para si.

    Retirou uma mecha de cabelo que o vento insistia em jogar em seus olhos. Aquela perseguição era por causa da runa em sua testa? Não entendia como aquele símbolo poderia atrair tanta perturbação.

    Será que o grande lorde enviaria um general só para capturar? Mas eu não tenho nada de valioso. Sou uma escrava comum. Que valor minha vida teria em meio a tantos escravos?

    — Nós só precisamos ganhar alguns quilômetros de distância — o ceifador falou. — Com sorte, eles vão parar para descansar e isso nos dará a vantagem.

    — Ainda não entendi, achei que um ceifador teria poder para lutar contra um general — ela declarou. — E você acabou de derrotar um farejador facilmente.

    As cenas estavam bem gravadas em sua mente. Jamais esqueceria aquele combate. Nunca vira alguém se mover tão rápido e um soco tão eficiente.

    Além disso, a luz na mão do ceifador emanava uma sensação reconfortante como uma canção de ninar.

    — Eu poderia vencer qualquer um desde que tivesse mais frascos de oração. — Boyak segurou as rédeas com uma das mãos e com a outra pegou o pequeno objeto contendo o líquido azulado mostrando que a sua cota de fluido era pouca. — No momento, estou no bico do corvo.

    — Está me dizendo que seu poder está contido nessa coisa azul? — ela perguntou quase incrédula.

    — O poder de todos os ceifadores está. Sem frascos de oração, não passamos de pessoas comuns.

    Anayê segurou o frasco por um instante fitando com cuidado seu conteúdo. Ela não gostou nem um pouco da ideia de ter o poder para enfrentar as aberrações confinado naquele objeto tão pequeno e simples.

    E se quebrasse ou perdesse? E se alguém roubasse? Como colocaria sua vida nas mãos de uma coisa tão frágil? Daquele ponto de vista, considerava as atitudes do ceifador ainda mais loucas.

    Mas foi efetivo contra o farejador, pensou. De alguma forma, por mais absurda que pareça, o efeito desse troço é muito poderoso. Tanto poder em uma coisa tão pequena. Se uma pessoa como eu tomasse um gole, também ficaria forte a ponto de enfrentar uma aberração?

    O líquido balançou dentro do frasco de maneira convidativa. O simples pensamento de possuir tamanho poder encheu seu coração de curiosidade. Uma Anayê diferente surgiu em sua mente. Mais imponente, decidida, resolvida.

    Ninguém me dominaria. Seria forte o suficiente para atingir meus objetivos. E se alguém aparecesse em meu caminho, ao menos eu teria uma chance de enfrentá-lo. Sim, as coisas iriam mudar.

    — Quando entrei na fortaleza de Astaroth, tomei cinco frascos de oração — Boyak revelou. — Achei que seriam suficientes para derrubar a torre e depois confrontar o lorde sombrio.

    — O quê? — o tom da voz dela aumentou. — Você enfrentou Astaroth?

    — Bom, não é um confronto quando você é derrotado no primeiro golpe — soltou uma risadinha sem graça.

    — Espera ai, espera ai! Caramba! Explica isso direito. — Ela chacoalhou a cabeleira. — Você realmente invadiu a torre principal?

    O ceifador assentiu enquanto guiava a carroça para se desviar de um buraco.

    — A torre da sala do trono?

    Ele confirmou.

    — Você esteve diante do lorde Astaroth?

    Outra resposta afirmativa.

    Ela ficou boquiaberta. Não sabia o que era mais impressionante, a audácia dele ou o fato de estar diante do próprio lorde das sombras.

    Alguns sempre me diziam que era impossível para um simples humano ficar frente a frente com Astaroth e viver. Bastava uma espiada e você derreteria. Mas cá estou com um sobrevivente… ou um mentiroso. O que poderia ser mais controverso?

    — Cara, você é bem mais louco do que eu imaginava — não conseguiu pensar em nada mais para dizer.

    — Se ser louco é fazer o que ninguém tem coragem de fazer, aceito o elogio.

    Ela assentiu e contou:

    — Todo mundo caçoava quando eu falava em escapar. Me tratavam como uma louca, uma revolucionária. As pessoas se afastavam de mim porque achavam que teriam problemas.

    — Mas agora você está aqui e muitos deles ainda estão lá.

    Muitos deles ainda estão lá. O comentário a encheu de arrepios. Era horrível apenas imaginar voltar ao confinamento daqueles muros. Eu também prefiro ser louca.

    — Todo mundo também falava que era impossível — ele continuou. — Citaram mil e uma razões para mim. Ah, Astaroth é muito forte. Ah, sua fortaleza é impenetrável. Bah! Um monte de baboseiras.

    Anayê percebeu certo desabafo em seu tom de voz.

    — Astaroth construiu uma reputação de maneira formidável. Nada mais nocivo do que uma crença e um bando de gente sem coragem de confrontá-la.

    Isso é… remorso ou raiva? Ele não tem nenhum medo. Será que teve essa mesma ousadia perante o lorde das sombras?

    — Qualquer ideia deve ser seguida? Não! Mas existem barreiras que precisam ser rompidas — explicou seu ponto de modo mais objetivo. — Se apenas eu devo rompê-las, então tudo bem.

    Ela afastou a mecha do cabelo novamente.

    — Mas prometo uma coisa, vou mostrar para todo mundo que Astaroth não é tão forte quanto imaginam. E da próxima vez, a torre do maquinário não vai ser a única a cair. Vou fazer uma bagunça tão grande que Astaroth não verá outra alternativa, exceto me enfrentar.

    — Você tem coragem — ela disse. — Espero que esteja certo. Mas… e se não estiver? E se ele for tão poderoso quanto contam?

    — Então morrerei como um tolo e ficará certificado para o mundo inteiro que minha ideia era errada.

    A resposta foi objetiva e sem emoção. Ele também não tem medo de morrer. Então é isso. O que fez você chegar a esse ponto?

    “Quem não tem medo da morte, não tem medo de nada”, seu irmão costumava dizer. Estou diante de um homem com essa determinação. Anayê só não sabia responder até que ponto tal ideal era bom.

    — De qualquer jeito, prefiro morrer assim do que viver com medo — ele comentou.

    Nisso, ela concordava plenamente.

    Porém, foi incapaz de dizer em voz alta porque um grito estridente atingiu seu ouvido. A princípio, ambos acharam ter sido apenas ilusão, mas bastou o berro ecoar de novo para perceberem que se tratava de alguém em perigo, mais especificamente, uma mulher em apuros.

    Nota