O líder dos gors se agitou.

    — Bosta! Cães! — E furioso arrancou alguns fios do cabelo. 

    Os outros olhavam seu líder com apreensão.

    A mãe do menino se voltou esperançosa na direção do barulho da carruagem.

    — Eu farei com que arranquem toda a sua pele! — ela disse para Anayê.

    — Não seja tola — repreendeu o líder dos gors. — Somos gors! Os generais nos odeiam, assim que chegarem aqui vão matar a todos.

    — Então vamos matar logo esses dois — a mulher sugeriu.

    Anayê apertou a adaga mais uma vez e o menino começou a chorar fazendo sua mãe recuar. O líder dos gors agarrou sua lança com força, mas sua atenção estava dividida entre os inimigos ali e a carruagem da oitava legião.

    — Venha logo, Boyak — chamou Anayê já em cima da carroça.

    — Não conseguiremos escapar a tempo, a carruagem deles é muito mais rápida — o ceifador explicou.

    Ela sentiu um tremor gelado percorrer seu corpo só de pensar em retornar para a fortaleza. 

    E, bastou esse instante de distração para que Boyak usasse sua velocidade e aparecesse em sua frente, tomando a adaga de sua mão. Aos olhos de todos foi como se ele tivesse se teletransportado. 

    Ela recuou por instinto enquanto o menino corria direto para os braços da mãe. Anayê fitou-o, incrédula.

    — O que você fez? Você não tinha o direito de fazer isso.

    Boyak não respondeu, desceu da carroça e se voltou para os gors. 

    O líder dos monstros ainda tentava compreender como aquele prisioneiro tinha se movido tão depressa. 

    Os gors levaram a mão às armas imediatamente, mas o ceifador não prestou atenção neles. Puxou seu frasco do bolso, molhou a ponta dos dedos indicador e médio e analisou o fluído de oração. Não restara mais do que um dedo dentro do frasco.

    Boyak se agachou enquanto os gors assistiam assustados sem saber se atacavam ou esperavam. 

    A mulher verificava o machucado no pescoço do filho resmungando alguma coisa que ninguém prestava atenção.

    Ao mesmo tempo, o ceifador correu com os dois dedos no chão desenhando um círculo em volta de todos em questão de instantes.

    — Se vocês querem viver, é melhor ficarem dentro do círculo — revelou.

    — Que tipo de bruxaria é essa? — indagou o líder do gors.

    — A carruagem está se aproximando — Boyak apontou. — Todos têm que ficar em silêncio.

    A carruagem era acompanhada por dois guerreiros a cavalo. Uma bandeira exibindo a runa de Astaroth junto ao número oito balançava quando o veículo parou.

    — Eu juro que vi uma aglomeração aqui, milorde — disse um dos guerreiros a cavalo.

    Eles vestiam um peitoral feito de ferro que era opaco e sem brilho. Ambos eram carecas e carregavam na testa a runa de Astaroth. Eles olhavam diretamente para o local onde todos estavam, mas não conseguiam vê-los.

    Da carruagem, um general desceu. Boyak o reconheceu como um dos três na sala do trono junto com Astaroth no dia da sua invasão. 

    Mas esse era o mais soturno dos três, aquele que nem pareceu ficar incomodado com a presença de um intruso na sala do trono. Talvez surpreso, mas não ameaçado.

    Esse general tinha uma aura intimidadora e depressiva. 

    Longos cabelos pretos e cacheados coroavam sua cabeça escondendo um rosto pálido desenhado por cicatrizes e por olhos púrpuras. Seu pescoço estava adornado com muitos colares e os pulsos com diversas pulseiras, além de dois brincos pequenos que pendiam de suas orelhas.

    As suas botas de couro abalaram o silêncio do ambiente estremecendo o ânimo daqueles que estavam dentro do círculo. Ele lançou sua capa branca para trás realçando sua imponência e autoridade.

    Ao olhar de relance, Boyak notou que todos estavam impressionados e atemorizados. 

    A opressão espiritual dele é muito poderosa, o ceifador ponderou consigo.

    Porém, Anayê parecia mais afetada. Os dedos seguravam a borda da carroça como alguém seguraria a borda de um penhasco para não cair e os olhos arregalados enfatizavam a sua tonalidade roxa, além de que, ela se encurvava suavemente sem nem perceber.

    Os guerreiros a cavalo analisavam o ambiente procurando qualquer vestígio dos fugitivos, mas o general observava as marcas da carroça e acompanhava o local onde o rastro tinha parado. 

    Ele caminhou tão próximo da linha que fez o ceifador se preparar para atacar.

    Isso está ficando cada vez melhor, ironizou em sua mente.

    Porém, a linha permaneceu intacta. 

    Se eu me concentrar demais, ele vai notar a minha aura espiritual.

    — Milorde, permita-nos avançar ainda mais para fazer a análise do perímetro.

    — Não será necessário — o pálido homem falou se ajoelhando próximo ao rastro da carroça. — Eles não foram embora.

    Os guerreiros olharam para o general, confusos.

    — Estamos sendo alvos de uma ilusão elaborada — Se levantou. — Alguém está querendo enganar nossos sentidos.

    — Mas que droga, ele nos descobriu — balbuciou o líder dos gors.

    Boyak ergueu o braço pedindo silêncio. A moral de todos os gors estava abalada, eles só desejavam sair correndo da presença daquele general. 

    Mais um pouco e a opressão espiritual dele vai fazer todos esses gors gritarem de medo.

    — Milorde nos perdoe — um dos soldados falou. — Mas não haveria ilusão capaz de confundi-lo.

    — Não seja tolo — o general repreendeu. — Apenas Astaroth tem tal poder. Eu não passo de um ser falível a serviço do verdadeiro todo-poderoso.

    As palavras causaram ainda mais horror nos gors. 

    Um deles suava através da roupa, mas não conseguia movimentar o corpo. E, tão logo vislumbrou o poderio do inimigo à sua frente, sucumbiu ao peso e caiu no chão.

    — O senhor tem…

    Dessa vez, o próprio general levantou a mão e imediatamente os soldados ficaram em silêncio.

    Os olhos dele examinaram minuciosamente o local. Embora não pudesse ver, estava de frente com Boyak.

    O ceifador retesou os músculos e conteve a respiração enquanto encarava as profundezas daqueles olhos enigmáticos. 

    O gor caído não se mexia e a cena fez seus companheiros temerem. Para eles, uma maldição havia disparada e matara aquele gor.

    As narinas do general se abriam e fechavam repetidamente. Os olhos infernais vasculhando. Ele deu mais um passo e fez uma faísca escapar do traço que Boyak desenhara.

    A opressão dele está comprometendo o círculo de oração? Esse não é qualquer inimigo. 

    Boyak considerou sua única alternativa: distrair o general e seus soldados enquanto os outros escapavam. Mas ele seria capaz de ganhar tanto tempo tendo tão pouca oração à disposição? Não dava para saber. Só restava a ele, lutar sem hesitar.

    Ao mesmo tempo, um sentimento de excitação consumia seu âmago. Enfrentar um dos principais generais de Astaroth seria interessante. Já havia confrontado muitos inimigos em seus poucos anos de ceifador, mas um general era um embate completamente diferente. Se eu pudesse vencê-lo faria o lorde sombrio repensar nos ceifadores?

    O rival continuava parado, sentindo o ar e vasculhando com os olhos. Seu semblante era impetuoso, sem temor ou hesitação.

    Sem querer, Boyak estava deixando sua aura se expandir. Contenha-se, garoto estúpido! A voz de seu mestre ressoou como um aviso e trouxe a responsabilidade que ele tinha em mãos de volta à sua mente. Fique calmo. O momento da luta pode esperar. Não posso lutar e me preocupar com essas pessoas.

    Tão logo ficou calmo, o general se virou e caminhou para a carruagem.

    — Vamos voltar para a estrada — ordenou. — Isso não passou de uma distração de nossos inimigos para ganhar tempo. Um de vocês deve comunicar aos outros generais que o intruso realmente sobreviveu mesmo após receber um golpe direto do lorde Astaroth. — Não falou, mas aquilo deixou uma pulga atrás de sua orelha. — Foi ele quem matou o farejador. Depois providenciem uma carroça nova para aquele casal de idosos pela informação.

    Um dos guerreiros acatou a ordem.

    — Devemos acelerar o passo — o general disse. — Eles não podem estar longe.

    O condutor da carruagem também acatou a ordem e foi seguido pelo soldado a cavalo.

    Enquanto a carruagem deixava uma trilha de fumaça, Boyak pôde finalmente soltar a respiração. E, seguindo seu exemplo, os outros também suspiraram, sentindo um peso ser retirado de seus ombros.

    O líder dos gors se voltou para o caído e descobriu que estava apenas desmaiado. A mulher com o menino ainda parecia presa em uma espécie de transe e só retornou a si quando o líder dos gors se aproximou para prestar suporte.

    — Essa passou perto — disse Boyak para Anayê. — Os generais não estão para brincadeira.

    A garota não respondeu, mas se sentou e percebeu que os dedos estavam machucados de tanto segurar a borda da carroça.

    — Mais um pouco e você teria arrancado fora — Boyak apontou para a borda.

    Ela continuou quieta. Seu semblante assustado fazia parecer que o general ainda estava ali.

    — Algumas aberrações liberam sua aura espiritual na intenção de desesperar o inimigo — ele explicou. — Isso tem efeitos horríveis na mente de uma pessoa. Desespero, ansiedade, loucura, raiva. Mas tudo o que aquele general esperava era que, um de nós, amedrontado por sua opressão espiritual, cedesse e revelasse nossa posição. Porém, o círculo de oração manteve parte da nossa capacidade de raciocínio intacta e nos impediu de realizar o desejo dele.

    Boyak imaginava que a explicação ajudaria Anayê a se recompor um pouco, mas ela continuou com aquele terror nos olhos.

    — Você vai ficar bem — ele tocou o ombro dela.

    Finalmente, os olhos dela fitaram-no e ele percebeu que não era apenas medo estampado em seu semblante, era também ressentimento.

    — Boyak… — a fala saía como se ela estivesse engasgada. — O general… ele é meu irmão.

    Nota