Capítulo 10: O Contragolpe
Chuviscou sobre os prédios mais altos da cidade, mais do que se previa para aquela noite. O cair de cada gota agora não era mais ensurdecido pelo trânsito, como se uma arena recebesse, depois de tanto tempo, cada uma delas com toda a alegria de lhes prestar condolência, pois antes não tinham voz para superar a cidade.
O bairro de Toshima foi travado por todas as partes, assim como os metrôs, também paralisados; parecia que o mundo queria descansar de sua rotina incessante e exaustiva, que de certo modo, se desagradou por ter sido interrompida tão cedo.
Há muito tempo atrás, foi escolhido que o ciclo da vida passa por um lugar, como o de uma rua. Porém, como medida de segurança, a polícia proibiu o tráfego de passar pela avenida Gekijo-dori em uma distância de pelo menos cinco quarteirões, isolando quase toda a avenida do resto da cidade.
Apenas os pedestres tinham direito de fazer a conexão direta até a direção da Estação de Trem, mas era muito tarde para que escolhessem caminhar ali. Quando parte de sua iluminação ficou apagada, assim como os postes de frente à delegacia permaneceram desligados, ficou mais claro que a penumbra da madrugada veio pior para os que não a conheciam.
Mas não era madrugada, pois ela demoraria para chegar, e sofreria resistência dos que a cruzarem. Já era tempo, o relógio bateu às 23:00 em ponto, marcando quatro horas de irresolução, fazendo nota a qualquer um que passasse pela estrada para que escolhessem ficar em casa, pois o tédio da vida comum não foi remediado a longo prazo pela expectativa de presenciar uma mudança na rotina da modernidade.
Os que ligavam as luzes, quebrando o silêncio tão grotesco do bairro, eram os que apenas viam a televisão para haver certeza do que estava tão próximo e sonoro diante deles. Não havendo mais opção de onde saber, eles confiaram seu conhecimento na voz dos olhos externos, aqueles corajosos que levavam as câmeras para a linha de frente.
A rua mantinha parte de suas luzes acesas, mas ficou deserta, como se fosse ocupada fantasmas, sem mesmo nenhum sinal de algum policial para fazer valer a proibição de circulação por aquela via. Era como se a noite os chamasse para dormir, e em seguida desobedeceram para testemunhar o sofrimento alheio.
Cada um acomodado com suas preferências, pela voz ou pela ideia, mas certamente reclusos, amedrontados; a mente obrigava a alma a obedecer seus comandos, e sua curiosidade pelo perigo. Era como uma tentativa banal de fugir da realidade e senti-la em meio ao caos, pois não há outra chance de senti-la melhor senão na pressão.
A chuva antes fraca começou a crescer, e a se deslizar sobre o céu até cair sobre o prédio. Lá no alto ventava mais, sendo maior que seus vizinhos, mas jamais igual aos grandes do centro da cidade. Algumas luzes piscaram entre as nuvens, chocando-se entre si numa batalha interminável, mas em silêncio, sem muita força. Quando uma delas, no entanto, embranqueceu a nuvem toda por uma fração de segundos, um vulto o subiu, à sua semelhança, como um trovão.
“Pedindo checagem de sinal. Como me escuta, Dr. Yezi?”, da lateral do prédio, ouviu-se uma voz. Ela havia pressionado um botão sobre seu pescoço e o segurou até passar a mensagem. Assim que se aprumou, puxava um gancho fixado sobre o parapeito da cobertura, lutando contra a madrugada, e testando a dureza de seu concreto.
“Em alto e bom som, Príncipe Oyakawa”, respondeu o nomeado.
“Espero não tê-lo deixado esperando, não é? Estou na área de missão”, ofegou. Yezi riu, e então sorriu com aquela expressão tão cafona.
“Ah! Finalmente, se continuasse minha morte seria antecipada!” , exclamou, incrédulo. “É um prazer vê-lo. Já nos vimos antes, mas vou ressaltar mesmo assim, porque há muita coisa que faz a cabeça flutuar nas nuvens de estresse. Isso vale muito mais para as suas.”
“Sim, Dr. Yezi, e do jeito que está chovendo aqui, eu realmente pareço estar nas nuvens. Eu gosto assim”, Itsuki respondeu. Ofegava de esforço para subir ao prédio, assim como sentia o aperto da fivela de sua corda que o prendia ao cabo que levava ao gancho. Assim que chegou, ele subiu a mureta e se agachou para se desprender dela.
“Haja concentração, Itsuki. Já vou adiantar para não enrolar: todos de casa estão torcendo por você, sua mãe pediu para lhe mandar um beijo. O seu pai, por um lado, está sendo mais chato que o usual porque ele está com os pés ao ar para vê-lo em ação.”
“Só, por favor, não deixe que eles façam sua cabeça. O que começamos nós sempre terminamos”, explicou Yezi.
“Prezo tanto por eles que seria melhor não contar sobre isso, Dr. Yezi”, respondeu Itsuki. “Eu não saberia mais o que fazer da minha vida se não fosse ela. Porém, ela não teria tanta paciência com nossa aposta.”
“Faz mais bem que saibam sobre nós: sua mãe é uma pessoa boa, muito inteligente e feliz. É sagrado, todas têm uma parte ainda presa no filho que dói. Algumas um pouco mais”, disse Yezi, respirando fundo para estabilizar seus próprios pensamentos, relembrando de seu juramento consumado. “Torçamos para que a mesma força de vontade do seu avô esteja consigo. Sua mãe conserva orgulho não por qualquer razão.”
“Não vou desanimá-lo. Jamais o chamarei de ‘trabalho’, já que lhe seria um insulto pelo tanto que não gosta da palavra. Mas, trabalho como esse: sem igual. Ele me atrasou para caramba”, disse Itsuki, e logo sorriu brevemente.
Assim que ele terminou, então puxou as amarras com uma corda extra presa à principal, para trazer a fivela mais perto de si. Porém, por um momento, desceu-lhe uma má sensação, como a de um comando que o fazia lembrar de sua hesitação e profunda memória.
“Eu não vou me ensopar à toa na chuva para adivinhar o que acontece embaixo, Doutor Yezi!”
“A vida não é fácil, nem mesmo meu trabalho. Eu não me apresso como vocês, muito mais pelo pacto que eu fiz!”, aconselhou Yezi. “É bom que se lembre da Serpente Espelhada: ele gosta de dizer o quão a vida é um desafio, mesmo sem saber que ele próprio que a vida dele não é tão fácil quanto ele pensa.”
“E ele nunca falou a verdade sobre seu mestre antes que ensinou a ele essas coisas”, indagou-se o jovem. “Às vezes penso que ele inventa essas coisas da cabeça. Até hoje ele não tem discernimento nenhum com a realidade.”
“Melhor não dar nomes, ele não fala, mas discursa! Alto, ainda por cima. Fica pior quando ele acorda no momento que é chamado! Ele é insuportável demais”, retrucou Yezi, rindo. Itsuki por sua vez, acenou em entendimento, enquanto colocava levemente as mãos sobre a cintura, para checar se não havia perdido alguma coisa bem importante.
Logo depois, se revirou, para arrumar sua postura para que pudesse respirar. Lembrava-se bem daquele encontro, como se fosse
“Eh, um dia eu vou fazê-lo pagar por cada pancada que levei caindo naquela motocross“, disse Itsuki.
“Não é preciso dizê-lo. Você não me alcançaria”, acenou, sorridente.
“Vai ter que me compensar a noite de sono para hoje!”
“Você nunca teve um sono bom jogando aquele jogo de tiro com seus amigos russos. Você sabe o que escolher”, riu.
Então, Yezi aumentou a frequência e trocou o canal para que eles não fossem facilmente percebidos. Logo, ele preparou o celular dele, que vibrou no momento em que se completou o pareamento. Itsuki pegou-o em mãos e pressionou para sintonizar seu receptor de imagens.
“Seu pareamento de seu sistema de imagem foi um sucesso – sem demora dessa vez”, respondeu.
“Para falar é muito bom. Mas onde você estaria para resolver o problema…?”, gargalhou Yezi.
“Corte essa: estou elogiando seu trabalho!”, retrucou novamente, porém, com mais rispidez para tampar-lhe o riso.
Assim, o jovem puxou a mesma fivela para inverter o sentido dela. Com um breve esforço para estendê-la, ele deu outro clique, e com dois agarrões, uma confirmação desceu sobre seus dedos. Nesse momento, Itsuki havia ficado mais do que alegre depois de quebrar a própria cabeça para atar cada um dos nós necessários para que o sentido de sua corda invertesse para o outro lado.
“Esses nós são um saco de fazer. Quais são as instruções, Doutor Yezi?”, perguntou.
Enquanto isso, Itsuki tomou seu tempo para fixar a corda com alguns últimos ajustes. Logo depois, virou-se para ver o prédio, e não demorou para ainda se espantar com a altura. Quando se sentia amedrontado pela altura, fechava os olhos, como se um baque passado viesse para lembrar que não havia o que temer; estava longe de ser a pior altura pela qual ele passou. Mas o semblante escuro e desguarnecido da cidade não lhe parecia ser do maior agrado, lembrando-lhe de que ainda haveria de fazer uso de um bom plano de fuga.
“É necessário admitir também. Queira ou não, Itsuki, mas está visível até demais essa falta de vergonha!” — Exclamou, enquanto balançava, nervoso, os braços. “Está todo desolado esse lugar. Nem parece que estava funcionando normalmente há um tempo. Passou de uma reforminha para uma obra inteira num passe de mágica.”
— “E armaram toda essa mentirada sem um crime a céu aberto, sem mesmo inventar algo grande como o da estação. Nem se deram ao trabalho de esconder direito que não existe operação por aqui. Não faço a mínima ideia do que toda essa porcaria significa!”
“É difícil vê-lo positivo com as coisas, Yezi. Presunçoso, isso eu posso dizer que sim. É a política, a cidade, os preços, a gasolina. Quando algo bom acontecerá para o senhor? Duvido que a Fórmula 1 esteja sempre assim”, perguntou Itsuki.
“Todo ano é uma regra nova, está sempre assim!”, declarou rispidamente. “A federação não deixa os engenheiros inovarem e trabalharem como se fizessem de burocratas! Eu sei lá o porquê! Não me faça de bobo perguntando o que eu não sei, sendo que eu vivi muito essa vida. Dá para ver quem é sacana direitinho quando ele não diz nada!”
“Há solução para muitas coisas, bastando apenas nos atentar. Nada dá certo estando com a cabeça dura”, respondeu-lhe o jovem. “Você seria muito mais rápido reprogramando uma injeção eletrônica se eu o ensinasse a mexer no computador, velhote.”
“Era sua teimosia que deveria saber escolher! Eu estou feito como pedra. Qualquer jovem deveria pensar mais e mudar”, desleixou-se, “por isso, sou jovem de cabeça.”
Mas ele não se desanimou com o serviço, embora fosse desleixado para se concentrar nesse serviço tão exaustivo quanto o de controlar essa missão. O engenheiro murmurou por um tempo, estalando-lhe a boca até abaixar os olhos desapontados.
“Tsc, mas não me julgue errado: pensei que algum bicho tivesse mordido a polícia, depois de tanta eficiência e rapidez que nunca vi antes. Foi maravilhoso, mas bom demais para ser verdade.”
“Para fazer o trabalho dos supervisores, nós entregamos o dobro!”
De antemão, Itsuki pôs os pés sobre o parapeito, e então observou a estação de longe. Um helicóptero sobrevoava o edifício, e várias luzes piscavam, com cores e intensidades diferentes. Puxou a corda para testar seu nó, e a fivela escapou por um pouco. Depois, apertou-o mais. Naquele momento, ele pensava sobre os esforços da polícia, se deveria ir além, ou ser mais cauteloso, sem tanta confiança para seguir em frente através daquela estratégia. Sentia-se desviado de seu propósito, como se faltasse peças para esse enigma.
“Daqui para frente, o que resta para brincar é com jogo de observação”, disse. Então, o celular de Itsuki apitou, e lhe foram enviadas as imagens da Estação, e também das regiões ocupadas. Ao se deparar com elas, seu peito se pressionou de súbito, pela preocupação de ver que todas as entradas da estação foram bloqueadas, à deriva do descontrole.
“Poderia confirmar se não estou percebendo alguma coisa? Está tudo limpo”, indagou-lhe, como se esperasse não menos, em certa medida, a contundência seu supervisor.
“Melhor não tapar o sol com uma peneira, porém só saberemos mais adentro”, respondeu-lhe. “Não estou falando para nadar de braçada, ou entrar numa curva sem aderência. Uh, você já me entendeu, não me lido bem com essas expressões! É que não existem muitos bons indícios de que chegará alguma autoridade aqui. O risco aumentou.”
“Está bem. Mas omissão não é parte da nossa lei. Seria difícil defender um lugar desertado no tribunal, e ele já me assusta até demais. Quem largaria tudo isso para os ratos pegarem e saquearem?”, questionou ao alto, indignado.
“Se é descartável, então que pareça como lixo. É como tem sido”, respondeu. “Tenha em mãos a razão para essas coisas, é inacreditável! Não é nada normal isso. A brincadeira agora é de que se trata de manutenção, e desmentiu quaisquer rumores, sem qualquer hesitação. Ou seja, não havia nenhum perigo. ‘Circulando, vão embora, não há nada a ser visto!’, é como diriam.”
“Mas havia um detalhe que estava faltando: toda a urgência e desespero, raramente vistos numa instituição tão burocrática, nasceram na cabeça desses mesmos desinteressados de lá! Não quis ser despretensioso, senão, você já teria achado que estou querendo apontar dedos.”
“Não só os das mãos, mas os dedos dos pés também”, caçoou-o Itsuki.
“Seria um ledo engano seu!”, disse Yezi, “afinal, todos queremos que a polícia valha de algo, mas não existem mais idiotas nesse mercado do crime. Menos ainda para mim, pois não sou bobo, e tenho o costume, às vezes, de deixar a ficha cair rápido demais para mim. Não era estupidez, é sério: aquilo parecia um amadorismo misturado com sagacidade, tolice abraçada com a astúcia do improviso.”
“Em todo lugar existirão pessoas estúpidas, mas por algum motivo, aqui não poderia.”
“Pois bem! É aí que vem a parte esquisita: descobri que grande parte dos engenheiros responsáveis pelas viaturas foram acionados na operação e não estão mais na delegacia, foram todos para a linha de frente. Desde quando que, para entrar na polícia, é necessário um diploma em mecânica? Claro que não.”
O jovem então assentou-se sobre o resguardo do prédio, e mais uma vez testou a resiliência da corda. Estava firme, tal como as amarras no seu cinto, para que ele se apoiasse. Pegou a fivela e então puxou a segunda corda dela, a que usaria para retirar o nó e recuperar todo o seu equipamento. Ficou em pé sobre o parapeito, e mais uma vez checou sua corda, para que ela estivesse firme, e não hesitou para fazer quantos testes durante seu tempo. Então, ergueu seu rosto, e respondeu Yezi, para se acalmar.
“Concordo, eles não sabem de nada. Implicam comigo no que não sabem!”, Itsuki riu, encaminhando-se sereno a pensar se lhe custava o preço de suas desventuras às ruas. “É divertido. Prefiro que toda a polícia seja assim.”
“Ainda bem que é você quem paga: com o tanto de multa sua, você faria qualquer um rico com isso. Nosso amigo não estava querendo dinheiro para financiar uma moto?”
“Nunca, o Mikami vai ter que ralar!”, rasgou-lhe. “Não saberia gastar um centavo: duvido que ainda esteja com paciência para isso. Deve haver um bom motivo para ele não querer andar perto do oficialato do centro. Quero dizer, ele trabalha aqui também, caramba!”
“É seu velho jogo de confiança que nos atrasa mais do que ajuda”, murmurou Yezi.
“Fugir dele seria difícil se você estivesse no meu lugar! Quem não pensaria nisso? Esse prédio está apodrecendo, parou como se sequer existisse mais! Virou pique-esconde da polícia?! Cadê o representante do comissário para proteger o lugar?”
“Pois bem, aí está o problema: onde poderia estar o Comissário a essas horas? Na boate? Dormindo, ele não está!”, seu tom ficou assertivo, requintado com um olhar cuidadoso na fala, mas uma dúvida irresoluta, “pois é, Itsuki, dessa vez, eles cansaram de fingir ignorância. Eles querem muito mais.”
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