Capítulo 23 - Kiota A Estranha.
O caminho até o depósito parecia mais longo do que o normal, e, a cada passo, mais questões surgiam na minha mente. O relógio no meu pulso, a presença de Okawara, a atitude de Arushi… tudo parecia se entrelaçar de uma forma estranha, como se houvesse uma rede de mistérios ao meu redor.
Era melhor eu ficar atento a cada detalhe e movimento, porque sabia que, de alguma forma, esse jogo de desconfiança estava apenas começando. Eu não podia baixar a guarda.
Arushi e eu estávamos caminhando até que ele parou e apontou para a construção à nossa frente com um sorriso.
— Pronto, aqui estamos. Este é o famoso depósito.
O lugar parecia estar afastado de tudo, situado no sudoeste da escola, à direita do mercado central. De lá, era possível ver o muro alto que cercava toda a escola ao fundo, o que dava a impressão de que o local era isolado do restante do campus. Não era grande, mas parecia bem cuidado.
— Nossa, eu esperava que esse lugar fosse abandonado, já que está tão longe de tudo. Mas até que está bem arrumado e limpo! — comentei, observando o local.
— Claro que não. Tudo o que está dentro do campo da ESA é bem tratado. Além disso, são os próprios alunos que cuidam da limpeza e da organização. Isso até ajuda a ganhar pontos. — explicou Arushi, com um tom satisfeito.
— Entendi. Vamos entrar então!
Entramos e seguimos direto para a recepção. Dois homens estavam sentados lá, mas apenas um nos olhou com curiosidade.
— Olá, boa tarde, meninos! O que desejam? — perguntou o homem, com um sorriso educado.
— Ah… oi. Me chamo Yuki. Cheguei recentemente à escola e meus pertences estavam sob fiscalização. Vim buscá-los de volta. Você pode me ajudar? — indaguei, tentando parecer o mais casual possível, embora um pouco nervoso por dentro.
— Sim, com certeza. Você pode seguir à direita e, depois, virar à esquerda. Lá você vai encontrar a Kiota. Ela é responsável pelos pertences sob análise.
— Tá bom. Muito obrigado, moço! Até! — agradeci, acenando enquanto me virava.
Seguindo a direção que o homem me informou, eu percebi um comportamento estranho do Arushi ao meu lado.
Ele estava fazendo movimentos com o nariz, como se estivesse farejando algo.
Inquieto, eu perguntei: — Tudo bem com você, Arushi?
— Aqui tem um cheiro agradável, né? — comentou Arushi, sorrindo, ignorando minha pergunta.
Logo lembrei, que ele tinha esse hábito de perceber e comentar sobre os cheiros ao redor. Algo nele fazia com que notasse os detalhes mais sutis.
— Ah, sim, dá uma sensação de felicidade. De tranquilidade também! — comentei, sentindo o aroma leve e doce no ar.
— Me lembra o cheiro das cerejeiras. Um cheiro doce, sabe? — disse ele, com brilho nos olhos.
— Cerejeiras… são aquelas árvores com flores brancas, certo?
— Uhum. Mas elas têm três cores no Japão: rosa, branca e vermelha. Aqui na ESA e no Horizonte temos as rosas. São lindas, né? — disse Arushi, claramente encantado.
— Sim, são mesmo lindas!
Essas cerejeiras seriam um presente perfeito para a minha mãe. Eu sentia falta dela. E uma flor rosa, suave como aquele aroma no ar, parecia simbolizar bem o que eu queria expressar.
— Mas, como sabe que no Japão tem essas 3 cores? — indaguei, com um olhar curioso.
— Como nós nascemos no Japão então nossos pais sao japoneses, certo? Por conta disso quando eu nasci minha mãe deixou para mim um livro da natureza japonesa, como um presente de desculpas por me entregar para o governo!
— Entendi! Que legal isso, você pode me mostrar esse livro depois? quero ver tudo que tem nele! — disse, meus olhos vibrando com a animação.
— Com certeza!
Após nossa pequena conversa, chegamos ao local indicado. Lá, encontramos uma mulher quase do nosso tamanho.
Ela vestia o mesmo uniforme branco dos outros funcionários, mas com personalizações sutis — as mangas, o pescoço e a gola tinham detalhes em linhas rosas, dando um toque delicado ao conjunto.
Seu cabelo, dividido ao meio e preso em dois pequenos rabos de cavalo, era peculiar e, de algum modo, fofo. Ela estava de pé, lendo um livro, a cabeça abaixada, completamente concentrada.
— Olá, está me ouvindo, Kiota? — perguntou Arushi, quebrando o silêncio.
Ela, com o livro cobrindo parte do rosto, moveu-o um pouco e revelou um olhar surpreso, como se estivéssemos quebrando um longo período de solidão.
— Haam?
Ela abriu a boca num gesto de surpresa, fazendo uma expressão como se a nossa presença fosse um grande acontecimento.
— É… tudo bem, moça? — perguntei, hesitante diante da reação dela.
De repente, ela jogou o livro contra a parede e levantou os braços, gritando de alegria:
— CATAPIMBAS! FINALMENTE ALGUÉM APARECEU AQUI!!
Arushi e eu ficamos parados por um segundo, sem saber o que fazer. Ela parecia completamente fora de si, mas de algum modo… feliz demais.
Kiota veio correndo na nossa direção. Instintivamente, recuamos alguns passos, surpresos com tanta energia.
Ela parou bem na minha frente e, sem aviso, apertou minha bochecha com força, olhando fixamente nos meus olhos.
— VOCÊS SÃO REAIS?? OU EU TÔ FICANDO LOUCA E TÔ VENDO COISAS?
Com a mão dela esmagando minha bochecha, ficou difícil responder.
— Somos… sim! — murmurei, com a voz meio abafada.
— TA!! Então tudo certo! Isso foi só um teste pra ver se vocês estavam preparados pra um ataque… e vocês falharam! DAN! Que peninha! — disse ela, apontando o polegar para baixo.
Ela era… estranha. Eu não sabia se ria ou ficava tenso. Mas, com minha bochecha sendo esmagada, rir estava fora de cogitação.
— Isso não faz sentido! Por que uma menina atacaria dois meninos no depósito? Nossa reação foi de desentendidos! — comentou Arushi.
Ela o encarou mas ignorou completamente o que disse. — Enfim, meninos, se estão aqui é porque precisam pegar algo da fiscalização, certo? São novatos?
— Ah, sim! Meu nome é Yuki. Eu cheguei mês passado na ESA, e me disseram que minhas coisas estavam aqui, entao vim buscar. — expliquei, tentando soar calmo, mesmo com a mão dela ainda no meu rosto.
— Certo! Deixa eu olhar aqui nos registros! — disse ela, finalmente soltando minha bochecha e indo até um computador. — Hmmm… Yuki, né? Ah! Achei! Vem comigo, por favor. Só você. O outro fica aqui!
— Ah… certo então — disse Arushi, se aproximando e cochichando no meu ouvido: — Cuidado com ela. Muito estranha essa menina.
— Sim, vou tomar cuidado. Obrigado, Arushi — cochichei de volta.
Mas, antes que eu pudesse me afastar, Kiota surgiu repentinamente atrás de nós.
— O que vocês estão cochichando aí? — perguntou, com um sorriso travesso.
— AAAH! Como você… como você chegou tão rápido atrás da gente??
Eu fiquei chocado. Não a vi se mover.
— Vocês que são lerdos! — respondeu ela, com um sorriso. — Vamos lá, Yuki. Não tenho o dia todo. Mesmo feliz de ter alguém aqui pra me fazer trabalhar, ainda quero terminar meu livro.
Com um movimento rápido, ela se virou e entrou por uma porta branca com a inscrição “Somente pessoas autorizadas”.
— Certo… — murmurei, hesitante, mas a segui.
Dentro da sala, o ambiente era simples, mas organizado. Muitas prateleiras com gavetas etiquetadas, tudo bem alinhado. Era como um pequeno arquivo — mas algo me dizia que não era apenas um depósito comum.
— Essas gavetas têm coisas fiscalizadas de todas as crianças que entram aqui? — perguntei, curioso.
— Sim! — respondeu ela animada. — Os pertences passam por uma fiscalização, depois uma validação. Se estiverem ok, são devolvidos. Se não, ficam aqui até serem tratados pelo laboratório.
— E se tiver algo perigoso?
Ela me encarou de forma suspeita. Eu congelei. Será que ela pensou que eu estava escondendo algo?
— Se for perigoso, como uma arma ou objeto com ponta, fica aqui até o dono se formar — disse ela, ainda me encarando. — Você tá escondendo alguma coisa?
— N-não! Jamais! Pode olhar tudo, eu não escondi nada!
Ela manteve o olhar fixo, depois se virou em silêncio.
— Ehh… você tá bem? — perguntei, cauteloso.
Kiota parou, virou-se com um sorriso largo e voltou a apertar minha bochecha.
— Você é real mesmo??
— Sim… eu sou. Por quê?
— Hmmm… só pra confirmar mesmo. Às vezes acho que tô ficando louca, sabe? Hahaha!
Ela voltou a caminhar como se nada tivesse acontecido.
— Estranha… — murmurei.
Depois de alguns segundos, ela trouxe uma caixa enorme, provavelmente minhas coisas devem estar dentro.
— Bom… aqui está sua gaveta. Deixa eu ver… senha, senha… ah, sim! Achei!
Ela abriu a gaveta e sorriu.
— Pode pegar seus pertences, amiguinho.
Olhei dentro e vi minhas coisas: o cubo mágico da Emiko, o anel da minha mãe, algumas roupas… Um alívio me invadiu.
— Que maravilha… finalmente minhas coisas. Quanto tempo… — murmurei, sorrindo.
— Certo! Agora vamos voltar pra minha mesa. Você precisa assinar uns papéis! — comentou Kiota, pegando uma pilha de documentos.
Eu não sabia o que viria a seguir, mas, pelo menos agora, o que era meu estava de volta.
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