Então, Itsuki assentou-se sobre o resguardo do prédio, e mais uma vez testou a resiliência da corda. Mordeu a língua de nervoso, pelas coisas que enxergava. De todo modo, o cabo estava firme, tal como as amarras no seu cinto, para que ele se apoiasse. Logo em seguida, ele pegou a fivela e puxou o segundo cabo. Ele serviria para retirar o nó e recuperar todo o seu equipamento se necessário. Finalmente, ele ficou em pé sobre o parapeito. Não hesitou fazer quantos testes fossem possíveis durante seu tempo de subida, assim como perguntas que diluíssem sua ansiedade pela grande missão que o aguardava.

    “Eles não sabem de porcaria nenhuma quando implicam comigo”, Itsuki riu, encaminhando-se sereno a pensar se lhe custava o preço de suas desventuras às ruas. “Mas depois fui aprendendo que é divertido e melhor. Prefiro que toda a polícia seja assim.” 

    “Ainda bem que é você quem paga: com o tanto de multa sua, você faria qualquer um rico com isso. Nosso amigo não estava querendo dinheiro para financiar uma moto?” 

    “Nunca, o Mikami vai ter que ralar!”, rasgou-lhe. “Não saberia gastar um centavo: duvido que ainda esteja com paciência para isso. Deve haver um bom motivo para ele não querer andar perto do oficialato do centro. Quero dizer, ele trabalha aqui também, caramba!” 

    “É seu velho jogo de confiança que nos atrasa mais do que ajuda”, murmurou Yezi.

    “Fugir dele seria difícil se você estivesse no meu lugar! Quem não pensaria nisso? Esse prédio está apodrecendo, parou como se sequer existisse mais! Virou pique-esconde da polícia?! Cadê o representante do comissário para proteger o lugar?”

    “Pois bem, aí está o problema: onde poderia estar o Comissário a essas horas? Na boate? Dormindo, ele não está!”, seu tom ficou assertivo, requintado com um olhar cuidadoso na fala, mas uma dúvida irresoluta, “pois é, Itsuki, dessa vez, eles cansaram de fingir ignorância. Eles querem muito mais.”

    “Aquele homem nunca nos dá uma pista sobre onde está”, redarguiu, cercado de estonteio, “se houvesse ao menos um comissário que prestasse para existir, pelo menos. Não fica melhor abaixo. Manabu é um outro babaca sumido”, o engenheiro assentiu cuidadosamente, enquanto um som estático penetrava seu microfone, lembrando uma televisão ligada sob um tom contínuo de uma voz.

    Yezi se acautelava dentro de seu lugar predileto e também centro de operações, a Fortaleza da Luz. Era uma garagem espaçosa, porém robusta que estava separada pela distância do rádio. Com pouco movimento àquela hora da noite, estava sozinho Yezi, assentado em uma cadeira giratória; no seu colo, havia duas latas de energético e uma chave inglesa, sem razão clara. O vento uivava através das frestas de seus portões, balançando-o gravemente tal qual um galpão abandonado em meio ao inferno urbano, como uma imagem desejável, repleta de suficiente sigilo.

    “Estão transmitindo as preliminares. O cerco começou, todo armado”, respondeu-lhe Yezi. “Nunca vi isso na minha vida. São 183 pessoas tomadas como reféns. Um andar inteiro fechado e bloqueado no passe de um único instante num desembarque. Todas as viaturas especiais estão dispostas na operação. Daqui a pouco, chega o esquadrão de forças especiais para forçar uma entrada.”

    “Pelas três joias de Buda!”, exclamou Itsuki, “de quem eles receberam treinamento militar?”

    “Virtualmente, podemos dizer que ninguém sabe”, apontou-lhe, “mas não é improvável.”

    “Trazer armas a céu aberto em plena capital, não dá, Yezi”, duvidou Itsuki, “com câmeras de vigilância em cada rua e avenida ligados a um banco de dados do governo. Nos últimos anos, quem faz as mixarias aqui no Japão…para falar a verdade mesmo, ficam em cultos a maior parte das vezes.”

    No entanto, Yezi respirou fundo, e levantou da cadeira, fazendo com que as latas caíssem de seu colo. Olhou com mais atenção sua televisão, embora parecesse mais interessado no que ouviu, ao colocar-lhe o rádio bem próximo ao ouvido.

    “Onde está o seu relatório, aquele do partido? Ele deve ter alguma coisa”, exclamou, antes que se deparasse com uma pasta jogada sobre a escrivaninha, “ele tinha me dito que deixaria na mesa, mas adivinhe só o que meu filho abestado fez? Nada.”

    “Tenha coragem para pôr a mão aí. O governo é uma ninhada muito feia. Aprenderam com os melhores”, disse Itsuki, e logo deu dois passos para trás, agarrou as cordas com as duas mãos e se agachou, pronto para pular. “Tive que pedir ajuda. Jiahao só me entregou ontem de noite. Ele está por aí. Vai encontrar relatório das contas prestadas. É ouro valioso tudo que está aí, porque o Mikami sabe inventar motivos além de multas.”

    “Não tem brincadeira com minha família e meu filhote: é astúcia que vem do sangue. Mas sorte não cai na mesma prole, nem para meu irmão”, sorriu, com um leve clique para encerrar temporariamente seu ruído.

    Ponderou, por longa consideração, se as informações daquele documento eram verídicas o suficiente para estarem lá, crendo que uma decisão arriscada como a de ir em plena delegacia fosse uma decisão inadequada. Logo depois, um leve bipe, acompanhado de uma luz verde do celular, indica que os dados do documento foram carregados;

    “Sei lá qual é a sujeira que está embaixo desse prédio”, indagou Itsuki, “mas essa indiferença é muito arriscada. Se eles tivessem a situação no controle, talvez…”

    “Há muito tempo que perdi a paciência com os rumores”, avisou Yezi. Logo depois, mandou alguns nomes no celular, e mais uma vez, o jovem abriu o telefone para lê-los. Cada um veio com uma imagem, as prováveis identidades, e também a afiliação, que já eram estudadas há um tempo por ele.

    “Existe uma maneira fácil de burlar as câmeras. E isso parece que bate com as deduções de sua pesquisa. Mais do que imagina. Doações a instituições de caridade não são a única desculpa dada pelo governo.”

    Um gráfico apareceu no celular dele, que mostrava o número de estrangeiros exilados, desaparecidos e refugiados, comparado com a porcentagem de gastos do governo atual e sua filial partidária com ações filantrópicas dentro e fora do governo atual.

    O jovem momentaneamente se viu suspeito, mas interessado pela proposição de Dr. Yezi. Depois, outro gráfico mostra o crescimento gradativo de afiliados a Yakuza e a outros grupos mais tradicionais dentro da sociedade japonesa, mas depois, o caminho que a linha passava mudou drasticamente, considerando apenas os grupos de índole radical, formando um padrão com os gastos governamentais e a chegada de estrangeiros ao Japão.

    “Bingo,” suspirou Yezi, aliviado.

    “Não brinca!”, levantou o rosto, olhando para o céu nublado, tentando desviar suas pupilas da altura. “Então isso significa que boa parte dos estrangeiros vão atrás de subempregos na máfia. Essa estatística é atualizada?”

    “Praticamente nova.”

    “A imigração russa passa despercebido pela vigilância…”, suspirou incrédulo.

    “Sim, Itsuki! Você vai adorar: por que os russos trocariam vodka por saquê, é uma loucura sem tamanho. Só se for uma oportunidade muito boa. Podem ser seus amigos.”

    “Essas não são palavras caridosas, meus amigos vão saber disso”, retrucou-lhe, alarmado. 

    “É o que eles mais têm precisado. Ei-los aí: Voluntários do Dever, parece que é um outro nome para não ficar feio de olhar para o passado no exército russo”, guiou, com cautela para definir os próximos passos a serem definidos. Todos tinham os rostos cobertos, apesar dos olhos estarem aparentes, além da altura e da carreira que tiveram, comparados com os passaportes registrados na imigração japonesa. Certamente, a identidade deles não batia, menos o nome. 

    “Eles não passam longe um momento de um buraco para se afundar. Que infelicidade!”, retrucou o jovem, “chamaram reforços?”

    “Ficou muito corpulento em pouco tempo, alguma ajuda veio. Ganharam muita fama aqui por seus serviços prestados à política interna do crime organizado. Vários dos membros novos, incluindo alguns exemplos do alto escalão, constam por aqui como estrangeiros, e, abre aspas: com vasta experiência em guerras no ocidente. Um deles até possui nome: Lobo da Chechênia.”

    “Ah, se lasque tudo! Um Kadirovita nesse fim de mundo para todo mundo ver! Ponha improvável: é impossível que ele tenha saído do Cáucaso para vir num lugar desses. Que tipo de fonte é essa?!”, resmungou. Quando parou para analisá-lo, viu um semblante sinistro, todo coberto, mas armado até os dentes, e várias marcas de sangue sobre o rosto. No outro lado, estava seu passaporte, que mostrava um homem muito mais jovem, com pelo menos vinte anos; eles aceitaram documentos com fotos desatualizadas.

    “Essas informações se perdem muito fácil na deep web. Pode ver aí que o currículo de cada um foi enviado a alguns escritórios da Yakuza, e em todos eles foi enfatizada sua experiência recente de combate. O único combate real no qual teve participação da Rússia não poderia ter sido outro.”

    “Eles não são burros! Por que infernos eles estariam aqui?”, disse Itsuki, e então agarrou seu telefone mais de perto. Logo depois, deu um zoom leve e imediatamente reconheceu a forma de um lobo bordada sobre um uniforme. “Quão inesperada é a roda da vida. A feição dele, a altura, até mesmo o brasão, todos batem. Como poderia…?” 

    Sua voz ficou fria. Depois, olhou a tela do celular mais de perto, com atenção para aquela imagem de baixa qualidade de um homem mascarado com óculos escuros. Travou seus olhos sobre aquela visão, e hesitou.

    “Ele é um criminoso muito problemático, nem os mais violentos do pelotão dele conseguiam conviver direito consigo, nem seus inimigos, tampouco os amigos. Foi por uma dessas que ele foi deportado, mas ninguém o capturou. Nem ele próprio, porque ele não controla, nem diante do presidente russo em pessoa.”

    “Se houver poder incontrolável demais às mãos, o que se faria de melhor?”, sua pergunta aguardou pelo ponto crítico do raciocínio que se prostrava com atenção.

    “Degolar. Não é por razão qualquer que ele havia desertado para os milicianos chechenos antes de desaparecer do mapa. No entanto, não compreendo como a Rússia teria perdido um de seus melhores soldados por deserção”, ele guardou seu celular, e então novamente agarrou-se entre as cordas para fazer a descida, dando mais um passo, medindo a distância entre o parapeito e o vidro da janela, para não se desequilibrar, “Que estranho esse lobo! Mudou toda a aparência. Por que ele escolheu vestir pele de cordeiro?” 

    “Aí está o ponto!”, disse Yezi, “Ter muitos inimigos lhe confere alguns anseios curiosos. Ora, ele se entediou rápido de enganar chechenos por toda a vida: que paladar exigente! Na verdade, se ele entrou a fundo na máfia, seus culhões de titânio se confirmam ainda mais. Ele quer um contrato rápido, dinheiro imediato. Vai fazer o que com isso, hein?” 

    “Será que está ao ponto de ser destemido contra até mesmo os dharmáticos1 daqui?”, questionou-lhe.

    “Ele conhece esse mundo oculto do princípio até o fim com essa experiência. Não se tope com ele”, respondeu Yezi. “Qualquer não-feiticeiro jamais deveria ser subestimado!” 

    “Aviso não faltou por nossa parte, fizemos o possível para dizê-lo aos membros da Escola”, respondeu o jovem, pensativo, “seria prepotência que causa isso?”

    “Confiança, melhor dizendo. Não nos cabiam as provas que tínhamos. Os feiticeiros ainda erradamente vão por esse caminho sem noção das consequências. Nem queira saber como aqueles homens foram praticamente batizados na guerra.”

    “Também, não são bestas quaisquer perdidas. São refugiados, sem pátria para ir, guerreiros afiados demais para viverem sem terra ou lugar. O desespero bate na porta uma hora”, explicou Itsuki, “o Ocidente não os aceitaria sem haver o julgamento de seus crimes feitos em guerra. Sejam expatriados ou não, são militares muito valiosos, obedientes e duros ao seguir ordens; perfil que passa os filtros do país. São muito parecidos.”

    “Mas é irônico: foram tratados por muito tempo como subumanos. Por que mudariam de ideia, como se o catálogo racial estivesse diferente?”, indagou atônito a voz adulta. 

    “No fim das contas, é aqui que terminam as similaridades. Não é obediência ao espírito! Eles viviam todo dia sendo ensinados de que havia um inimigo maior que queria esfaquear a pátria”, continuou o jovem, segurando-lhe os lábios. Para a dúvida do próprio Doutor, ele se segurou e então suspirou, e digitou em seu computador, frustrado. Ele estava longe da resposta.

    “Os ares mudaram entre eles. Quem soprou a velhice, Yezi?”

    “Um bocado de gente nova como você que quer sentido nesse mundo”, respondeu Yezi. “Quando escalou a invasão do Iraque, ninguém dava a mínima a eles, já que o mundo se virou para o Oriente Médio. Bastou o 11 de Setembro tomar forma os governos conseguiram mitigar suas crises políticas. E veio na melhor o fato de que Japão desde sempre foi um pêndulo estagnado dos Estados Unidos.”

    “A droga do governo patrocinou a vinda deles…”, murmurou alto Itsuki.

    “O suficiente para que não entrassem no banco de dados das câmeras, e ganhar tempo para a invasão”, endossou, respirando pesadamente. Tornava-se a bater sua caneta sobre a mesma, trêmulo ao ritmo da tensão a governar seus batimentos cardíacos.

    “Até que se prove o contrário, faço essa aposta, Itsuki. Não haveria motivos para esses militares virem aqui, num país com exército e relações econômicas vitais para as potências ocidentais. O risco não compensaria. A não ser, claro, se a recompensa dessa empreitada for bem valiosa, em valores recordes. Considerando que a economia japonesa está estagnada, mas é uma das mais estáveis do mundo, não é improvável que uma grande quantia de dinheiro possa ser facilmente reunida. Um contrato aqui tem mais segurança e estabilidade de renda e lucro do que na África”, esclareceu.

    “A cláusulas de um contrato de terrorismo nem são boas”, Itsuki levantou uma das sobrancelhas. Estava fascinado e preocupado com aquela descoberta. “Seria mais lucrativo permanecer como um mercenário.”

    “Veja bem: essa é uma hipótese somente, mas ela é, no mínimo, aceitável. Ela só não explica porque, por tudo o que é sagrado, este lugar está abandonado. Seria fácil dizer: ora, aqui foi sequestrado, pois, caso os Seiki2 do governo sejam os contratantes dos Gimutai, então nada explicaria o fato de que esse lugar se encontraria abandonado. E se estivesse ocupado, a única coisa que poderiam fazer é sequestrar, pois eles não teriam força alguma contra a polícia deles. O que está havendo, afinal?”, questionou Yezi.

    “Ninguém duvida que os militares foram condenados a isso: como se cada parte de suas almas fossem fragmentadas no princípio, desde o fim de sua pátria! O resultado é toda esta violência para dar e comer. Não duvido que vão bater em quem pagar menos. Além de que, não foi a primeira vez também que fizeram isso. A Aleph pode estar precisando de uma mão a mais,” deduziu.

    “Bem difícil. A Aleph3 não quer saber de fazer reféns. Era atacar e ir embora. Acha mesmo que os Seiki possuem essa disposição para gastar recursos com essas ideias porque eles estão com a mão do governo nisso? Isso custa caro; espiritualidade não lhes serve de nada, tanto mais aquela que juram de pés juntos que corrompeu o Japão. Já a política, sim.”

    “Esses militares sequer são cultistas,” concluiu rispidamente, “carregam crucifixos e tatuam o número de muçulmanos que mataram no cáucaso.”

    “Esse ataque não foi direcionado a não-japoneses. É muita gente mantida como refém por lá”, atirou-lhe a dúvida sobre Itsuki, que acenou em entendimento. “Perder tempo com isso para deixar mais rastros sobre suas atividades, é inconcebível.”

    “Eles são os únicos na linha de frente capazes de se comunicar com os militares. Eles têm algum plano com eles. mesmo que isso tenha ocorrido por uma reconciliação improvável”, respondeu Itsuki. “Unir inimigos declarados que sequer sabem o que pensam. Engenhoso. Alguns chacoalham seus braços para mostrar a crise em seus ossos, outros arregalam os olhos em sofrimento. Uns são mais delicados, duradouros, e outros mais violentos. Foi cruel essa decisão.”

    “Nada do que eles fazem está livre de sofrimento”, Yezi retrucou. Para o jovem príncipe, parecia-lhe ser dito pela metade a verdade ouvida, “porém, eles são muito mais teimosos que isso. Preferem acreditar que não têm nada a perder.”


    1. É um sinônimo comum dentro do universo para feiticeiros. São aqueles que dominam o dharma de forma que ele lhes sirva para permitir realizar feitiços.[]
    2. Os Seikijuku, isto é, “a escola de pensadores sãos, iluminados”, é um grupo monarquista e de extrema-direita formado em Nagasaki em 1981. Seu mais famoso atentado foi contra o prefeito de Nagasaki, Hitoshi Motoshima, após ter afirmado que o Imperador Shōwa, o então Hirohito que estava doente àquela época, foi responsável pelo desencadear da guerra, ao ano de 1990. Dispararam um único tiro em suas costas, mas ele sobreviveu aos ferimentos graves.[]
    3. Também conhecida como Oumu, foi uma seita apocalíptica de cunho budista fundada em 1987, sendo responsável por uma série de ataques terroristas à capital, protagonizando um ataque químico com gás sarin ao metrô de Tóquio no dia 20 de março de 1995. Foram mais de seis anos de embates intensos e trocas de tiro entre a polícia metropolitana e o grupo, resultando em mortes para ambos os lados. Até o ano de 2006, o grupo mudou de nome e perdeu seu status como entidade religiosa legal, embora, em 2002, um parlamentar chamado Kōki Ishii, membro do comitê antiterrorista do Parlamento que caçava as últimas células do grupo na Rússia, foi assassinado em circunstâncias suspeitas. Veja mais, em inglês, aqui.[]

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